Peça 1 – tem jogo
A pesquisa DataFolha, com a contagem de 58 a 42 para
Bolsonaro em relação a Fernando Haddad, mostra que tem jogo.
Motivo 1 – Em outras eleições, com menos
volatilidade, houve viradas. A eleição atual é atípica, com mudanças radicais
de posição, criação de ondas de tsunami. Por isso mesmo, não há estratificação
de votos. Nem mesmo entre aqueles que, no primeiro turno, garantiam votos
consolidados.
Motivo 2 – com Bolsonaro se posicionando
sobre diversos temas, em cada posição que assume deixa de ser a encarnação
irracional da unanimidade antissistema, e passa a ser uma pessoa de carne e
osso, sendo desenhada por cada opinião. Aliás, é curioso que nas duas
únicas vezes em que mostrou bom senso – quando disse que a reforma da
previdência deveria ser consensual e que o governo não poderia abrir mão do
controle sobre a geração de energia – foi alvo de críticas de Carlos Alberto
Sardenberg na CBN, filho dessa mistura de liberalismo econômico cego e
autoritarismo político míope. Pelo menos a irracionalidade cega do mercado
ajuda a dissipar sua adesão irracional a Bolsonaro.
Motivo 3 – a onda de ataques de seus
seguidores a adversários por todo o país e a constatação clara de que será um
governo de arbítrio, de selvageria, do qual não sairá incólume nenhuma forma de
poder, da Justiça à mídia.
O exemplo mais flagrante é o inacreditável ex-juiz Wilson
Witzel (PSC), candidato ao governo do Rio de Janeiro, ameaçando prender seu
opositor, o ex-prefeito Eduardo Paes e se valendo de um amigo juiz para
inabilitar outro candidato, Antony Garotinho. E ainda anunciando que acabará
com a Secretaria de Segurança para evitar interferência civil no trabalho da
polícia.
Os sinais de fascismo se tornaram tão evidentes que não
comportam mais o jogo de cena de fingir que não se vê a guerra. Até o Ricardo
Boechat vai se dar conta de que as violências que se espalham por todo país não
podem ser comparadas a brigas de torcidas. Entre outros aspectos, pela relevante
razão de que nenhuma torcida organizada esteve perto de assumir o poder de
Estado.
Já se percebe um movimento nítido da mídia de lançar luzes
sobre o bolsonarismo. Nos últimos dois dias, a mídia começa a dar o devido peso
a essa onda de violência, sendo oficialmente apresentada a um fenômeno que só
existia nas suas fantasias antipetistas: o fascismo em estado bruto.
O sistema Globo é particularmente influente nas grandes
metrópoles do sudeste, onde há maior concentração de votos para Bolsonaro. E
poderá jogar um pouco de luz nos grupos empresariais, tão primários quanto
texanos de fins do século 19.
Resta a outra incógnita da equação: o desafio de reduzir o
antipetismo.
O caminho passa pelo grande acordo nacional, que reedite o
pacto da Nova República. E, aí, Fernando Haddad poderá ter papel fundamental.
Peça 2 – o fim do ciclo
da Nova República
Há vários pontos em comum entre os meses que antecederam a
Nova República e o quadro atual.
A Nova República foi um pacto de governabilidade que se
seguiu ao fim da ditadura.
Nos últimos anos, o país experimentou um novo tipo de
ditadura, o estado de exceção em vigor no país, com perseguição aos inimigos,
censura ao livre pensamento, atentados à constituição pelo Supremo Tribunal
Federal, abusos de juizes, procuradores e delegados, e a mídia encetando uma
campanha de ódio em tudo similar aos anos 60. O resultado foram as explosões de
violência, preconceito, intolerância, potencializados pelas redes sociais e de
whatsapp.
Agora, se tem a bocarra escancarada da besta, a poucas
semanas de engolfar o país. E, ainda que algo tardiamente, vai caindo a ficha
de todos os protagonistas políticos, das instituições, mídia, partidos
políticos, sobre os riscos de venezuelização do país.
São os gatilhos que dão início a um novo pacto de
governabilidade.
Peça 3 – a concertação
brasileira
Quando a Espanha estrebuchava no período pós-franquismo, sem
conseguir se encontrar, surge a figura de Felipe Gonzales. Primeiro, unificou a
esquerda. Depois, fez um movimento importante para o centro, colocando o
aprofundamento da democracia como a meta maior. Esvaziou a direita, consolidou
a socialdemocracia e acertou um pacto que garantiu a consolidação da democracia
espanhola e se manteve por muitos anos.
