Estudantes residentes na Maison du Brésil, Cité
Universitaire
Internationale, Paris XIVe. Maio de 1968.
Questionávamos nas ruas o trabalho alienado, o poder
piramidal, o controle cotidiano da vida. Capitalismo reciclou-se — apenas para
se tornar mais opressor. Mas a última palavra não foi dita.
“Métro, boulot, dodo” (metrô, trabalho e cama), resumia o
dito popular, extraído de um verso de Pierre Béarn, de 1956, e repetido
monotonamente pelos integrantes do movimento estudantil, que, tendo se iniciado
na Universidade de Nanterre, naquele início do ano de 1968, se alastrou
rapidamente por toda Paris, alcançando a Sorbonne, todo o Quartier Latin, a
Cidade Universitária Internacional e, em poucas semanas, as principais
províncias francesas.
“Que tipo de vida é essa?” bradava em eco um jovem operário
mais adiante, acenando aos estudantes e trazendo para seu cortejo milhares de
outros operários e profissionais de todas as áreas, compartilhando com aqueles
suas angústias e aflições.
Era a própria ordem social que estava em jogo e com ela a
alienação a que todos estavam submetidos — a falta de significado de uma
sociedade capitalista burocratizada, onde a maioria dos cidadãos levava uma
existência trivial, medíocre, repetitiva, repressiva e reprimida. Toda ordem
social estava sendo questionada, o estilo de vida, o quotidiano estava sob
suspeita. Recusavam-se, todos, e assim clamavam, a serem “treinados como cães
policiais”, a se verem convertidos de homens em objetos.
Uma árdua luta foi travada contra os patrões e o Estado. “Ni
Dieu, Ni Mâitre!” (“Nem Deus, Nem Senhor!”), exclamavam os anarquistas,
relembrando o lema de Auguste Blanqui, de finais do século XIX. “À Bas l’État
Policier!” (“Abaixo o Estado Policial!”), gritavam outros rebeldes,
selvagemente reprimidos pela força policial — a violência organizada e
concentrada nas mãos do Estado, detentor do monopólio das armas.
O princípio da hierarquia, e da autoridade, prevalecente em
todos as instâncias da sociedade era assim questionado – na fábrica, na
família, na Universidade –, e a bandeira vermelha tremulava em todos os cantos,
seguida da bandeira negra dos anarquistas, não poupando sequer o Teatro da
Ópera e o fino cabaré Folies Bergères. As tricolores bandeiras francesas não
estavam à vista, indicando claramente a natureza revolucionária do movimento em
curso.
Os acontecimentos de maio de 1968 na França passam, para sua
compreensão, pelo filtro do trabalho – a base material e econômica das ideias
desenvolvidas e propagadas por seus protagonistas. Tamanho movimento, que
irrompeu de forma inédita no centro de uma Europa capitalista altamente
industrializada, no apogeu de um crescimento econômico por quase trinta anos
ininterruptos (os “Trente Glorieuses”, segundo o economista Jean Fourastié),
não pode ser reduzido a uma mera agitação da juventude, a uma contestação moral
e cultural de estudantes privilegiados e “gatés” (mimados), embora tivessem
sido eles, os estudantes universitários, o relâmpago que anunciava a tormenta
por vir. A efervescência estudantil era antes a manifestação mais evidente ou o
barômetro sensível de um descontentamento geral e de uma crise maior que já se
anunciava a partir de dentro da sociedade francesa, cujas origens mais
profundas pertencem ao processo geral de racionalização da produção instaurado
na grande indústria capitalista em finais do século XVIII.
O período pós-1945 caracteriza-se por um forte crescimento
econômico, impulsionado pelas necessidades de reconstrução de uma Europa, e de
uma França em particular, mutilada por duas grandes guerras mundiais (1914-1918
e 1939-1945) e por uma grande crise econômica (1929), que resultou em falências,
desemprego em massa e uma severa depressão de alcance mundial. Sob a dominação
e financiamento dos Estados Unidos, e os estados nacionais lhes servindo de
muleta, a reconstrução nacional opera-se e os capitalistas rebatizam seus
impérios industriais. Abrem-se então os chamados “anos dourados”, anos de um
crescimento sem precedentes e cujo combustível eram os ganhos de produtividade
(produto por trabalhador) assentados no modelo taylorista-fordista de produção.
