domingo, 28 de fevereiro de 2021

PIORA DA PANDEMIA VAI ATROPELAR NEGACIONISMO BOLSONARISTA; FERNANDO BRITO

A decisão da ministra Rosa Weber de obrigar o governo federal reative leitos de UTI para tratamento de Covid-19 desativados desde o início de 2021 nos estados de São Paulo, do Maranhão e da Bahia é o primeiro dos sinais de que, apesar da sua inércia e do negacionismo que segue mesmo depois das 255 mil mortes com que terminaremos este mês de fevereiro, Jair Bolsonaro será atropelado pelos fatos.

O lockdown “cosmético” que vem sendo feito – em graus variáveis – por alguns governos estaduais e, mais fortemente, por várias prefeituras vão se impor.

Na tarde de hoje, 16 estados têm mais de 80% de ocupação de leitos de UTI, o que é, na pratica, a lotação total, por conta da disponibilidade de equipes e pelo tempo de desocupação de leitos (por alta ou óbito). Estes índices que você vê acima de 90% querem dizer que já há pacientes que à espera de que leitos possam ser reutilizados. O infectologista Jamal Suleiman, do Hospital Emílio Ribas, de São Paulo, diz que uma taxa de ocupação acima de 90% já “é o colapso”.

Não vai adiantar Jair Bolsonaro republicar vídeos de donos de comerciantes do Distrito Federal reclamando dos limites impostos pelo governador (bolsonarista, aliás) Ibaneis Rocha se Brasília tem 97% dos leitos de terapia intensiva. Mesmo cedendo em algumas áreas, a progressão da doença vai empurrá-lo – como logo fará a João Doria – para restringir mais.

Adiantaria se estivesse tomando medidas para financiar ou suspender no curto prazo o pagamento de dívidas de financiamentos , parte do valor aluguéis comerciais até certo valor, dilatação dos prazos de pagamento de tributos.

Mas não está fazendo isso e continua na tentativa que parece ser perdida de “compensar” com cortes nos serviços públicos a adoção, que não pode mais ser retardada, da volta do auxílio emergencial.

E jogar nos governadores a culpa por uma situação na qual o país não tem comando.

PS. Horrível, as mortes deste sábado, é o pior registro para este dia da semana desde que começou a pandemia: 721 óbitos, elevando a média de sete dias para 1.205, também a maior já anotada.

Tijolaço.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

ÀS VÉSPERAS DO COLAPSO, POR FERNANDO BRITO

Ainda não saíram os números, mas os registros de alguns estados já permite dizer que vamos, outra vez, superar com folga marca de 1.400 mortes pelos efeitos do novo coronavírus, fazendo desta a pior semana desde o início da pandemia, passando da casa dos 8 mil óbitos.

Os sinais de colapso estão aparecendo por toda a parte: nos estados do Sul, onde a lotação das UTI esgotou-se, no grande ABC paulista, na Bahia, na região do Triângulo Mineiro, por toda a parte o que é relatado pelas autoridades sanitárias é uma situação que se aproxima do caótico.

E não é só no “andar de baixo”, não, pois o Estadão anota que “Com avanço da covid, hospitais privados de elite em SP registram taxa de ocupação superior a 90%“.

Não há nenhuma reação do governo central do país, a não ser a de tornar mais problemática a vacinação no Amazonas, o polo mais dramático da pandemia, por um erro bisonho de trocar as doses pelas do Amapá, embora até visualmente o tamanho das embalagens – uma com 78 mil doses e outra com apenas duas mil – seja totalmente diferente.

Jair Bolsonaro está mais preocupado colocar um militar para cuidar também da Secretaria de Comunicação, o Almirante Flávio Rocha.

Está se tornando inevitável uma nova paralisação das atividades econômicas e estamos discutindo a blindagem de deputados através da “Emenda Brucutu“.

Ninguém parece dar qualquer importância para a calamidade humanitária que tomou conta do Brasil.

PS. Enquanto escrevia, saíram os dados das Secretarias de Saúde: 1.540 mortes, a segunda maior marca desde o início da pandemia. A média móvel, que coloco na ilustração, repetiu o recorde de ontem e subiu ainda mais: 1.541 em 24 horas, média semanal de 1.149.

Tijolaço.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

PRIVATIZAÇÃO DA VACINA: O NEGÓCIO DO MEDO DA MORTE. POR FERNANDO BRITO

O anúncio da aprovação do registro da vacina da Pfizer pela Anvisa e da votação, pelo Senado, de um projeto de lei que permite a importação privada de vacinas contra o novo coronavírus têm tudo a ver.

São negócios que envolvem muito dinheiro e muitas oportunidade de marketing – o que, no final das contas, também é dinheiro – e os narizes parlamentares sentiram seu cheiro.

A história de que é preciso um projeto de lei para permitir que se aceitem as cláusulas impostas pela Pfizer para vender sua vacina era bobagem (e dezenas de países compraram-na sem problemas) quanto, depois da aprovação pela Anvisa, a responsabilidade – ao menos solidária – do Estado Brasileiro por efeitos inesperados é um fato consumado, pois o aval irrestrito da autoridade farmacêutica nacional é objetivamente uma assunção de responsabilidades.

Também não há impedimento, como se alega que farão, que empresas privadas importem medicamentos legalizados e os doem para o Sistema Único de Saúde, restrição válida apenas enquanto o grupo prioritário (77 milhões de pessoas).

Aliás, não se anunciou aos quatro ventos a compra, pela Vale e pela Petrobras de milhões de testes para a Covid, afinal destinados a apodrecer nos armazéns ?

É claro que, adiante, os recursos investidos nestas compras para doar serão suportados pelo Estado, por isenções fiscais ou abatimento tributário.

Mas e o “resto” da população, pouco mais de 80 milhões de pessoas vão se vacinar mais ou menos rápido dependendo de terem dinheiro para pagar pela vacina que, depois das prioridades, ficaria livre para ser comercializada por clínicas privadas?

Pelo projeto que está indo ao plenário, sim.

O preço mais baixo praticado pela farmacêutica, em seu contrato com os Estados Unidos é de US$ 19,50 (aproximadamente R$ 105).

Taxas e impostos, custo operacional e lucro do vacinador, ponha aí R$ 200.

Com 20 milhões de vacinas, um quarto dos vacináveis, chega aí à casa dos R$ 4 bilhões.

E foge-se da pergunta óbvia: se há vacinas para todos, pagando, porque não há vacinas para todos pelas mãos da Saúde Pública.

Tijolaço.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

DELTAN QUERIA SUAS REGRAS PARA NOMEAR E TIRAR MINISTROS DO STF, POR FERNANDO BRITO

A revelação dos diálogos nos quais Deltan Dalagnoll e um advogado que serviu à Odebrecht queriam induzir o Congresso para alterar as regras de nomeação de ministros do Supremo Tribunal Federal e o rito de impeachment com que se os pudesse afastar da Corte são a pura expressão do corporativismo populista que o “Partido da Lava Jato” desejava – e em parte, conseguiu – impor ao país.