No Brasil, nenhuma figura pública está mais apta a
desempenhar esse papel do que Fernando Haddad. Mas, para tanto, terá que
enfrentar um desafio freudiano: matar o pai.
Haddad nutre por Lula o reconhecimento genuíno de um
intelectual capaz de entender sua grandeza política. Mas, no novo tempo que se
avizinha, terá a missão de enterrar o lulismo. Aliás, o próprio Lula há tempos
havia se dado conta da necessidade de superação dessa etapa, quando tentou
emplacar Eduardo Campos, quando apostou em Dilma, a gestora, e mesmo agora,
quando ensaiou aproximação com Ciro Gomes. Mas, principalmente, quando apostou
em Haddad como seu sucessor, por várias razões.
Primeiro, por ter feito carreira no partido que mais se
aproximou do desenho social-democrata, o PT. Depois, por sempre ter colocado a
negociação, a racionalidade como ponto central de sua atividade como Ministro e
como prefeito premiado de São Paulo, abrindo as portas para a contribuição de
diversos setores – do MTST a ONGs privadas – sem relação direta com o partido.
Finalmente, por uma idoneidade não apenas moral, como intelectual, de jamais
ter tergiversado de suas posições políticas, nem cedendo ao populismo, nem aos
acenos do mercado.
Ou seja, tem-se as condições políticas para o cargo, um
roteiro razoavelmente definido. Resta saber se Haddad e o próprio PT estarão à
altura do momento.
Peça 3 – as condições
para o pacto
O primeiro ponto é isonomia com essa história da autocrítica.
O PT deve, sim, uma autocrítica por ter enveredado pelas
regras do jogo político tradicional. E se a autocrítica é condição para o
eleitor ter a garantia de que não repetirá os malfeitos, é de se esperar uma
autocrítica da Globo, que não mais estimulará o estado de exceção, como fez de
2013 para cá, processo que resultou na ascensão do bolsonarismo. Haveria
necessidade também de autocrítica do STF pela quantidade de vezes que se curvou
à pressão da besta das ruas, atropelando a Constituição; da Procuradoria Geral
da República, nem se pense em Rodrigo Janot, que não tem dimensão para esses
gestos, mas de Raquel Dodge e da cúpula do Ministério Público? Do PSDB por ter
abdicado da princípios democráticos e impulsionando o golpe
Para poupar todos esses personagens da profunda
irresponsabilidade com que trataram o futuro do país, há uma maneira mais
indolor e eficaz de purgar os erros e de mostrar o novo: um grande pacto
nacional contra a besta que, desde já, acene para a opinião pública sobre a
extensão do pacto, seus compromissos sociais, com o desenvolvimento e com o
combate sistemático à violência que está grassando de cabo a rabo no país, no
rastro do fenômeno Bolsonaro.
Peça 4 – os personagens
O desenho ideal futuro para o pacto seria um novo partido, da
socialdemocracia brasileira, com predomínio do PT – como único partido que se
manteve estruturado nesse tsunami, por sua base social e sindical. Mas abrindo
as portas para os setores liberais do PSDB, que serão jogados ao mar caso João
Dória Jr seja eleito governador. E todos os setores racionais do empresariado,
das organizações sociais, do pequeno e micros empresários, da indústria, assim
como os legalistas do Poder Judiciário. E, obviamente, da mídia, com ambos os
lados tapando suas narinas.
O segundo turno poderá ser a semente dessa movimentação que
coloque, em um partido, o Brasil civilizado, institucional, democrático, contra a barbárie.
A Nova República exigiu um novo modelo partidário, desde que
o bipartidarismo do regime militar se espatifou. Agora se tem um quadro no qual
os dois partidos que garantiram a governabilidade nas últimas décadas, não
podem mais caminhar sozinhos: o PSDB morto por inanição; o PT pela constatação
de que, sozinho, provavelmente não conseguirá nem a vitória nas eleições, nem a
governabilidade.
Esse risco enorme deverá convencer sua executiva a abrir mão
do controle absoluto do processo e repartir poderes – dentro da estratégia que
vem sendo costurada por Jacques Wagner.
Tem-se, então, o barco com náufrago em um mar coalhado de
tubarões. Terão que se acertar.
É nesse clima que poderá emergir a figura de Fernando Haddad.
Se bem-sucedido, poderá ser o Felipe Gonzales brasileiro. Malsucedido, afundará
junto com a democracia brasileira, a liberdade de imprensa, a liberdade de
expressão, a Constituição e qualquer réstia de civilização.
GGN