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domingo, 22 de abril de 2018

A ditadura judicial começou com aplicação fraudulenta do domínio do fato por Joaquim Barbosa no STF

Não conheço pessoalmente Márcio Fagundes, mineiro, jornalista, pai de dois filhos, ex-marido de uma grande amiga, residente honorário de Belo Horizonte. Honorário é por minha conta porque acho que quem mora lá já garante todas as honras de uma linda metrópole, histórica, despojada, mas altaneira.
Não sei quais são ou foram seus hábitos, usos e costumes, nem tenho sua ficha corrida. Mas falta não faz, sua foto diz tudo. Mostra, grita, esperneia, aponta, define, mais que uma datiloscopia. É aquela história, a gente bate o olho nela e vê sem precisar ser médium ou sensitivo de berço como é e quem é a pessoa.
Já os amigos próximos, de rua, de bares, de trabalho, de reuniões, do cafezinho na esquina, da esquina sem cafezinho, todos eles dizem a mesma coisa. Até mesmo o Sindicatodos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais, através de nota pública, um dos aglomerados de trabalhadores sérios e competentes da palavra, da notícia, do fato, tal como ele é, não do jeito que os editores querem ou mesmo os donos das emissoras, jornais e assemelhados pretendem para encobrir, tergiversar ou inventar notícias.
Isentos de vícios, artifícios e ofícios, repudiam a prisão do colega, profissional reconhecido, ilibado, construído nas linhas e entrelinhas da verdade tal qual ela se mostra e apresenta, não a que interessa e alimenta. Os tempos de agora já não trazem mais as cores de outrora.
Pois Márcio foi retirado de casa às 6 da manhã da quarta-feira, 18 de abril, pela truculência policial, sem limites, sem freios, sem medida. Viram a cena trágica, corroída, insuportável, os filhos, vizinhos e o dia que pensava em começar claro, limpo, com um bom e belo horizonte. Quebrou-lhe o alvorecer da natureza soberba mais um golpe contra o cidadão comum, sem privilégios, favores, incentivos e conluios perpetrado por decisão de nossa justiça (?), assim mesmo, minúscula, sem a estatura de um Ruy Barbosa, Sobral Pinto, Evandro Lins e Silva, de tantos outros que já tinham a defesa dos direitos humanos e sociais correndo pelas veias.
Trabalhou na Câmara dos Vereadores de Belo Horizonte, onde um de seus representantes, então vereador, hoje foragido e procurado por corrupção, se envolveu em transações ilícitas de licitações. Na época Márcio era superintendente de comunicação, não tendo nada a ver com a parte administrativa. Maldita máquina hierárquica e meritocrata que se aproveita, subverte, corrompe, manda e desmanda, porque tem anel no dedo, diploma na parede, cargo representativo, pose de semideus, ou até de deus mesmo, como muitos dos que se arrotam defensores da legalidade e transparência.
Para se precaver, Márcio sempre assinava a papelada da burocracia com as iniciais O.P. (ordem da presidência) para se livrar de futuras complicações. Mas não valeu nesse caso. Foram atrás dele achando que tinha coisas escondidas em casa. Só acharam ele, a filha e muitos livros, além do aconchego familiar, do reduto inviolável do lar. O arrancaram de lá assim mesmo, não satisfeitos com a rasteira que levaram ao não encontrarem nada que imaginavam. Mas deixaram feridas as emoções dos filhos, vizinhos, de Márcio e derrubaram a presunção de inocência. Filmava tudo isso às escâncaras uma equipe da Globo que já estava na porta do prédio de apartamentos, como sempre, antes mesmo dos policiais chegarem!
Sua história sabemos porque ele está rodeado de amigos, colegas e profissionais que o estimam e sabem quem ele é. Mas quantos outros, mulheres e homens incógnitos, estão por aí afora sendo levados diariamente aos camburões para serem esquecidos nas masmorras da brutalidade, insanidade, truculência, medievalismo, sem qualquer lei e ordem. Afinal, para que servem leis se não se encontram policiais, promotores e juízes que as respeitem em nome do povo, pelo povo e para o povo? Quando é que nosso país vai sair das fraldas sujas da prepotência, discriminação, elitismo e violência branca?
Como diriam nossos pais, estamos num mato sem cachorro, embora hajam muitos cachorros soltos por aí. Levaram Márcio por conta certamente da famigerada, oportunista e sórdida aplicação tupiniquim da teoria do domínio do fato. Basta que alguém trabalhe em qualquer hierarquia pública em posição de mando ou de serviço direto ao mando para que seja considerado culpado diante de um ilícito, apenas por suspeita, convicção judicial, ou qualquer power-point da vida que mostre qualquer esquema estapafúrdio de causa e efeito saído de mente doentia.
Tudo isso começou com a aplicação errada, fraudulenta, suspeita e oportunista da teoria, desenvolvida pelo jurista alemão Claus Roxin**, por Joaquim Barbosa no julgamento do processo conhecido por mensalão. De lá para cá a justiça brasileira abraçou o absurdo jurídico, tal como aplicado aqui, para incriminar e condenar muitos outros numa penada, sem nenhuma prova palpável, concreta, objetiva. Instalou-se a presunção de culpa, afundou-se o preceito constitucional da presunção de inocência.
Pois no caso de Márcio, vale somente o domínio da foto. Basta olhá-la para ver uma pessoa visualmente sem tiques de banditismo, malandragem, golpismo, safadeza, pilantragem, especialidades de muitos representantes políticos nacionais. As provas? Seu passado, se quiserem, sua ficha corrida, tudo isso reforça,a correta aplicação do domínio do fato, quando todos os colegas, amigos e profissionais, representados pelo Sindicato, servem de provas suficientes e atestam a honradez de personalidade, comportamento e atitude do presumido culpado. Além do fato dele mesmo já ter ido muito antes ao Ministério Público, espontaneamente, dar seu depoimento sobre todo o caso.
Os tempos estão sombrios, mas com as mentes claras temos muito o que fazer para desfazer manchas e pragas fascistas se espalhando na sociedade brasileira. Márcio é um dos atingidos por esse vírus pestilento. Juntemo-nos aos jornalistas e demais democratas e progressistas para combater e livrar a nação dessa doença impiedosa, desumana, maligna e contagiosa. Salvemo-nos todos antes que o vírus venha também atrás de nós! 
Do GGN/Justificando por José Carlos Peliano, economista, poeta e escritor.
**www.https://leonardoboff.wordpress.com/2012/11/02/dominio-do-fato-e-fato-do-dominio/