Vejam: para entrar, a escolha seria numa espécie de “ação entre amigos”: uma “ampla participação de setores da sociedade”, que, claro, estaria representada por um “colegiado de presidentes de tribunais, PGR [Procuradoria Geral da República] e defensor público”.

Mas, para ser tirado da cátedra, aí vale a “iniciativa popular” que, como vimos nestes anos de “fechem o STF” pode ser insuflada a partir exatamente a partir de uma das funções básicas de uma corte suprema, que é a de ser contramajoritária. Isto é, preservar o direito posto para pessoas ou situações em que, apesar do senso comum ou do clamor popular, o ordenamento legal as protege.

Imagine que independência teria um juiz se, evitando um linchamento judicial, se submetesse ao risco de uma “iniciativa popular” para ser afastado da Corte, tendo como “garantia” apenas uma decisão do Senado que, claro, está muito mais sujeito a marés passionais, manipuladas ou não.

Fora dos fundamentos das propostas, é mais escandaloso que um procurador de 1ª instância esteja metido – aliás, este antes, com as tais “10 medidas contra a corrupção, em parceria com Sergio Moro” – em articulações políticas para modificar o ordenamento jurídico do país. Se fiscais da lei se insurgem contra ela, para modificá-la, já não estarão praticando, nas suas atuações, a “nova lei” que pregam?

O delírio de poder da turma lavajatista deu no que temos hoje no país e eles, como um bagaço, preparam-se para ser jogados ao lixo, embora o fedor que deixaram vá levar muito tempo para se dissipar.

Tijolaço.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

NÃO HÁ SEPARAÇÃO ENTRE AS FORÇAS ARMADAS E A CATÁSTROFE QUE É O GOVERNO BOLSONARO. POR JOSÉ GENOÍNO

Jair Bolsonaro, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército – Foto: Marcos Corrêa/PR.

As Forças Armadas estão comprometidas na imagem e no conteúdo com o desastre em curso em nosso país.

Não há como separar as Forças Armadas (FFAA) da catástrofe que é o governo Bolsonaro. Transformaram-se em peça fundamental desde o apoio ao golpe contra a presidenta Dilma, à prisão do Lula e construção da candidatura do atual governo. Mais do que participação no governo, avalizam e conduzem as diretrizes políticas e orientações governamentais, aceitam o programa neoliberal de ajuste fiscal, que envolve a eliminação de direitos e privatizações, a supremacia do capital financeiro e submissão à hegemonia americana. Estão comprometidas na imagem e no conteúdo com o desastre em curso em nosso país; alguns de seus líderes aderiram aos valores obscurantistas, outros silenciam diante deste desgaste da instituição.

As FFAA têm se transformado em uma força importante de governo, ocupando cargos, exercendo funções chaves e definindo orientações. Exercem uma tutela velada e aberta garantindo os privilégios corporativos e ocupando de maneira autônoma funções no Estado. Ora aparecem mais ajuizadas nas formas de governar, ora assumem posições conservadoras nos assuntos relacionados ao meio-ambiente, educação, racismo, defesa dos indígenas e aos temas relacionados com a agenda comportamental (mulheres, sexismo, LGBTQ+, etc.). Temas que antes não uniam os militares como a hegemonia americana e o papel do Estado, hoje se unificam política e ideologicamente na defesa do programa neoliberal. Portanto, a relação com o governo é mais do que simples apoio, existe hoje em dia uma identidade ideológica e política nas questões de Estado, mesmo aparecendo divergências de algumas personalidades, na forma de governar.

A partir da crise internacional de 2008, da redefinição geopolítica os Estados Unidos, da disputa de mercados, recursos naturais, da espionagem, inclusive contra o Brasil, e da guerra “contra a corrupção”, construiu-se uma influência através da CIA, ANS, FBI e Departamento de Justiça, uma espécie de “guerra híbrida”, objetivando construir a política “América para os americanos”. A diplomacia dos nossos governos de esquerda corretamente se baseava nas relações Sul-Sul, mas faltou uma correspondência mais efetiva no plano do direito penal e na diplomacia militar. Hoje em dia, porém, fortaleceram-se os laços históricos que vêm da Guerra Fria, das operações durante o período da Ditadura militar e da submissão vassala aos EUA.

Porém esta união possui meandros específicos, já que as FFAA preservam sua autonomia em relação ao poder político e também em relação às instituições estatais. São parceiras orgânicas nos assuntos governamentais e se necessário exercem o poder tutelar. Os militares da reserva e da ativa agem como se fossem um corpo só, muitas vezes nem as formalidades são preservadas. A politização entra nos quartéis, os militares dão aparência de normalidade enquanto passam a “boiada”; eles têm unidade nas questões programáticas e no combate à esquerda e ao PT.

Um exemplo disso é a recente nota (publicada em 14/11/2020 e atualizada em 17/11/2020) dos comandantes militares com o ministro da defesa onde elogiam o Presidente da República, opinam sobre a defesa das instituições e da sua transparência (o que não é papel das FFAA), defendem o conceito da época da ditadura militar, de “segurança e desenvolvimento” e só destacam as atividades subsidiárias e de GLO (Garantia da Lei e da Ordem). Este posicionamento é uma definição clara do conceito de autonomia tutelar, respaldada na interpretação de dispositivos constitucionais e infraconstitucionais.

O desastre no enfrentamento da pandemia, o agravamento da crise econômica e social, o isolamento internacional do Brasil, a degradação institucional, o desastre administrativo e a crise ambiental, o negacionismo fundamentalista e o incentivo aos valores neofascistas atingem a própria imagem das FFAA como instituição. A destruição aniquiladora das potencialidades do Brasil no plano regional e internacional atingem a autoestima e a confiança do país na relação com Governos, instituições multilaterais e opinião pública internacional. Um outro exemplo deste desastre é a negação da política cultural, a eliminação das instituições de apoio e fomento à cultura e a perda das grandes potencialidades do Brasil neste terreno.

No plano interno as FFAA avançam na ocupação de órgãos públicos, de fiscalização e controle, mudando regras, eliminando instituições e ocupando espaços do poder político civil. A defesa do governo, da política da Ditadura Militar, da tortura e dos torturadores visa legitimar e resgatar os 21 anos do período ditatorial e aplicar uma política autoritária buscando criar uma hegemonia destes valores antidemocráticos.

A “lei e a ordem” é uma orientação de Estado que busca preservar uma das características das FFAA ao longo da nossa história. Das sete constituições brasileiras, apenas duas não falam deste princípio que está hoje na Constituição de 1988, no artigo 142. Esse conceito político serve para institucionalizar a intervenção nas questões de segurança pública, na tutela sobre os poderes da República e para normalizar uma supremacia sobre os demais poderes.