Em finais do século XIX, o engenheiro mecânico Frederic
Taylor escreveu os “Princípios de Administração Científica“, um monumento a
serviço da organização das empresas e da racionalização da produção e,
particularmente, da administração industrial e os meios de torná-la mais
eficiente. Taylor revelou os secretos requisitos educacionais/intelectuais que
deviam ser exigidos dos trabalhadores para que as empresas fossem bem sucedidas
competitivamente. Suas contribuições fundamentais podem ser resumidas em dois
pontos, a saber: 1) as práticas de trabalho devem ser rigorosamente
padronizadas a partir da análise do “melhor método” de produzir, cobrindo tanto
as operações manuais quanto o tempo requerido para executá-las. Trata-se de um
estudo dito científico dos “tempos e movimentos”; 2) o estabelecimento de uma
rígida separação entre concepção e execução, a partir de uma escala hierárquica
de ocupações rigorosamente planejada, incluindo diversos níveis de controle e
supervisão do trabalho. Com Taylor, portanto, não apenas o relógio entrava na
fábrica, mas o cronômetro, caracterizando uma militarização do trabalho,
batizada eufemisticamente de “organização científica do trabalho”. Os tempos e
movimentos, depois de analisados, eram impostos aos trabalhadores para serem
cumpridos -e uma forte estrutura hierárquica de controle e supervisão se lhes
sobrevinha para garantir a produção planejada.
O salto de qualidade foi dado por Henry Ford na indústria
automobilística, redesenhada por ele a partir de Taylor. Ford incorporou os
princípios tayloristas de divisão do trabalho já estabelecidos e elevou ao
máximo a produtividade com a intensificação acelerada do trabalho, induzida e
viabilizada pela tecnologia da linha de montagem — ou seja, pela incorporação
dos procedimentos na própria máquina. Assim, o aumento de produtividade se
produzia pelo trabalho coletivo, altamente potencializado. Através de uma linha
de montagem progressiva, os produtos padronizados e entregues à cadência de um
mecanismo artificial e exterior aos trabalhadores eram elaborados com um grau
de precisão tal que dispensavam “ajustes”. O ritmo rápido e estável da linha de
montagem garantia a vantagem competitiva do capitalista (e, portanto, a
obtenção em um patamar mais elevado de mais-valia relativa).
Com essa tecnologia, que se estendeu rapidamente para outros
setores muito além da indústria automobilística, a produção se fazia em massa e
em larga escala, de modo a reduzir os custos unitários, dado o elevado
investimento em capital fixo (máquinas, equipamentos, plantas industriais,
etc.) exigido. O fordismo, como veio a ser denominado, foi, assim, um dos
motores que permitiu o pleno emprego e um aumento do nível de vida dos
trabalhadores, via redução dos preços das mercadorias necessárias à sua
sobrevivência e reprodução. Foi este o sistema de produção que veio a reger
todo o crescimento econômico francês no pós-guerra, com sua linha de montagem e
os princípios de organização do trabalho taylorista. Com uma estrutura
centralizada de produção, calcada no controle do tempo e dos movimentos do
trabalhador na linha de montagem, as fábricas absorviam uma massa
gigantesca de operários especializados (OS), receptores de salário mínimo
(SMIG), sujeitos a uma jornada semanal de trabalho de 45 horas, exercendo
tarefas precisas, repetitivas, montando peças uniformizadas que desfilavam
diante deles, repetindo ao infinito os mesmos gestos e se submetendo à cadência
infernal da linha de montagem, embrutecidos e alienados. Sob tais condições de
trabalho e vida, não iam a lugar algum com os salários que recebiam em troca,
reproduzindo-se diariamente, tal como um pêndulo, diante de uma rotina cada vez
menos suportável para cada cidadão-trabalhador parisiense: “métro, boulot,
dodo”,
A produção em massa, ademais, deu origem a um consoante
consumo de massa e transformou a sociedade, por sua vez, em um mundo de robôs,
com modos de vida codificados e com rotinas rigidamente demarcadas – foi a
uniformização da vida quotidiana (Henry Lefèbvre).
O mesmo princípio hierárquico da produção fordista
refletia-se em universidades igualmente centralizadas, cujos reitores, tais
como marionetes, deviam atender, prioritariamente, às necessidades tecnológicas
do capitalismo francês, às exigências do sistema produtivo então implantado e
disseminado. Não por acaso, os enfurecidos estudantes de Nanterre bradavam, já
antes de Maio de 68 que não queriam ser “des chiens de garde de la bourgeoisie”
(“cães de guarda da burguesia”).
O governo francês, por sua vez, estava nas mãos de um general
– De Gaulle, que havia posto um fim à guerra contra a emancipação política da
Argélia e comandava o país com similar austeridade, sem consultas e governando
por decreto, além de exercer um enorme controle político através das mídias de
então: a televisão e o rádio. Os limites de seu governo se expressavam
claramente no “slogan” já trivial nas manifestações de maio: “Adieu, De Gaulle,
dix ans, ça suffit” (“Adeus, De Gaulle, dez anos, basta!”).