sexta-feira, 2 de junho de 2017

O Procurador pastor e o fim do Direito, Lenio Streck

Foto: Reprodução 
O que o procurador pastor tem a ver com a desmoralização do Direito?

Parece que vivemos o apocalipse zumbi-jurídico (vejam — zumbis sempre estão em busca de cérebros; em alguns lugares do Direito morreriam de fome..., como sugere o brilhante filósofo Marco Casanova). Quando achamos que o estamos no fundo do poço, sempre aparece uma camada a mais para cavar.

Parece que perdemos o pudor. Desrespeitamos as leis e a Constituição e em lugar dela colocamos nossas convicções políticas e/ou morais. Ou simplesmente as convicções religiosas (falarei disso na sequência). Ou “só pessoais”. Assim “tipo eu-acho-que”. Em todos os quadrantes. Ao mesmo tempo em que são liberados grandes corruptos e corruptores, sob o mesmo ordenamento deixamos presos pobres e esgualepados. Dia desses alguém me questionou: “Professor, o senhor quebrou a cara. Dizia que la ley es como la serpiente; solo pica al descalzos (frase de Jesus De la Torre Rangel que o senhor repete há tantos anos) e agora está vendo os grandes irem para a prisão”.

Em resposta, perguntei: será mesmo? Falemos dos indefectíveis irmãos Batista ou dos réus que receberam liberdade no Superior Tribunal de Justiça enquanto esse mesmo tribunal deixou presa uma mulher que furtou peito de frango e outros quejandinhos. Desde quando as delações inverteram a frase que repito há tantos anos? Na verdade, há uma esperta inversão ideológica nisso tudo. O futuro mostrará isso. O episódio dos irmãos Batista é só a ponta do iceberg (veja-se o lúcido texto da professora Érica Gorga, no Estadão). Temos quase um milhão de presos. Destes, não mais que 0,001% são da "lava jato". O resto não tem nem direito à delação. E nem a benesses.