Essa visão doutrinária está presente na história militar do Brasil, principalmente a partir da proclamação da República de 1889. Nos tempos atuais esse conceito atende às exigências do modelo neoliberal, contra a democracia e os direitos, viabilizando as reformas econômicas que interessam ao capital, criminalizando a política e assim chegando a vedar as alternativas de esquerda. Esse modelo antidemocrático reproduz no Brasil a influência da direita internacional na reestruturação do capitalismo e nos novos parâmetros da geopolítica global. Por outro lado, é em nome dessa política que os militares defendem uma espécie de revanchismo em relação às experiências democráticas da transição política, da nova República, da Constituição de 1988, do governo FHC e dos governos Lula e Dilma.

A atualização desta política está sendo decisiva para viabilizar o processo de construção de um autoritarismo conservador e de conivência com as manifestações neofascistas e milicianas, influenciando a pauta fundamentalista contra os direitos das mulheres, dos negros e das negras, da comunidade LGBTQ+ e das populações originárias. Portanto não podemos discutir e definir o papel político dos militares como se fosse um assunto em si isolado da conjuntura política e das características do Estado brasileiro.

Ao longo da nossa história, nas crises políticas do século XX, as FFAA exerceram um intervencionismo político em nome de uma ordem genérica que serve para tudo; na verdade servem para defender o status quo e invariavelmente se associarem com os interesses das classes dominantes. Este elemento constitutivo na formação do Estado brasileiro tem que ser enfrentado a partir de uma visão radicalmente democrática na organização do Estado de direito. Sem isso, mesmo nos momentos de democracia liberal, como de 1946 a 1964, e de 1979 a 2016, o regime democrático fica como algo inconcluso.

Na oposição sistêmica ao governo do capitão, às suas políticas e seus apoiadores, é necessário enfrentar, além do low fare do sistema de justiça e do monopólio midiático, a tutela política das FFAA como parte integrante do consórcio oligárquico burguês do estado brasileiro. A situação política, a avaliação do atual governo e o seu fim, têm relação direta com as mudanças democráticas e estratégicas do papel das FFAA com desdobramentos inevitáveis nas suas funções constitucionais e na mudança das questões propriamente militares. Pouco adiantam mudanças cosméticas como já ocorreram no passado.

Os compromissos são mais profundos do que aparentam, os vínculos nasceram na campanha, na montagem do atual governo e na viabilização de suas políticas, não podemos ter ilusão em manifestações individuais de integrantes das FFAA já que a instituição está se comprometendo com decisões políticas, o que terá consequências profundas, negativas ou positivas, no desenlace do atual momento político. Nesse tipo de abordagem a democracia é primordial na condução das mudanças políticas e constitucionais, inclusive nas questões especificamente militares.

A negação de uma geopolítica de cooperação regional na América do Sul baseada no apoio mútuo e sem conflitos antagônicos é fundamental para viabilizar as ações complementares numa região estratégica do ponto de vista de recursos naturais, de aspectos geográficos e de mercado. Não podemos perder o protagonismo e nos tornar insignificantes no cenário mundial, isso é algo inimaginável e ultrapassa todos os limites do razoável; a perda de protagonismo regional trará prejuízos para o que representamos como nação soberana. Portanto é inaceitável a condição de submissão e vassalagem perante os Estados Unidos, já que a política nacional de defesa deve orientar-se para a boa relação entre a política externa Sul-Sul e a diplomacia militar. Isto é, uma política externa “ativa e altiva”. Neste sentido quero reafirmar a importância dos objetivos da política nacional de defesa:

I . Garantir a soberania, o patrimônio nacional e a integridade territorial:

II . Defender os interesses nacionais, as pessoas, os bens e os recursos brasileiros no exterior;

III . Contribuir para a preservação da coesão e unidade nacionais;

IV . Contribuir para a estabilidade regional;

V . Contribuir para a manutenção da paz e da segurança internacionais;

VI . Intensificar a projeção do Brasil no concerto das nações e sua maior inserção em processos decisórios internacionais;

VII. Manter as Forças Armadas aprestadas, modernas e integradas; com crescente profissionalização, operando de forma conjunta e adequadamente desdobradas no território nacional;

VIII. Conscientizar a sociedade brasileira da importância dos assuntos de defesa do país;

IX . Desenvolver a Base Industrial de Defesa Nacional, orientada para o desenvol- vimento e consequente autonomia em tecnologias indispensáveis;

X . Estruturar as Forças Armadas em torno de capacidades, dotando-as de pessoal e material compatíveis com os planejamentos estratégicos e operacionais;

XI . Desenvolver o potencial de logística de defesa e de mobilização nacional.1

Quero destacar que este avanço nas definições estratégicas não se concretizou com mudanças estruturais na organização estatal entre as quais as orientações para as FFAA. Neste sentido é necessária uma avaliação de como tratamos as mudanças necessárias quando governamos o país; predominou uma visão burocrática e rotineira no tratamento dos comandos militares e no próprio ministério da Defesa no 1º ano de mandato Lula. Não alteramos padrões e normas de funcionamento na área da formação e da inteligência militar.

Neste balanço das nossas limitações e compreensões me incluo auto criticamente na elaboração e no debate destas mudanças; considero que a Comissão Nacional da Verdade deveria ter se instaurado no primeiro mandato Lula e deveríamos ter construído uma orientação política para que os militares admitissem a prática de terrorismo de Estado e assumissem uma reparação pública perante a sociedade. Ao invés disso a lei de Anistia foi convalidada pelo Supremo Tribunal Federal, o crime de tortura não foi considerado imprescritível e predominou o conceito de Anistia recíproca.

Outra referência importante é a resolução do VI Congresso do PT sobre FFAA, realizado em 2017, que defende que “Esse processo de democratização inclui o fortalecimento e a reformulação do papel das Forças Armadas, com sua dedicação exclusiva à defesa nacional e a programas de integração territorial. Também são imprescindíveis a aplicação das recomendações prescritas pela Comissão Nacional da Verdade acerca dos direitos humanos e a alteração dos currículos das escolas de oficiais, expurgando valores antinacionais e antidemocráticos como o elogio ao golpe de 1964 e ao regime militar que então se estabeleceu.”2

Se é verdade que a Comissão Nacional da Verdade não foi capaz de construir uma posição politica que houve a prática de terrorismo de Estado admitida pelos militares, no período da Ditadura militar, e de reparação perante a sociedade dos crimes contra os direitos humanos é também verdade que pela primeira vez na história política brasileira o Estado promoveu um levantamento minucioso e detalhado sobre uma experiência histórica e os crimes de Estado. É fundamental no que diz respeito à formação doutrinária dos militares, modernizar os conceitos de defesa nacional, romper com a visão binária “amigo e inimigo” e enfrentar com uma política dissuasória, as nossas vulnerabilidades pelo mar, pelo espaço e no campo cibernético. Esta é uma política dissuasória, que não tem nada a ver com o conceito de inimigo interno e de atividades de garantia da lei e da ordem.

