"Não
julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados;
perdoai, e sereis perdoados"(Lucas 6:37). "Fortalecei as mãos fracas,
e firmai os joelhos trementes. Dizei aos turbados de coração: Sede fortes,
não temais; eis o vosso Deus! com vingança virá, sim com a recompensa de Deus;
ele virá, e vos salvará" (Isaías 35: 3-4). Definitivamente, o Antigo e o
Novo Testamentos são expressão de duas éticas opostas. A ética do Antigo
Testamento é uma ética da virtù, do combate, da coragem. É comparável à ética
dos povos pagãos que, com seus sacrifícios sangrentos aos deuses da guerra,
estimulavam a ferocidade e a coragem, a bravura dos homens nos campos das
batalhas. O Deus do Antigo Testamento é um Deus vingativo, exige a purgação dos
pecados e a punição dos malvados pelo fio da espada.
A
ética do Novo Testamento, construída pelos apóstolos, principalmente por São
Paulo, que sacramenta um desvirtuamento do que Jesus de Nazaré pregou e fez, é
uma ética da submissão, da resignação e da covardia. Não por acaso, o
cristianismo se tornou a religião a serviço dos poderosos, do Império Romano, e
da subjugação dos povos. Em nome dele, os rios, as florestas, as pedras e os
mares se tingiram com o sangue dos inocentes. São Paulo foi mestre em
enfraquecer as virtudes combativas dos cristãos primitivos, tornando-os dóceis
e submissos, para que pudessem ser aceitos e assimilados pelo Império. Essa
estratégia elevou os cristianismo ao poder, às custas da mansuetude resignada
dos povos. O resultado não foi a salvação e a glória de Jerusalém, mas suas
destruição pelo general Tito. Como bem disse Maquiavel, o cristianismo entregou
o mundo na mão dos malvados. A derrota e a destruição é a colheita última
daqueles que não lutam com suas virtudes pelos seus princípios e valores. O
cristianismo imperial e posterior, já não era nem a sombra dos princípios
zelotas e revolucionários professados pelos primeiros seguidores do nazareno.
O
fato é que o cristianismo impregnou toda a política ocidental e se erigiu em
instrumento de poder de todos os regimes. Mas impregnou a política ocidental
também de sua ideologia servil, povoando a mente dos deserdados com a falsa
crença de que eles podem ser livres, mesmo sendo servos e escravos, pois a
liberdade do espírito seria muito superior do que a liberdade real. Assim, o
escravo pode ser mais livre do que seu amo. No Brasil de hoje, a ideologia
cristã do perdão, da submissão, da resignação, nunca se fez tão presente,
contaminando quase a todos, seja pela falta generalizada de virtù combativa,
por oportunismo, por equívoco, por capitulacionismo, por covardia pura e
simples ou para exercer o poder.
No
Brasil, se pode ser mercador de africanos, dono de escravos, feitor e está tubo
bem. Não há necessidade de nenhuma reparação histórica. A escravidão é posta na
conta de uma necessidade econômica e está isenta de qualquer juízo moral,
civilizatório, humanístico. Os antigos escravocratas se tornaram os oligarcas
da República Velha e continuaram a extrair o sangue dos ex-escravos,
transformados em novos servos.
Com
o processo acelerado de urbanização e de industrialização, o sangue e a carne
dos migrantes do campo para a cidade, foram cimentados nas paredes das fábricas
e nas obras da construção civil. Os novos ricos, os empreendedores e os industriais
foram saudados como os grandes construtores do Brasil. E se algum direito foi
garantido aos trabalhadores, foi necessária a violência impositiva do Estado
orquestrada por Getúlio Vargas.
As
débeis esperanças de avanços que se esboçaram em meados do século XX foram
esmagadas pelos tanques e pelas baionetas, quase sem resistência. Na
redemocratização, os torturadores e os assassinos dos porões da ditadura foram
perdoados com a anistia e boa parte do sistema político sentou-se na mesa do
conciliábulo do Colégio Eleitoral e do governo de transição.
Se
a Constituinte e os governos petistas pareciam significar algum avanço, o golpe
mergulhou o Brasil no lodo do retrocesso e numa ignominiosa indignidade. Agora,
os golpistas, desvairados em sua fúria destrutiva de direitos e da dignidade do
povo e o país, são perdoados, tal como ocorreu com a anistia ampla, geral e
irrestrita. Tudo em nome do taticismo para chegar ao poder. O resultado é um
passo à frente e alguns quilômetros para trás.