Mas quero falar de outro poço. O do moralismo que fez uma fagocitose do Direito (sem o benefício desta). Em nome da tese moral-utilitarista de que os fins justificam os meios, fizeram delações à revelia da lei (veja-se o texto de JJ Gomes Canotilho — ver aqui). Todos os dias as teses morais fazem predação do Direito. Em vez da boa doutrina, jurisprudência e, enfim, da lei e da Constituição Federal (peço desculpas pode me referir a essa coisa demodê chamada “Direito”), usa-se “justo concreto”, “minha consciência”, “minha convicção”, “meu iluminismo”, “o réu merece” etc. Atenção: até a revista Veja, por arrependimento ou oportunismo, reconhece que houve ilegalidade na interceptação da conversa Lula-Dilma, na sua divulgação (na época, a revista pensava o contrário) e agora no caso Reinaldo Azevedo. Nome da matéria da Veja: Estado Policial! Bem sugestivo!

A última (mais recente) pataquada moral(ista) veio do Mato Grosso do Sul, em que um procurador de Justiça, a partir da convocação feita pela Promotoria da Infância e Juventude aos pais de alunos para comparecimento sob pena de multa e prisão para assistirem a ele, procurador, em estádio com 10 mil pessoas, proferir palestra. Ocorre que a tal palestra esteve eivada de pregações religiosas, além de decretar a cidade de Dourados “capital de Cristo” ou algo assim. Vejam a matéria (ver aqui). Já li, inclusive, a defesa que um colega seu fez, dizendo que a oração foi pequena e apenas ao final. Bom, não é o que a reportagem e as filmagens mostram. Além disso, o promotor (ler aqui) não explica a convocação para o comparecimento ao Estádio sob pena de multa ou prisão. O Ministério Público esticou a corda, pois não?

Despiciendo fazer maiores criticas à atitude do procurador. O Conselho Superior do MP por certo não deverá dar uma medalha ao colega. Espero que não. Moralizar o Direito (isto é, fazê-lo soçobrar diante de raciocínios morais) por vezes é, exatamente, aquilo que desmoraliza, se me entendem a ironia e o jogo de palavras.

Vejam lá. Não discuto aqui os bons propósitos do membro do Ministério Público. A evasão escolar é um problema sério e o crime de abandono intelectual não é inconstitucional. Agora, constranger pais (relapsos que sejam) a, sob vara, acompanhar uma doutrinação religiosa, certamente não é o caminho. “Ah, professor, mas os resultados são bons.” Pois é... o Direito não é exatamente o lugar em que o “argumento do resultado” tem preferência, não é mesmo? Ou bem o poder público tem um poder, ou bem não o tem; ou bem o cidadão tem um direito, ou bem não o tem. O código do Direito é, por assim dizer, binário. Eis o fórum é do princípio. É preciso, portanto, ajustar os bons propósitos do Procurador/pregador às premissas e preceitos de um Estado laico e de um Direito Penal conformado à Constituição (ou alguém entende correto que um pai que não comparecesse ao evento esse — sem “justificativa” (sic — aliás, que “justificativa” seria suficiente para o não comparecimento? Quem sabe a laicidade?) respondesse criminalmente só por esse fato?).

Na verdade, o que devemos discutir não são essas questões pontuais com as quais encheríamos páginas e páginas de bizarrices que estão se tornando “normais”. Isto é mais um sintoma da lambança que se fez do Direito. Como exemplo, lembro que o Brasil arde e o panpenalismo avança até para cima das crianças e dos seus pais. Enquanto isso, alguém lança um livro chamado Direito Penal Superfacilitado. Depois dizem que é implicância minha...

Teoria política do poder substituiu o Direito: só os fortes sobrevivem?
Como chegamos a este estágio? O que fizemos com o Direito? Transformamos o Direito em um jogo de poder. Isso. A questão é saber: a) ou nos dobramos e dizemos “isso é assim mesmo e vamos achar um modo de ser mais esperto que o outro” ou b) voltemos a estudar Direito (e direito) e enfrentemos de frente esse monstro.