As diretrizes da Estratégia Nacional de Defesa elaborada no Governo Lula definiram claramente os novos desafios de uma estratégia de defesa nacional. O nosso principal avanço foi a elaboração de uma estratégia nacional de defesa cujas diretrizes deixaram claros os novos desafios de uma política para a defesa nacional, e, mesmo que tenham sido só aceitas e não assimiladas pelos militares, considero um excelente ponto de partida. Destaco então as seguintes diretrizes essenciais:

1 – Dissuadir a concentração de forças hostis nas fronteiras terrestres e nos limites das águas jurisdicionais brasileiras, e impedir-lhes o uso do espaço aéreo nacional. Para dissuadir, é preciso estar preparado para combater. A tecnologia, por mais avançada que seja, jamais será alternativa ao combate. Será sempre instrumento do combate.

2 – Organizar as Forças Armadas sob a égide do trinômio monitoramento/controle, mobilidade e presença. Esse triplo imperativo vale, com as adaptações cabíveis, para cada Força. Do trinômio resulta a definição das capacitações operacionais decada uma das Forças.

3 – Desenvolver as capacidades de monitorar e controlar o espaço aéreo, o território e as águas jurisdicionais brasileiras. Tal desenvolvimento dar-se-á a partir da utilização de tecnologias de monitoramento terrestre, marítimo, aéreo e espacial que estejam sob inteiro e incondicional domínio nacional.

4 – Desenvolver, lastreada na capacidade de monitorar/controlar, a capacidade de responder prontamente a qualquer ameaça ou agressão: a mobilidade estratégica. A mobilidade estratégica – entendida como a aptidão para se chegar rapidamente à região em conflito – reforçada pela mobilidade tática – entendida como a aptidão para se mover dentro daquela região – é o complemento prioritário do monitoramento/controle e uma das bases do poder de combate, exigindo, das Forças Armadas, ação que, mais do que conjunta, seja unificada. O imperativo de mobilidade ganha importância decisiva, dadas a vastidão do espaço a defender e a escassez dos meios para defendê-lo. O esforço de presença, sobretudo ao longo das fronteiras terrestres e nas partes mais estratégicas do litoral, tem limitações intrínsecas. É a mobilidade que permitirá superar o efeito prejudicial de tais limitações.

5 – Aprofundar o vínculo entre os aspectos tecnológicos e os operacionais da mobilidade, sob a disciplina de objetivos bem definidos. Mobilidade depende de meios terrestres, marítimos e aéreos apropriados e da maneira de combiná-los. Depende, também, de capacitações operacionais que permitam aproveitar ao máximo o potencial das tecnologias do movimento. O vínculo entre os aspectos tecnológicos e operacionais da mobilidade há de se realizar de maneira a alcançar objetivos bem definidos. Entre esses objetivos, há um que guarda relação especialmente próxima com a mobilidade: a capacidade de alternar a concentração e a desconcentração de forças, com o propósito de dissuadir e combater a ameaça.

6 – Fortalecer três setores de importância estratégica: o espacial, o cibernético e o nuclear. Esse fortalecimento assegurará o atendimento ao conceito de flexibilidade. Como decorrência de sua própria natureza, esses setores transcendem a divisão entre desenvolvimento e defesa, entre o civil e o militar. Os setores espacial e cibernético permitirão, em conjunto, que a capacidade de visualizar o próprio país não dependa de tecnologia estrangeira e que as três Forças, em conjunto, possam atuar em rede, instruídas por monitoramento que se faça também a partir do espaço. O Brasil tem compromisso – decorrente da Constituição e da adesão a Tratados Internacionais – com o uso estritamente pacífico da energia nuclear. Entretanto, afirma a necessidade estratégica de desenvolver e dominar essa tecnologia. O Brasil precisa garantir o equilíbrio e a versatilidade da sua matriz energética e avançar em áreas, tais como as de agricultura e saúde, que podem se beneficiar da tecnologia de energia nuclear. E levar a cabo, entre outras iniciativas que exigem independência tecnológica em matéria de energia nuclear, o projeto do submarino de propulsão nuclear.

7 – Unificar e desenvolver as operações conjuntas das três Forças, muito além dos limites impostos pelos protocolos de exercícios conjuntos. Os instrumentos principais dessa unificação serão o Ministério da Defesa e o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas. Devem ganhar dimensão maior e responsabilidades mais abrangentes. O Ministro da Defesa exercerá, na plenitude, todos os poderes de direção das Forças Armadas que a Constituição e as leis não reservarem, expressamente, ao Presidente da República. A subordinação das Forças Armadas ao poder político constitucional é pressuposto do regime republicano e garantia da integridade da nação.3

Há uma diferença entre ostentação de poder em torno de símbolos, narrativas e auto afirmação ideologizada e do enfrentamento das nossas vulnerabilidades no que diz respeito à autonomia decisória de projeção do poder soft.

A luta pela democracia radical, como já falei, exige o enfrentamento da questão das FFAA na relação com o Estado e a sociedade. Neste sentido olhamos o retrovisor criticamente a partir das experiências insuficientes, limitadas no tratamento deste tema, inclusive quando governamos o país. Esta tarefa exige compreensão, definições claras e capacidade política de enfrentar os desafios e os dilemas históricos de nosso país.

A mudança do artigo 142 (da GLO) da Constituição é um ponto importante da luta democrática. Já mostramos que o conceito de lei e ordem serve a uma política de segurança e não de defesa nacional. Ao mesmo tempo, o próprio artigo dá margem a um exclusivismo ideologizado do conceito que se faz de pátria para justificar o intervencionismo político e não deixa clara a relação com os demais poderes constitucionais.

Achamos necessário a extinção do sistema de justiça militar objetivando diminuir o corporativismo e a impunidade. Outra questão necessária é separar a inteligência propriamente militar, da inteligência de governo, temos que evitar o poder paralelo deste sistema que acaba corroendo o Estado democrático de direito.

Quando falamos da desmilitarização da segurança pública não queremos menosprezar este importante tema; ao lado da reforma na segurança pública dos estados propomos a criação da guarda nacional vinculada ao Ministério da Justiça, com atuação nas áreas sensíveis do crime organizado e das forças milicianas, no setor portuário e nas fronteiras. Outra mudança importante é que os integrantes das carreiras de Estado entre as quais os militares, devem se afastar das funções públicas e políticas observando o princípio da “quarentena” (intervalo entre estas funções), com base no princípio do ônus e do bônus: quem tem a prerrogativa de prender, investigar, julgar, denunciar e de exercer o monopólio das armas, precisa assumir o ônus nas escolhas de outras funções.

O enfrentamento estratégico da luta democrática na forma e no conteúdo exige uma posição clara em relação ao caráter autoritário do Estado brasileiro que se manifestou em todas as crises políticas com soluções arbitrárias e golpistas, e é neste sentido que defendemos mudanças estruturais nas instituições políticas, entre as quais o papel das FFAA nas suas relações com a sociedade e com Estado e o governo. Poucas vezes a questão democrática foi tratada com radicalidade na oposição ao consórcio oligárquico-burguês, por isso não devemos isolar as bandeiras específicas da luta democrática deste foco estratégico. O desafio do PT e das esquerdas é fundir as bandeiras da luta democrática com uma visão programática por novas instituições políticas.4

*José Genoino foi deputado federal do PT, presidente do PT e assessor de Celso Amorim no Ministério da Defesa (2013).

