Mefistófeles
ouviu as queixas do jornalista. Era o mais talentoso da sua geração e nunca
tivera oportunidades no ambiente burocrático das redações. Era o mais
inteligente da escola, mas nunca tivera a habilidade para ser sociável e
reconhecido apenas pelos seus méritos.
Ele queria o
poder e Mefistófeles concedeu. Você será o primeiro, se aceitar comandar as
forças das trevas, ser o arauto do ódio e da intolerância, o chefe dos
templários, o espírito de Átila e a voz dos hunos, o verdugo incumbido de
executar os inimigos feridos no campo de batalha. Em troca eu lhe darei
séquitos de bárbaros, legiões de criaturas das sombras, o comando do mercado da
intolerância, que revistas, jornais, rádios e TVs ambicionam.
E assim foi
feito. Mergulhou no mais profundo do esgoto humano, armou-se da retórica mais
tenebrosa, espalhou ódio, intolerância, executou inimigos e foi compensado. Seu
discurso foi agasalhado pelo segundo maior partido político, a mídia se abriu
para o seu reinado e ele foi transportado para os píncaros do jornalismo de
esgoto, como o porta-voz máximo da intolerância.
Chegando ao
topo, sentiu que faltava algo. As chamas do ódio espalhavam-se por todos os
poros da nação e as fogueiras da inquisição passaram a queimar os seus. E, aos
seus pés, via como seguidores o populacho mais selvagem, babando ódio,
dividindo suas atenções com artistas pornôs, youtubers de terceira, uma turba
vociferante e desqualificada.
Olhou então
para o juiz que construíra sua reputação colocando tijolos de jurisprudência no
edifício da civilização, o trabalho lento e pertinaz de trazer a luz. E o invejou.
Procurou
então Mefistófeles e lhe propôs: agora que tenho o poder, eu quero o respeito.
Não quero mais ser o capanga: quero ser o conselheiro.
Mefistófeles
refugou: isso não estava no combinado. E o jornalista decidiu percorrer o novo
caminho por conta própria. Por algum tempo revestiu-se de seriedade, combateu o
ódio que ele próprio disseminara, as fogueiras que ele espalhara, com um senso
de lealdade para com os seus e de coragem raros entre os súditos de
Mefistofeles.
Porém,
quando se despiu da capa vermelha flamejante da ambição e colocou o manto dos
conceitos, Mefisto considerou o trato desfeito e o jogou do alto do penhasco.
Enquanto
caía, cruzou com o juiz que subia, com beca de Ministro do Supremo.
O juiz
nascera tímido. Faltava-lhe coragem e destemor para as grandes batalhas. Por
isso, fez carreira semeando o bem e tentando a unanimidade, conquistando o
respeito, sendo o pai dos desassistidos, o jurista dos vulneráveis, a alma boa
dividida entre grandes questões morais e o escritório de advocacia das causas
menores, que também não era de ferro.
Reconhecido,
entrou para o Olimpo do direito. E de lá contemplava com olhos úmidos o gozo de
prazer dos poderosos. Via o jornalista espirrando ódio por todos os poros,
cavalgando a intolerância, e infundindo temor. E o invejou.
Procurou
Mefistófeles e lhe propôs: eu tenho o respeito, agora quero o poder. Não quero
mais o papel do bonzinho, cuja timidez encobria o gozo mórbido da violência e
que, no colégio, se intimidava com o grupo dos valentões. Quero comandar os
valentões. Além disso, sem a aliança com as legiões das sombras, corria o risco
de ter sua vida devassada, sua reputação colocada em dúvida, o sucesso do
escritório ameaçado.
E
Mefistófeles topou na hora. Imediatamente, o juiz trocou o manto da sobriedade
pela capa flamejante do poder e fechou um pacto de sangue com as sombras. Com
os olhos rútilos de sangue, passou a autorizar todos os esbirros do poder,
todos os desrespeitos aos direitos. Tornou-se temido e poderoso.
Até o dia em
que liberou 2.040 gravações de conversas sem interesse jornalístico e deu o
empurrão final no poder do jornalista, vazando uma conversa irrelevante com uma
fonte.
Foi quando
Mefistófeles surgiu na sua frente:
-
Imprudente! Não se contentou com todo o poder que lhe dei? Como ousa afrontar
um dos tabus do centro do meu poder, a mídia, vazando a conversa de um
jornalista com a fonte?
E o
sacrifício do jornalista ajudou a conter as ameaças contra o jornalismo e a
abrir os olhos da mídia e do país para o Asmodeus que fugiu ao controle.