Sim, porque se pensarmos que direito é isso que está aí e interpretação é um ato de vontade (como dizia Kelsen no oitavo capitulo da TPD, mostrando todo seu relativismo), então estaremos fazendo uma coisa pior ainda. Sabem qual é? Só os fortes sobreviverão.

Se o Direito se transformou em um estado de natureza, em que quem é mais esperto no seu agir estratégico ganha, então deixemos de lado qualquer pretensão teórica. Ou, ao menos, desistamos da teoria normativa — o que não é um problema menor; venho dizendo há tempos que o principal papel da teoria do Direito é, exatamente, fornecer as condições de possibilidade para tornar concreto o programa constitucional, para concretizar direitos fundamentais. Do contrário, façamos sociologia ou ciência política, disciplinas certamente tão relevantes quanto, apenas que não são... Direito!

O que aconteceu é que institucionalizamos aquilo que hoje se faz nas pobres faculdades de Direito de Pindorama: estudar uma frágil teoria política do poder, pela qual o Direito é só vontade (de poder) e opinião pessoal. E, é claro, só se darão bem os mais fortes. É Behemoth engolindo Leviatã (lembremos que um dos sentidos do Leviatã de Hobbes é o de um Estado garantidor da paz, enquanto o Behemoth quer dizer o contrário).

De minha parte, penso que devemos estudar Direito e — sem fazer provocação ao Procurador pregador de Mato Grosso do Sul — espalhar a palavra “doutrina”. Só ela poderá nos salvar. Só a Constituição salva. Aleluia, irmãos.

Minha reflexão: nestes tempos de grave instabilidade, creio que, como Ulisses aos mastros, estamos, os concidadãos, ao império do Direito. É o apego pelo Direito, é o cuidado com Ele, que pode nos guiar por um bom caminho. Tudo parece cinza e os sólidos, como poucas vezes na nossa história recente, dissolve-se pelo ar.

Estamos sob teste. E os juristas temos um papel nessa conversa toda. Por isso, ofereço minha dose de prudência constitucional, recordando uma frase que disse e escrevi em 1989, no primeiro aniversário da Constituição de 1988: “Constituição quer significar constituir-a-ação”.

Do GGN

terça-feira, 30 de maio de 2017

Lenio Streck: A coerência na defesa da Constituição à beira de um Estado policial

 Foto: Thiago Melo

Estado policial: é que de há muito começou a chover na serra!

Se a concepção de racionalidade histórica de Hegel sobre a importância do Estado fosse correta para a evolução do Estado (ou da teoria do Estado), no Brasil esta(ría)mos a um passo de uma ditadura ou fragmentação total do país. Espero que não seja assim.

Por isso sou um insistente. Peço desculpas por ainda acreditar na tese de que a saída deve ser pela Constituição, e não fora dela. Portanto, a saída é “via Estado” (o próprio Hegel dizia, na aurora do século XIX, que a Alemanha já não era um Estado – Deutschland ist kein Staat mehr). Peço até desculpas por falar em Direito. Aliás, como já não se ensina Direito nas faculdades, o professor tem de pedir licença e desculpas aos alunos para falar um pouco de... Direito, já que o que se vem “ensinando” é a (má) teoria política do poder. Resultado: não se respeita o CPP, o CPC e a CF. Por todos os resistentes, cito Pedro Serrano, Salah Khaled Jr, Dierle Nunes e Rosivaldo Toscano: para eles — e acompanhei suas postagens no Facebook (ler aqui) —, defesa de direitos e garantias não deve e não pode ser de ocasião.

Muitas colunas já escrevi aqui na ConJur sobre a necessidade de se preservar a Constituição em qualquer circunstância. Constituição é um remédio contra maiorias. A democracia dos séculos XX e XXI apenas se consolidou porque o Direito foi um instrumento fundamental para filtrar a política e os juízos morais. E não o contrário. Quer dizer, se é a moral que filtra o Direito, então não há mais Direito. Esse é o ponto com o qual, acredito, Pedro e Salah concordam comigo.