DCM.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

XADREZ DA MARCHA IRRESISTÍVEL DO MILITARISMO, POR LUIS NASSIF

Pelos dados que mostraremos na sequência, não interprete as últimas manifestações do Supremo - como a prisão do ex-PM Daniel Silveira, como um xeque no militarismo. Pelo contrário.

PEÇA 1 – para entender o xadrez

Para entender o jogo atual, é necessário dividir o bolsonarismo em duas vertentes: a militar e os aloprados.

Os aloprados são os discípulos de Olavo de Carvalho, cujo pé de bode para entrar no poder são os filhos de Bolsonaro, Eduardo e Carlos. E também o próprio presidente, que os considera seus verdadeiros seguidores.

A banda militar é a que se associa a Bolsonaro através dos generais Augusto Heleno e Hamilton Mourão, trazendo depois outros Ministros militares.

No período preparatório para a posse de Bolsonaro, os dois lados se digladiaram intensamente, disputando cada palmo de governo. Armados com dados da inteligência, os militares apareciam com dossiês sobre diversos candidatos a cargos no governo, visando desqualificá-los para ocupar espaço.

Posteriormente, houve conflitos pesados entre militares e olavistas, por ocupação de espaço.

Pelos dados que mostraremos na sequência, não interprete as últimas manifestações do Supremo – como a prisão do ex-PM Daniel Silveira, como um xeque no militarismo. Pelo contrário, as medidas adotadas podem ter sido exclusivamente em defesa do Supremo. Mas foram precedidas por contatos com os militares.

Como revelou o presidente do STF, Luiz Fux, em entrevista à Folha, houve um contato com o Ministro da Defesa Fernando Azevedo, que esclareceu partes do livro de Villas Boas. No livro, Villa Boas dizia que o Twitter publicado na véspera do julgamento de Lula pelo STF – e encarado como ameaça – havia sido preparada com o Alto Comando. Azevedo esclareceu que Villas Boas pretendia soltar um Twitter mais radical. Em função disso, generais do Alto Comando o procuraram e o convenceram a amenizar a mensagem.

Com o saldo conduto definido, Fux conversou com Alexandre Moraes que avançou com mão de ferro sobre o deputado. Obviamente, em defesa do Supremo. Mas, tendo como subproduto o fortalecimento da banda militar do governo.

PEÇA 2 – o falcão Alexandre de Moraes

Alexandre de Moraes recebeu a incumbência de assumir a tarefa e não apenas por seu estilo impetuoso. Mas também por uma ligação umbilical com a militarização de governos.

Na Secretaria de Segurança de São Paulo, governo Geraldo Alckmin, foi figura central na radicalização da segurança, com uma série de medidas polêmicas, e na colocação de militares na área pública.

Em 2015, sob seu comando, uma tropa de choque da Polícia Militar invadiu o Centro Paula Souza, arrastando estudantes para fora.

Não tomou nenhuma medida contra uma chacina promovida por Policiais Militares para vingar a morte de um colega. Resultou em 19 pessoas mortas e 5 feridas e nenhuma apuração conclusiva.  Em sua gestão, houve aumento generalizado de violência policial. Segundo a explicação, “confrontos com a policia cresceram porque a criminalidade está mais violenta”. E também impôs sigilo em operações.

Depois, como Ministro da Justiça de Temer,  paralisou a polícia nacional de Direitos Humanos por 90 dias. Aliás, mal assumiu, Temer extinguiu o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direito Humanos, tornando-os secretarias sob o Ministério da Justiça.

No episódio das chacinas dos presídios em Manaus, que levou à morte 56 pessoas, montou rapidamente uma plano de segurança liberando a violência policial, a ponto de provocar a demissão de 8 diretores do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.

Com ele teve início a militarização do governo federal. Indicou um coronel da Polícia Militar, Roberto Alegretti, para dirigir a Secretaria Nacional de Política Sobre Drogas (SENAD). E também o aumento da repressão contra crianças e adolescentes.

Para fortalecer o governo Temer, e conquistar a adesão militar, lançou a Operação Hashtag, contra um grupo de radicais que atuava em redes sociais, às vésperas dos Jogos Olímpicos de 2016. Era um grupo sem acesso a armas e o máximo que foi identificado foi a comemoração  dos atentados de Nice por mensagem privada.

No entanto, foram classificados como célula do grupo terrorista Estado Islâmico do Iraque e do Levante Brasil.  Foi o primeiro trabalho juntando ABIN, PF e Forças Armadas e agências internacionais. E denunciados de acordo com a Lei 13.260, sancionada pela presidente Dilma Rousseff, tipificando crimes de terrorismo.

15 pessoas foram presas temporariamente por 60 dias. Foram denunciados inicialmente 8 pessoas. Em junho de 2017, mais 6 pessoas.

Houve plena repercussão do “jornalismo investigativo”. No dia 21 de julho de 2016, a frase de abertura do Jornal Nacional foi taxativa: “Dez suspeitos de terrorismo na cadeia”. E endossava acriticamente a versão do governo, de que os dez suspeitos “planejavam ataques durante as Olimpíadas”.

Na entrevista coletiva, Moraes tergiversou. Admitiu que era “uma célula amadora, sem nenhum preparo”. Segundo ele, a operação precipitara-se porque “os suspeitos teriam começado os preparativos para uma ação”. A prova seria a tentativa de comprar uma arma AK-47, pela Internet, por um deles, Alisson Luan de Oliveira, 19 anos. Depois, descobriu-se que era um e-mail de 2015, e não nas vésperas das Olimpíadas.

Com a imprudência dos apressados, Moraes apontou como líder da suposta celular Levi Fernandes de Jesus, de 21 anos. O inquérito da PF não comprovou a liderança. A acusação foi feita pelo notório Ministério Público Federal do Paraná e aceita pelo juiz Marcos Josegrei da Silva.

Na fase inicial, houve interrogatórios policiais sob total incomunicabilidade, veto ao acesso de um defensor público, negação de audiência de custódia e de ciência dos reais motivos da prisão.

No final do inquérito não havia nada, nem risco de atentado, nem planos de atentado e não era célula terrorista, apenas um grupo de rede social.

O clima de paroxismo criado levou ao linchamento de outro detido, Valdir Pereira da Rocha, na cadeia pública de Várzea Grande próximo a Cuiabá. Ele não foi denunciado pelo MPF, por considerar sua participação secundária. Mas, em função do alarde teve uma prisão preventiva (por outro crime) revogada e colocado na prisão com outros detentos. Foi linchado por ser “terrorista”.

A exposição do caso na TV certamente contribuiu para esta morte. Depois que foi divulgado que não havia provas contra Valdir, o próprio Comando Vermelho pediu a cabeça dos líderes da chacina, mostrando um senso de justiça superior ao de Moraes no episódio do massacre de Osasco.