Durante os 25 anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial,
o sistema capitalista francês escondera-se atrás da embriaguez do progresso
econômico. Mas a lógica do trabalho, decorrente do regime de produção
taylorista-fordista então dominante, controlava toda a vida social e humana.
Em meados dos anos 1960, esse sistema de produção começou a
perder eficácia. A produtividade desacelerou, os capitalistas tentaram
compensar a queda reduzindo os salários reais, degradando ainda mais as
condições de trabalho, promovendo o desemprego parcial e, funestamente,
acelerando as já infernais cadências da linha de montagem. Os operários, em
particular a massa de especializados, revoltaram-se contra o peso da crise que
começo a recair sobre seus ombros, e o desequilíbrio instalou-se. Os operários
decidiram juntar-se aos estudantes grevistas e recusaram-se ao jogo de “perdre
sa vie à la gagner” (“perder a vida para ganhá-la”). Tal recusa apareceu também
sob a forma de absenteísmo no trabalho — o chamado “turn-over”, a recusa do
trabalho, ou sob a forma de sabotagem. Mas foram provavelmente as condições
salariais dos trabalhadores especializados, a maioria absoluta dos
trabalhadores fordistas, que levaram os trabalhadores à revolta e a se juntarem
aos estudantes. Esta adesão ficou definitivamente gravada nas bandeirolas que
tremulavam por toda parte com os dizeres: “étudiants, professeurs, ouvriers”
(“estudantes, professores, operários”. Foi esta junção histórica entre o
trabalho intelectual e o trabalho manual que fez do Maio de 1968 na França um
evento particular e diferenciado em relação ao que ocorria no resto do mundo.
Somente no final da década seguinte a persistência dos
sintomas depressivos exigiu reações e mudanças de modo a revigorar o
crescimento econômico capitalista. A partir dos anos 1980, novas estratégias
empresariais de competitividade e de produtividade começaram a ser desenhadas,
alterando a organização do trabalho e as formas de gestão da produção. Um novo
padrão instaurou-se, a assim chamada “produção flexível”. Mas como no
taylorismo-fordismo, este sistema de produção nasceu igualmente ao processo
geral de racionalização da produção instaurado pela grande indústria
capitalista de finais do século XVIII. O objetivo continuava sendo o da
acumulação de capital por meio do aumento da produtividade e da
competitividade. Logo, numa perspectiva histórica e do ponto de vista da
organização do trabalho, a recém-chegada “produção flexível”, longe de
constituir uma novidade, foi antes de tudo uma norma, pois que o processo
produtivo, com os seus trabalhadores aí inseridos, foi permanentemente
reorganizado e/ou reestruturado ao longo do tempo em função da necessidade
imperativa de crescimento do capital, que só se viabiliza através do aumento
constante da produtividade do trabalho e, portanto, da mais-valia.
“A força com a qual a contestação estudantil e operária se
afirmou na França, em Maio de 1968, confirma a virulência dos antagonismos no
interior desta sociedade pretensamente estável e a incapacidade da burguesia de
superá-los, ou seja, de conseguir a domesticação durável das classes
exploradas” (cf. Daniel Bensaid). Os trabalhadores não demoraram a perceber,
face à recessão que se abriu e se estendeu ao longo dos anos que se seguiram,
que o capitalismo não se encontra ao abrigo de crises maiores, tendo como
resultado um conjunto de reestruturações que prejudicam, inevitavelmente, suas
condições de existência.
Como testemunha ocular dos acontecimentos de Maio de 1968 na
França, quando eu era apenas uma entre milhares de outras estudantes, francesas
e estrangeiras que aí faziam seus estudos, e no auge de meus 20 anos, termino
este texto compartilhando o mesmo sentimento de Christian Laval, tão bem
expresso em seu depoimento, quando dos 40 anos de Maio de 1968:
“(…) Este movimento, sem chefe, sem direção e sem programa é
o nome daquilo que um dia fez medo e que precisou ser controlado, remetendo-o
ao folclórico, ao anedótico ou ao banal…Este movimento, e sua força, permaneceu
aberto às interpretações, às recuperações…68 é a afirmação gritante de uma
recusa que continua a atemorizar… [é a afirmação] de que há outra coisa
possível. Maio de 68 é o nome deste desejo…Nosso tempo passou e é preciso dar
passagem. Nós fomos o elo provisório de um tempo igualmente provisório, (…) nós
somos muitos a ter o sentimento do inacabado…”
GGN