Historicamente venho trazendo, hebdomadariamente, exemplos metafóricos acerca do valor da lei. Um deles, lembro, é sobre o que aconteceu no seriado House of Cards, quando o presidente dos EUA é ferido e necessita de um transplante de fígado. Ele é o segundo da fila de transplantes. Chega ao hospital e, como surge um fígado, a assessoria quer furar a fila. O médico-chefe apenas diz: “Ele é o segundo da fila” (“It's the law”). Também criei o “fator stoic mujic”, que conta a história do advogado Sandoval defendendo um espião russo no auge da Guerra Fria, em plena Washington (filme A Ponte dos Espiões). Contra tudo e contra todos, ele defende seu cliente. Até seu filho lhe questiona. Ele diz: "Estou apenas fazendo o meu trabalho".

Poderia trazer inúmeros exemplos para mostrar o valor da lei e da Constituição. Tenho passado perrengues epistêmicos por adotar uma linha de ortodoxia constitucional em defesa das garantias e do devido processo legal. Há anos denuncio que o Direito está cercado de predadores. Os predadores externos tradicionais são a política, a economia e a moral (esta é o mais perigoso, porque também atua como predador interno). Terrível. Os internos, além dos juízos morais e moralizantes — os piores —, são todos os elementos que fragilizam o grau de autonomia que o Direito deve ter (daí o perigo de coisas como “os fins justificam os meios”, “decido conforme minha consciência”, “não importa a forma, vale mesmo é o conteúdo”, “decido primeiro e depois fundamento e coisas desse gênero”).

Há uma fábula que bem mostra como se comporta parte considerável da comunidade jurídica. O cordeiro tomava água no riacho e aparece o lobo para tomar água na parte mais elevada[1]. E diz: “Cordeiro, você está sujando a minha água”. Este responde: “Isso é logicamente impossível. Estou à jusante, e você, à montante”. Então o lobo diz: “Então foi seu pai”. E o cordeiro, triste, responde: “Sou órfão. Meu pai e minha mãe foram comidos por lobos”. “Então foi seu irmão”, diz o lobo. “Igualmente impossível”, diz o cordeiro. “Todos os meus irmãos foram devorados por uma alcateia de colegas seus.” Então o lobo diz: “Não importa nada disso. Faço raciocínios teleológicos. Primeiro, decidi que comeria você. Depois busquei um fundamento qualquer. Mesmo sem o fundamento válido, tenho o poder de decidir”. E arrematou: “Cordeirinho gostosinho: para você que não estudou Kelsen, isso se chama vontade de poder, quer dizer, devorarei você por um ato de vontade”. E, bingo, devorou-o.

Qual é a diferença do “raciocínio” do lobo com o que faz hoje a maioria das pessoas que lidam com o Direito? Comportam-se como o lobo. Respondem segundo seu apetite (ou melhor, suas opiniões morais, políticas, ideológicas), fazendo soçobrar a Constituição. Há um vaivém de opiniões. Quem apoiou o grampo em Dilma agora se queixa da prova no caso Temer. Esqueceram que “pau que bate em Chico bate em Francisco”. Pau é... Pau! Por outro lado, quem criticou os vazamentos e a intercepção ilícita da conversa Lula-Dilma agora diz que não há ilegalidade-inconstitucionalidade no flagrante preparado no caso Temer (Cesar Bitencourt demonstra, em texto na ConJur, que houve flagrante preparado); veja-se o quase silêncio acerca da flagrante ilegalidade no caso da divulgação da conversa entre Aécio e o ministro Gilmar (ou entre Aécio e seu advogado Toron); e, embora a indignação de juristas (advogados e professores) e ministros do STF (Gilmar Mendes, Cármen Lúcia e Celso de Mello — foram os que li; a coluna foi fechada no início da tarde desta quarta-feira, dia 24), penso que deveria ter mais gente protestando contra a vergonhosa violação do sigilo da fonte e do artigo 9º da Lei 9.296, em que foi vítima o jornalista Reinaldo Azevedo (imagine-se o tamanho do dano moral — e quem vai pagar?). E assim por diante.