Os
progressistas querem um progresso que é um retrocesso. Se era para perdoar os
golpistas, então por que razão se pretendeu fazer oposição ao governo Temer de
hoje se se buscará um governo com o PMDB de Temer para amanhã? Como ficará a
moral combativa dos militantes e dos ativistas se os golpistas serão perdoados?
O que terão a dizer? Como enfrentar a onda neofascista e conservadora, encubada
no processo do golpe, se os golpistas podem ser perdoados? Como fica a defesa
da democracia se você perdoa quem a pisoteou? Este tipo de perdão é a
autorização para novos golpes futuros, novas anistias e novos perdões,
repetindo a história cinza da repetição sucessiva como farsa.
No
Brasil não se quer a aspereza do combate, mas a comodidade do conciliábulo.
Aqui se esquece que é mais importante uma derrota digna, com a espinha ereta,
do que uma vitória que não é tua vitória, mas a vitória dos teus inimigos. Se
esquece que é preferível perder uma eleição preservando força social e
militante para novos combates, do que vencer e ser subordinado às forças da
corrupção, da exploração, que concedem migalhas para manter inalterado o quadro
institucional e legal da indignidade, da desigualdade e da injustiça.
Se
não quereis julgar, saibam que eles vos julgarão; se não quereis condenar,
saibam que eles vos condenarão; e se quereis perdoar, saibam que eles não vos
perdoarão. Se uma nova derrota vier, será a mais vergonhosa das derrotas dos
progressistas e das esquerdas, porque será a derrota da capitulação, do cálculo
oportunista, do oba-oba típico da política dos salões, dos gabinetes e dos
palácios de uma esquerda que perdeu o senso do combate político.
Neste
Brasil de hoje, se você tem uma posição elevada, é uma pessoa pública e tem
poder, você pode ser racista que não será racista; você pode ser flagrado
cometendo crimes contra o Estado e contra povo e isto traduzirá numa falta de
provas. Em sendo você senador ou deputado, ou até ministro ou presidente, você
tem autorização para cometer crimes, pois o STF garante que você não será
molestado. No governo, no Congresso, no STF, você pode ser fascista, ser contra
direitos de trabalhadores, de mulheres e de minorias que contará com a
indiferença de muitos e dos reclamos formais de outros.
Mas
se você for militante e ativista social, cuidado. Não radicalize, não pregue o
ódio, pois você será combatido pela direita agressiva e admoestado pela
esquerda mi, mi, mi; ui, ui, ui; ai, ai,ai. Agora, se você for trabalhador,
pobre, negro, índio, ande na linha, pois o longo braço da lei poderá te
alcançar. Não cometa nenhum pequeno delito, pois as cadeias estão cheias de
gente que cometeu pequenos delitos. Se você for jovem, pobre e negro, o cuidado
deve ser maior. Você pode ser visto como bandido. Se você for mulher e for
estuprada, poderá ter um filho indesejado, pois você não é dona do teu corpo. E
ninguém te protegerá da violência machista, dos feminicídios e dos
estupros. Você, índio, terá suas terras tomadas e o trabalho escravo está autorizado
nas lides do campo, nas fazendas, nas carvoarias, nas tecelagens. Vocês todos
não serão vingados, nem encontrareis a justiça, pois essas coisas não são
coisas da política realista. São coisas de moralistas, de idealistas. A
política, neste país, nada tem a ver com virtudes. Ela é puro interesse.
No
Brasil, os inimigos se sentam juntos para libar e comemorar na mesma mesa.
Afinal de contas, somos uma democracia racial, somos um povo ordeiro e pacífico
e Deus é brasileiro. É melhor estar nos palácios e nos gabinetes do que ter que
lutar por aí. Esqueçam o Salmo de Davi, que diz o seguinte: "Disse Javé ao
meu Senhor: assenta-te a minha direita, até que eu ponha os teus inimigos por
escabelo dos teus pés". Lembra-te: "Mas eu lhes digo: não se vinguem
daqueles que fazem mal a vocês. Se alguém lhe der um tapa na face, vire o outro
lado para ele bater também".
Aldo
Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
GGN