Os abusos foram evidentes. A defensoria apontou as falhas principais do inquérito:

* nenhum dos acusados adquiriu artefatos terroristas, traçou planos de atentado, adquiriu passagens rodoviárias ou aéreas, ou detinham documentos com efetivo intento migratório e de engajamento terrorista.”

* estavam geograficamente distantes;

* parte das provas foi colhida de forma irregular nos grupos de conversa do Telegram, “agente infiltrado não-policial” e “sem autorização judicial”, provavelmente um jornalista do Fantástico recolhendo material para uma reportagem.

A denúncia do MPF-PR é curiosa. Informa que os acusados usavam aplicativos criptografados para trocar informações sensíveis, “mas continuavam utilizando os meios de publicações públicos para promover, também abertamente, o Estado Islâmico e atrair novos membros”. Como se um grupo terrorista profissional fosse fazer apologia de crime em redes sociais abertas.

PEÇA 3 – a militarização com Temer

Mal assumiu, em maio de 2016, Temer retirou o GSI (Gabinete de Segurança Institucional) com controle sobre a ABIN (Agencia Brasileira de Inteligência) e entregou ao comando do general Sérgio Etchgoyen.

Temer criou o Ministério Extraordinário de Segurança Pública, transferiu para lá Raul Jungman e colocou em seu lugar, no Ministério da Defesa, o general Joaquim Luna e Silva.

O primeiro sinal foi a já mencionada entrega a um militar, Roberto Allegretti, coronel da PM, da Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas.  No dia 1o de março de 2016, Allegretti criou polêmica ao defender o uso de fardas por crianças, para ajudar a construir, na sua identidade, um “militar que participa de algum ato heróico”.

Entregou também a Funai (Fundação Nacional do índio) ao general Franklimberg Ribeiro de Freitas, indicado pelo Partido Social Cristão (PSC), partido que sempre procurou criminalizar as demarcações de terras indígenas. A reação de diversos setores o fez recuar na indicação.

A chefia de Gabinete da Casa Civl também foi entregue a um militar,.

Foi decorrência óbvia da indicação de Sérgio Etchegoyen para Chefe do Gabinete de Segurança Institucional. A indicação foi aprovada pelos comandantes das três forças, puxada pelo general Villa Boas, comandante do Exército.

Outra decisão que afrontava a Constituição foi entregar o comando da intervenção do Rio de Janeiro a um general, contrariando o que dispunha a Constituição. Ao mesmo tempo, alterou a legislação para que crimes praticados por militares, nas operações de rua, fossem julgados pela Justiça Militar.

Culminou com a transferência do Ministro Raul Jungmann para o recém criado Ministério Extraordinário de Segurança Pública, colocando no Ministério da Defesa o general Joaquim Luna e Silva – o mesmo que assumiu, agora, a presidência da Petrobras.

Colocou na chefia do de gabinete da Casa Civil o general Roberto Severo Ramos.

A militarização obedecia a uma lógica natural, depois que a Lava Jato, com a anuência do STF, destruiu o sistema político brasileiro e permitiu a ascensão ao comando do país do mais suspeito grupo político pós-redemocratização – o Centrão. Sabendo que seria um governo fraco, com vários integrantes na mira da Justiça, Temer e Alexandre Moraes trataram de cooptar o segmento militar.

PEÇA 4 – o pensamento militar

A eleição de Bolsonaro foi o coroamento de uma volta gradativa dos militares ao jogo político.

Recentemente, em entrevista ao Deutsch Welle, o antropólogo Piero Leirner, sintetizou os pontos básicos da construção do pensamento militar brasileiro contemporâneo.

Com o fim da ditadura militar, não houve uma punição sequer pela quebra de hierarquia, como não houve nenhuma apuração de crimes contra a humanidade, a partir do pacto da anistia, na qual Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim, Ministros do STF, julgaram falar em nome do povo.

Esse silêncio obsequioso foi abrindo espaço cada vez mais para a volta do protagonismo militar. Em sua opinião, a politização do Exército renasceu  em 2007, com a reação à homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Em abril de 2008, o comandante militar da Amazônia, o notório general Augusto Heleno, reuniu-se com o comandante do Exército, Enzo Peri, para explicar as críticas à reserva em palestra no Clube Militar sob o título significativo de “Brasil, Ameaças à Sua Soberania”.  E sofreu punição.

A politização atingiu o paroxismo quando o general Villas Boas assumiu o comando do Exército, exercitando um falso discurso legalista para fora, e estimulando a politização da força para dentro, refletindo a adesão das famílias militares às manifestações de rua pelo impeachment. Segundo Leirner, “tais assuntos eram intensamente discutidos com o alto-comando, para mantê-los informados e garantir o alinhamento até os escalões mais baixos e o pessoal da reserva.”

A partir de 2014, a politização ganhou novos ares, inclusive com a permissão para campanha dentro de uma Academia Militar. O que foi feito por Bolsonaro entre 2014-2018, obviamente com pleno conhecimento e autorização do Alto Comando.

Para legitimar sua atuação, o Exército criou sua versão de “inimigo externo”. O tema preferencial passou a ser a Amazônia, a vulnerabilidade das fronteiras, a ação contra o crime organizado, elementos centrais do que foi definido como o nova doutrina de segurança, a “guerra híbrida”.

Em cima desse novo padrão, cria-se o Programa Integrado de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON), que passa a exigir do Exército contatos frequentes com o Judiciário, Ministério Público Federal, Polícia Federal e ação política no Congresso, disputando verbas.

Paralelamente, iam criando uma nova narrativa, à altura da “guerra híbrida”, como a versão interna de que setores do PT eram os próprios agentes produtores de ameaças híbridas. Nesse quadro inseriam as ONGs que atuavam na Amazônia e que seriam agentes para a criação de territórios estrangeiros no país. No livro, aliás, Villas Boas endossa outras bandeiras obscurantistas, tratando o “politicamente correto” como uma bandeira petista para levar o país ao caos. “ O politicamente correto seria, na visão dele, o “disfarce” que as ações imperialistas tomariam para consolidar toda essa arquitetura de ameaças às Forças Armadas e ao Brasil”, explica Leirner. Por esses caminhos tortuosos, foi sendo criada a coesão ideológica entre os militares, transformando a resistência do PT em questão militar.

Um dos pontos centrais da “guerra híbrida” era a manipulação de informações através de redes sociais. Lembra ele que em 2019, o general Rego Barros admitiu que coube ao Exército “mergulhar de cabeça no submundo das mídias sociais, e se tornar o órgão público com maior influência no mundo digital do Brasil”.

Leiner defende a hipótese de que, nas eleições de 2018, a campanha de fake news de Bolsonaro teve participação direta de militares. Mostrava ele que a cúpula bolsonarista contava com a participação de diversos membros das Forças Armadas que já tiveram contato com essas doutrinas da “guerra híbrida”. Além do fato de Bolsonaro ser o candidato favorito da maioria dos 17 generais de quatro estrelas.