Ilegalidade é ilegalidade. Não tem cor, sexo, sabor, ideologia. Se aceitarmos que o Direito seja substituído por juízos morais ou políticos, não mais teremos Direito. Um turbilhão de ilegalidades e inconstitucionalidades está colocando em risco a democracia brasileira. Estamos à beira de um Estado policial (se já não estamos). Há uma tempestade perfeita para uma ditadura judicioministerial (que pode redundar em outro tipo). Volto a Hegel, do qual falei no início.

Não preciso falar aqui da violação das garantias de juiz natural — institucionalizamos uma pamcompetência. E que as violações da lei da delação são de A à Z. Dezenas de juristas apontam para isso. E o que dizer da divulgação de depoimentos, de forma seletiva ou não? E jornalistas que recebem informações privilegiadas de agentes públicos? Por que, a não ser este escriba, ninguém criticou a ex-ministra do STJ por dizer que, mesmo sabendo de vazamentos, nada fez, porque sabia do bom propósito... E o que dizer de agentes que saem no meio de uma operação e se transformam em advogados e passam a atuar nos feitos?

Na verdade, formou-se uma “bolha especulativa” no e sobre o instituto da colaboração premiada. E pouca gente protesta contra o uso abusivo das prisões preventivas... Porque se trata de “bom propósito” (afinal, as prisões são de pessoas das quais não gostamos). Só que bolhas costumam estourar. Aliás, o caso dos irmãos Batista (os irmãos Uesleis) parece ter sido o primeiro grande estouro. Há que se cuidar com a reação em cadeia.

Minha coluna de hoje é singela. Tinha tanta coisa para escrever. Mas me bate uma melancolia. Uma tentação de “deixamento” (minha tradução para Gelassenheit, que muitos traduzem como “serenidade”, outros por “melancolia”). Mas temos de resistir a essa “deixação”.

Manter coerência no discurso de defesa da Constituição por vezes soa antipático. Quando a violação é contra os inimigos, elas não são violações. Quando são contra nossos amigos ou nós mesmos, tornam-se robustas violações. Bom, talvez por isso a guerra de opiniões continue. Mas são apenas opiniões. Afinal, como o país está dividido, sempre haverá em torno de 50% que estarão contra as violações e 50% a favor. Depende sempre de quem for o atingido pela ilegalidade (aliás, qual será a próxima?). Só que a democracia não é o resultado de somas de percentuais. Isto é: 50% mais 50% pode, por vezes, resultar em soma zero. Eis o perigo.

Insisto com Eraclio Zepeda: quando as águas da enchente cobrem a tudo e a todos, é porque de há muito começou a chover na serra. Nós é que não damos conta. Desenhando: quando não nos importamos com a primeira violação, criamos a tempestade perfeita. Retomo à pergunta já feita em outro texto: quanto queremos investir na democracia? Não há grau zero de poder. Não há grau zero na política. Escrevi há quase 30 anos a seguinte frase: a Constituição deve constituir-a-ação. Fora dela, é o caos. E o conceito de caos é: “Depois do primeiro tiro, ninguém mais sabe quem está atirando”.

[1] Homenagem a Georges Abboud, que contou a fábula esopiana no congresso em minha homenagem em João pessoa. Apenas fiz adaptações.

Do GGN

quarta-feira, 24 de maio de 2017

A tortura hoje no Brasil veste toga, diz Flavio Koutzii

O psicanalista Flávio Koutzii: ‘Em 64 tivemos um Fleury. Hoje, temos um Fleury de toga’.

Quase nove meses depois da confirmação, pelo Senado, da deposição da presidenta Dilma Rousseff, eleita em 2014 com mais de 54 milhões de votos, o Brasil convive com dois fenômenos que andam de mãos dadas: a instabilidade política, social e econômica do país se agravou e os setores que derrubaram Dilma tentam, desesperadamente, aprovar a sua agenda de reformas que retiram direitos resguardados pela Constituição de 1988 e pela CLT. A demora na aprovação dessas reformas, provocada pela crescente resistência nas ruas a elas só vai aumentando o clima de instabilidade.