Diante
do fracasso histórico dos setores progressistas e de esquerda é forçoso
reconhecer que eles mesmos foram co-artífices desse fracasso e que contribuíram
significativamente para com a manutenção das subalternidade das classes
populares à hegemonia das elites econômicas e políticas do país. Em outras
palavras: contribuíram para com a manutenção do povo brasileiro na condição de
bestializado.
Como
se sabe, a ideia de um povo bestializado foi criada pelo jornalista, jurista e
político Aristides Lobo no contexto da passeata militar que proclamou a
República. Ao testemunhar aquela passeata, comandada por um marechal
monarquista, Lobo escreveu: "O povo assistiu àquilo bestializado, atônito,
surpreso, sem saber o que significava". A coisa do povo - a res
publica - nascia, desta forma, sem povo. Pior ainda, nascia sem povo, sem armas
e sem terras, logo após a Abolição, levada a efeito por uma princesa que era
mais uma carola de sacristia do que propriamente uma estadista.
Assim
nascera também a Independência, emergida de um grito abestalhado do filho do
monarca metropolitano . O novo país que nascia não era soberano, mas uma
extensão da Coroa portuguesa. Note-se ainda que todas as revoltas
pré-independência se definiram por duas características: ou eram conspirações
de pequenos grupos ou tinham uma dimensão popular, mas localizada e isolada em
determinadas províncias. Nunca houve um movimento nacional-popular que construísse
um sentido de unidade de um povo. O único movimento que conseguiu imprimir uma
dimensão nacional-popular, mesmo que parcial, foi a Revolução de 1930 e
varguismo.
Mas
o varguismo foi também uma via estatal de modernização, assim como foi a
redemocratização de 1945, o golpe militar de 1964, a campanha das diretas com
seu desfecho no Colégio Eleitoral, a Constituinte e, finalmente, os governos
petistas. Todos esses processos, alguns com sentido contrário aos outros como
foi o caso do golpe militar, buscaram a modernização do país e a mudança pela
via do Estado, pelo alto, com negociações e conciliações com as elites. As
chamadas classes populares nunca tiveram um protagonismo. A nova Constituição
não significou uma refundação democrática e cidadã do Brasil, pois o povo não
foi chamado a se pronunciar acerca dela por meio de um referendum. O povo nunca
foi o sujeito constituinte da soberania nacional.
Ao
se fazer essas constatações de natureza histórica não se pretende menosprezar
as importantes contribuições do varguismo, do antigo PTB e do PT em avanços
sociais. O que se quer dizer é que, mesmo com esses avanços, a derrota
histórica dos progressistas e das esquerdas não pode não ser assinalada. E mais
do que isto: o que se quer dizer é que os progressistas e as esquerdas adotaram
estratégias que podem ser inseridas no conceito de revolução passiva, elaborado
por Antônio Gramsci a partir de um livro de história da Revolução Napolitana de
1799, escrito por Vincenzo Cuoco.
Mudança de Estratégia
Em
síntese, Gramsci entende por revoluções passivas todos os processos de
transformação que podem vir por reformas, guerras, golpes etc., sem passar por
uma revolução política de tipo "radical-jacobina". Isto quer dizer:
sem uma participação efetiva das classes populares que, desta forma, não criam
uma vontade coletiva nacional-popular. Em outras palavras: não há um processo
constituinte, da sociedade contra o Estado, de um povo com consciência
nacional. Assim, muitas revoluções têm um caráter restaurador e muitos governos
progressistas terminam fracassando, abrindo as portas para a restauração
conservadora. No Brasil, sequer houve uma reforma agrária radical-jacobina tal
como ocorreu na França. As mudanças que ocorreram no campo ficaram muito aquém
do próprio processo de distribuição de terras que ocorreu nos Estados Unidos.
Quando
setores populares e progressistas participaram dessas tentativas modernização,
fracassaram. Fracassaram com Vargas, com Jango, com as Diretas, com a
Constituinte e com os governos do PT. Os momentos subsequentes a esses governos
foram restaurações conservadoras. A singularidade desses governos, partidos e
movimentos é que sempre buscaram atuar mais no Estado do que na sociedade civil
e nos movimentos sociais. Nos momentos dos embates e de ruptura dos débeis
processos democráticos não tinham força para resistir, não tinham força para
impor um momento "radical-jacobino".
Tudo
isto indica que as esquerdas estão adotando estratégias erradas ou parciais.
Não há como sustentar reformas e mudanças mais radicais sem conseguir que as
classes populares e os movimentos sociais se articulem em organizações
consistentes da sociedade civil, sofram um processo de mudança de cultura e de
consciência por um intenso trabalho crítico e formativo e se tornem o centro das
lutas e das mobilizações políticas. Não há como criar uma vontade
coletiva nacional-popular, adverte Gramsci, sem que os diversos grupos sociais
urbanos e do campo irrompam na vida política.
Os
progressistas e as esquerdas não conseguem tirar as camadas subalternas da
hegemonia das elites conservadoras que permitem apenas definir as lutas no
campo do corporativismo e, mesmo assim, com um recorrentes recuos na garantia
de direitos. Gramsci preconiza que a luta anti-hegemônica e a construção de uma
nova hegemonia requer uma reforma intelectual, cultural e moral associada a um
programa de reforma econômica. Os partidos e os movimentos devem subverter
"todo o sistema de relações intelectuais e morais", retirando o povo
de sua condição de "massa de manobra", de bestializado.
A
impotência dos partidos progressistas e de esquerda de promoverem uma reforma
intelectual, cultural e moral, articulada com um programa de reforma econômica,
abriu o campo das periferias para que as igrejas evangélicas e pentecostais fizessem
a reforma religiosa. A reforma religiosa conduz as massas periféricas para uma
condição de subalternidade ainda mais aguda, mais conservadora, aprofundado sua
condição de "massa de manobra", que se entrega a líderes, a partidos
e a governos retrógrados, anti-sociais e anti-direitos.
Os
partidos e movimentos sociais progressistas e de esquerda precisam ser ativos e
atuantes nessa disputa de concepções de mundo e de valores através da
propaganda, formação e organização dos vários grupos e segmentos sociais. Sem a
criação desse terreno propício ao desenvolvimento de uma vontade e de uma força
politicamente ativa nacional-popular o Brasil terá seu futuro condenado e
nenhuma transformação modernizadora de sentido progressista se fará efetiva. Os
campos largos da periferia ficarão a mercê da reforma religiosa conservadora e
do crime organizado. Os joãos trabalhadores da demagogia e do charlatanismo e
outras expressões autoritárias terão um terreno fértil para colher votos e
vitórias eleitorais.
Aldo
Fornazieri - é Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
Do
GGN