Em 14/10/2018, o mesmo Piero Leiner já antecipava o uso de tática militar de ponta na campanha de Bolsonaro. Segundo ele, “a comunicação de Bolsonaro tem se valido de métodos e procedimentos bastante avançados de estratégias militares, manejados de maneira muito inteligente, precisa, pensada. Não se trata exatamente de uma campanha de propaganda; é muito mais uma estratégia de criptografia e controle de categorias, através de um conjunto de informações dissonantes”, explicava ele.

O princípio básico consistia em “um conjunto de ataques informacionais que usa instrumentos não convencionais, como as redes sociais, para fabricar operações psicológicas com grande poder ofensivo, capazes de ‘dobrar a partir de baixo’ a assimetria existente em relação ao poder constituído”.

Em que consiste exatamente isso?

As características principais da guerra híbrida eram as fake news e as contradições entre as principais figuras da campanha, disputando opiniões, divulgando informações desencontradas que “criam um ambiente de dissonância cognitiva”, desnorteando as pessoas, as instituições e a imprensa”.  Nos ambientes de dissonância, diz ele, a troca de informações passa a ser filtrada por critérios de confiança, atuando como “estações de repetição”, liberando Bolsonaro para produzir conteúdo.

Bolsonaro só aparecia depois que os fake news estavam assimilados, dando nos seguidores a ideia de empoderamento, de confirmação de suas teorias e de relacionamento horizontal. Ao contrário dos “poderosos”, que transmitem suas informações de maneira vertical, como políticos, imprensa e instituições.

Para Leirner, por fim, a proliferação de notícias falsas colabora para o deslocamento de poder dentro de instituições centrais à democracia, como a Justiça e as Forças Armadas. “Hoje vemos  setores do Estado, especialmente do judiciário, entrando em modo invasivo, cada um se autorizando a tentar estabelecer uma espécie de hegemonia própria”, diz.

Mesmo tendo mais racionalidade que o bolsonarismo raiz, o pensamento militar não elaborou projetos ambiciosos de construção nacional – como ocorreu nos anos 30 e 64 como agentes da industrialização do país. Hoje em dia, seu pensamento político restringe-se a temas morais e visões conspiratórias sobre a Amazônia.

PEÇA 5 – “antes que um aventureiro lance mão

Sábias palavras de Dom João VI para Dom Pedro 1, aconselhando a colocar a coroa na cabeça, antes que algum aventureiro lançasse mão.

Períodos de vácuo de poder abrem espaço para toda sorte de ambições.

No STF, o amadorismo político e marqueteiro do do Ministro Luis Roberto Barroso julgou que poderia estimular um ativismo político do Judiciário, em parceria com o mercado, para acelerar a entrada do Brasil na era iluminista.

Cabeças com maior compreensão sobre as estruturas de poder, como Gilmar Mendes, trataram de se aproximar do Exército, visando pactos de não-agressão. Culminou com o presidente da corte, Dias Toffoli, convocando um militar como assessor especial.

Por tudo isso, seja qual for o desfecho do governo Bolsonaro, a militarização do poder ganhou uma dinâmica que, se não for revertida, mais cedo ou mais tarde, se tornará irreversível, mesmo com desastres épicos como a participação do general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde.

GGN.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

SETE SITUAÇÕES NAS QUAIS BOLSONARO E ALIADOS CONTRIBUÍRAM PARA A ESCASSEZ DE VACINAS

Bolsonaro não consegue nem colocar uma máscara

Nesta quinta-feira (18), o Brasil completa um mês do início da campanha de imunização contra o novo coronavírus, mas, até a última segunda-feira (15), no entanto, apenas 1,31% das doses de vacinas necessárias para imunizar toda a população brasileira foram aplicadas.

São 5,54 milhões de aproximadamente 420 milhões de doses necessárias, segundo o consórcio dos veículos de imprensa. No total, 5.285.981 pessoas tomaram a primeira dose, e 256.813, a segunda.

Uma das explicações para a baixa taxa de imunização até o momento é a quantidade escassa de doses, que, por sua vez, é explicada pela ausência de um planejamento por parte do governo de Jair Bolsonaro e do Ministério da Saúde.

Segundo Evaldo Stanislau de Araújo, infectologista do Hospital das Clínicas da USP e membro da diretoria da Sociedade Paulista de Infectologia (SPI), “nós vamos conviver com essa situação que ninguém desejava, mas que reflete certamente o planejamento ausente que foi feito por parte do Ministério da Saúde em relação às vacinas”.

Para além da falta de planejamento, o comportamento do governo federal e de seus aliados no Congresso Nacional, desde o início da pandemia, foi caracterizado pelo aspecto negacionista em relação à imunização, concretizado tanto em declarações que lançaram dúvidas sobre a imunização quanto em polêmicas com laboratórios farmacêuticos, governadores brasileiros e órgãos independentes do governo.

Desde então, os fatos que contribuíram para a situação atual de escassez de doses se acumulam. Relembre alguns deles:

Congresso Nacional x Anvisa

O diretor-presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, solicitou ao presidente a exclusão de um trecho da Medida Provisória (MP) nº 1.003, que autoriza o governo federal a aderir ao Instrumento de Acesso Global de Vacinas Covid-19 – Covax Facility. O trecho em questão estabelece um prazo de cinco dias para que a Anvisa autorize o uso emergencial de vacinas que já tenham liberação internacional.

Com o texto aprovado no Congresso Nacional tendo o trecho incluído, não haverá outro caminho que não a aprovação, afirmou Barra Torres, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. “Qualifico esse momento como o mais grave que estamos vivendo da saúde pública nacional nas últimas décadas. Se for dessa modalidade, sem análise técnica da Anvisa, eu não tomarei e não aconselharei ninguém a fazê-lo”, declarou.

“Se isso prosperar, a Anvisa passa a ter papel meramente cartorial, deixa de ter seu poder de análise. O texto acrescenta essa questão que seria automática (a aprovação), completamente isenta de análise”, disse o chefe da Anvisa ao Estadão.

O posicionamento do diretor da Anvisa foi criticado pelo líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), que ameaçou “enquadrar” o órgão. “O que eu apresentar para enquadrar a Anvisa passa aqui (na Câmara) feito um rojão. Eu vou tomar providências, vou agir contra a falta de percepção da Anvisa sobre o momento de emergência que nós vivemos. O problema não está na Saúde, está na Anvisa. Nós vamos enquadrar”, afirmou o deputado.

A tentativa de “enquadrar” a Anvisa faz parte de um movimento do governo federal de tentativas de não depender da Coronavac, associada ao governador paulista, João Doria. Nesse sentido, o Ministério da Saúde tenta avançar na compra das vacinas Sputnik V e da Covaxin, desenvolvidas, respectivamente, na Rússia e na Índia. No entanto, a Anvisa ainda aguarda mais dados sobre a segurança e a eficácia dos imunizantes.

Embates com a Pfizer

No dia 23 de janeiro, o governo federal divulgou uma nota criticando publicamente o laboratório farmacêutico Pfizer por cláusulas impostas para comercialização do imunizante.

Uma das medidas autorizava o governo brasileiro a assumir responsabilidade sobre possíveis efeitos adversos causados pela vacina – as cláusulas que Bolsonaro considera “abusivas” estão previstas em recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e se aplicam a imunizantes aplicados no Brasil há décadas.

Além dos EUA, a União Europeia, Japão, Canadá, Israel, Austrália, México, Equador, Chile, Costa Rica, Colômbia, Panamá e todos os demais países que compraram a vacina da Pfizer aceitaram essas exigências.

“Causaria frustração em todos os brasileiros [comprar as 70 milhões de doses oferecidas pela Pfizer em agosto], pois teríamos (…) que escolher, num país continental com mais de 212 milhões de habitantes, quem seriam os eleitos a receberem a vacina”, argumentou o Ministério da Saúde, em janeiro.

Na época, Bolsonaro afirmou que “na Pfizer, está bem claro no contrato: ‘nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral’. Se você virar um jacaré, é problema de você. Não vou falar outro bicho aqui para não falar besteira. Se você virar o super-homem, se nascer barba em alguma mulher aí ou um homem começar a falar fino, eles não têm nada a ver com isso”.

O posicionamento foi recebido com indignação por setores da oposição. A deputada federal Gleisi Hoffmann, presidenta nacional do PT, afirmou: “Essa nota é pura confissão de culpa, perdemos 70 milhões de doses nessa brincadeira! Criminoso, Bolsonaro estaria no banco dos réus em qualquer lugar do mundo.”

Cancelamento do acordo das vacinas CoronaVac

Em outubro de 2020, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, anunciou um acordo para a compra de 46 milhões de doses da CoronaVac, produzida em parceria entre o laboratório chinês Sinovac e o Instituto Butantan.

No entanto, um dia depois, Bolsonaro afirmou que a “vacina chinesa de João Doria” não seria comprovada e cancelou o acordo. “Já mandei cancelar, o presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade”, disse Bolsonaro, nas redes sociais.

Na mesma semana, o presidente afirmou que não compraria nenhuma vacina da China, uma vez que o país teria um “descrédito muito grande”.

“A da China nós não compraremos, é decisão minha. Eu não acredito que ela transmita segurança suficiente para a população. A China, lamentavelmente, já existe um descrédito muito grande por parte da população, até porque, como muitos dizem, esse vírus teria nascido por lá”, disse o presidente.

“Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”

Em novembro do ano passado, Bolsonaro comemorou quando os testes da CoronaVac no Brasil foram suspensos, após a morte de um dos voluntários. “Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Doria queria obrigar a todos os paulistanos a tomá-la. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”, escreveu Bolsonaro nas redes sociais.

Dias depois, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária concluiu que a morte daquele voluntário não tinha relação com a vacina.

“Ninguém vai tomar a sua vacina na marra não, tá ok?”

Na mesma linha, durante uma transmissão ao vivo em suas redes sociais, o presidente afirmou que ninguém tomaria a CoronaVac “na marra”.

“Ninguém vai tomar a sua vacina na marra não, tá ok? Procura outro. E eu, que sou governo, o dinheiro não é meu, é do povo, não vai comprar a vacina também não, tá ok? Procura outro para pagar a tua vacina aí”, disse o capitão reformado.

“A pressa pela vacina não se justifica”

Já em dezembro de 2020, o presidente declarou que não entende o porquê da pressa pela vacina, seguindo os passos de seu ministro da Saúde, que disse não entender porque há tanta “ansiedade” pela imunização.

“A pressa pela vacina não se justifica, porque você mexe com a vida das pessoas”, disse. “Não há guerra, não há politização da minha parte. Nós esperamos uma vacina segura. Parece que a Inglaterra começou a vacinar agora. Por que a gente tem que ser o primeiro?”

Desencontro com o governo indiano

Também em janeiro de 2021, o porta-voz do Ministério do Exterior indiano, Anurag Srivastava, afirmou ao jornal Hindustan Times que o governo brasileiro havia se precipitado ao enviar um avião àquele país para buscar 2 milhões de doses do imunizante produzido pelo Instituto Serum em parceria com a Universidade de Oxford e a farmacêutica AstraZeneca. O porta-voz também disse que era “cedo demais” para enviar a vacina ao Brasil

“O processo de vacinação está apenas no começo na Índia. É muito cedo para dar uma resposta específica sobre o fornecimento a outros países, porque ainda avaliamos os prazos de produção e de entrega. Isso pode levar tempo”, disse Anurag Srivastava. As vacinas chegaram ao Brasil somente 10 dias depois da declaração do porta-voz.

Prefeitos e escassez de vacinas

Nesta terça-feira (16), a Frente Nacional de Prefeitos (FNP) divulgou uma nota na qual afirma que a escassez de doses de vacina está diretamente ligada à condução do Plano Nacional de Imunizações pelo governo federal. Também cobrou respostas do Poder Executivo diante da falta de vacina.

No dia 14 de janeiro, a FNP solicitou ao ministro da Saúde encontros frequentes para o acompanhamento da vacinação no país. Na reunião, o combinado foi de uma reunião entre a comissão de prefeitos e a pasta a cada 10 dias. Passados mais de 30 dias, no entanto, nenhuma reunião foi agendada.

Menos vacinas que todos

“É urgente que o país tenha um cronograma com prazos e metas estipulados para a vacinação de cada grupo: por faixa etária, doentes crônicos, categorias de profissionais etc. Disso depende, inclusive, a retomada da economia, a eração de emprego e renda da população“, afirmam os prefeitos. 

Na corrida da vacinação, segundo a plataforma Our Word In Data, o Brasil está atrás de Rússia, China, União Europeia, Chile, Estados Unidos, Reino Unido, Emirados Arábes e Israel.

O Ministério da Saúde informou que vai disponibilizar, até julho deste ano, 230 milhões de doses de vacinas contra o coronavírus. O planejamento conta com imunizantes ainda não autorizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), como o russo Sputnik V e o indiano Covaxin.

Em reunião com governadores nesta quarta-feira (17), o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, apresentou os contratos para compras de mais vacinas e detalhes sobre o cronograma de entrega e a quantidade adquirida.

Em nota, a pasta informou que os acordos de compra de vacinas com os laboratórios responsáveis pela Sputnik V e a Covaxin devem ser fechados ainda nesta semana. No entanto, os processos para autorização dos imunizantes na Anvisa nem mesmo começaram.

A Bharat Biotech, empresa responsável pela Covaxin ainda não deu entrada no pedido de registro. Já a Sputnik V ainda não é considerada uma vacina em testes no Brasil pela Anvisa.

Ainda de acordo com o Ministério da Saúde, 2 milhões de doses da AstraZeneca/Fiocruz, importadas da Índia, e 9,3 milhões da Sinovac/Butantan, produzidas no Brasil serão entregues ainda este mês. No mês seguinte, estão previstas outras 34,9 milhões.

RBA.