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terça-feira, 16 de outubro de 2018

A ASCENSÃO DO FASCISMO, POR JESSÉ SOUZA

FASCISMO PROPRIAMENTE DITO
Todo fascismo é reflexo de uma luta de classes truncada, percebida de modo distorcido e por conta disso violento e irracional no seu cerne. A elite e a alta classe média haviam, com sucesso, legitimado a opressão das classes populares pelo moralismo seletivo da corrupção apenas do Estado e da política como forma de criminalizar a soberania popular. Os “belgas”, que se vem como estrangeiros na própria terra, oprimiram o “Congo”, ou seja, o próprio povo, e o reduziram á pobreza e á ignorância. O ódio ao escravo se transformou simplesmente em ódio ao pobre. O escravo negro é eternizado nas massas majoritariamente mestiças com escolaridade precária condenadas ao trabalho desqualificado e semiqualificado. Esta é a base primeira de todo o ódio e ressentimento reprimido e recalcado que é o núcleo da sociedade brasileira. O fascismo implícito sempre foi o DNA da opressão de classes entre nós. O que tem que ser explicado, portanto, é como ele contaminou as próprias classes populares.
O SURGIMENTO DO PT
A ascensão do partido dos trabalhadores, com todas as suas limitações, foi uma inflexão importante no processo de organização popular. Com o golpe de 2013/2016 a reação conservadora veio primeiro de cima, da alta classe média nas ruas, da sistemática corrosão de valores democráticos diariamente perpetrada pela imprensa, e do acanalhamento do STF e por consequência da constituição. O governo Temer promoveu o saque e a rapina que a elite queria e empobreceu o povo que havia experimentado uma pequena ascenção social. Foi dito a este povo que a corrupção política havia sido a causa do empobrecimento. Quando a corrupção dos partidos de elite fica óbvia a todos, sem ser reprimida, todo o sistema perde representatividade. O golpe de misericórdia foi a prisão injusta do líder das classes populares desmobilizadas. Aqui o último elo de expressão racional da revolta popular foi cortado.
NOTÍCIAS FALSAS (FAKE NEWS)
Abriu-se a partir daí a porta para a revolta agora irracional das massas. Neste contexto a ocasião faz o ladrão. A belíssima marcha do “ele não”, majoritariamente composta pelas mulheres da classe média mais crítica e engajada, possibilitou a cooptação do voto feminino das classes populares, última cidadela contra a “ética da virilidade” do fascismo popular. Aqui entra em cena o que há de mais sujo na política das “fake News” e da mentira institucionalizada. Analistas de ultradireita da campanha fascista, que perceberam as consequências do isolamento político dos indivíduos que é o que capitalismo financeiro representa na esfera política, se aproveitaram impiedosamente deste fato para oporem mulheres emancipadas da classe média contra as mulheres pobres e evangélicas.Se você é pobre e humilhada o ganho emocional que a distinção moral construída artificialmente com relação a mulheres supostamente “indecentes” exerce, por meio de mentiras que não podem ser desmentidas, passa a ter um apelo irresistível. É uma “vingança de classe”, obviamente distorcida e contra a fração errada da classe média, como escape em relação à pobreza vivida diariamente, mas cujas causas não são compreendidas.
“OS DELINQUENTES”
Como já discuti no meu livro “A ralé brasileira”, contracorrente, 2017, a oposição pobre honesto versus pobre delinquente perpassa os mais pobres dificultando enormemente qualquer solidariedade de classe. Daí também a importância de líderes políticos que os representem a partir de cima e secundarizem a contradição interna de classe com uma política de interesse de todos os pobres. Era isso que Lula representava. Sem isso a porta fica aberta para a guerra de classe entre os próprios miseráveis divididos entre os supostos honestos e supostos delinquentes como definidos pelas elites.
“BOIS DE PIRANHAS”
É aqui que a “ética da virilidade”- ou seja, a ética dos que não tem ética – do fascismo reina absoluta. O fascismo arregimenta a partir de cima os ressentimentos, medos e ansiedades sem explicação possível e os canaliza a “bodes expiatórios” externos. O antipetismo é apenas o mais óbvio. Mas todo fascismo usa e abusa da sexualidade reprimida das classes populares. A homossexualidade que não pode ser admitido em si mesmo é canalizado em selvagem agressão externa e o ódio a mulher percebida como ameaça incitam a uma agressiva regressão a padrões primitivos de relações de gênero. O pobre não é apenas pobre. Ele é humilhado e dominado por valores construídos para subjuga-lo. Isso confere ao fascismo enorme capilaridade e contamina a vida familiar e relações de vizinhança em todos os níveis da sociabilidade popular.
O FASCISMO À BRASILEIRA 
O líder fascista sem discurso e sem argumentos é o profeta exemplar perfeito das massas destituídas em todas as dimensões da vida. Sem organização hierárquica como os nazistas alemães, o nosso é um fascismo miliciano, capilarizado e sem controle. O que é necessário explicar ao povo de modo compreensível é porque ele ficou mais pobre. Sem isso se pavimenta o caminho ao ódio irreversível.  
GGN

domingo, 25 de junho de 2017

“A classe média é feita de imbecil pela elite”, Jessé Souza

Os extratos médios, diz o sociólogo, defendem de forma acrítica os interesses dos donos do poder e perpetuam uma sociedade cruel forjada na escravidão.
Paulo Pinto/Fotos Públicas
Inocentes úteis? Ou só úteis?

Em agosto, o sociólogo Jessé Souza lança novo livro, A Elite do Atraso – da Escravidão à Lava Jato. De certa forma, a obra compõe uma trilogia, ao lado de A Tolice da Inteligência Brasileira, de 2015, e de A Ralé Brasileira, de 2009, um esforço de repensar a formação do País.

Neste novo estudo, o ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada aprofunda sua crítica à tese do patrimonialismo como origem de nossas mazelas e localiza na escravidão os genes de uma sociedade “sem culpa e remorso, que humilha e mata os pobres”. A mídia, a Justiça e a intelectualidade, de maneira quase unânime, afirma Souza na entrevista a seguir, estão a serviço dos donos do poder e se irmanam no objetivo de manter o povo em um estado permanente de letargia. A classe média, acrescenta, não percebe como é usada. “É feita de imbecil” pela elite.

CartaCapital: O impeachment de Dilma Rousseff, afirma o senhor, foi mais uma prova do pacto antipopular histórico que vigora no Brasil. Pode explicar?

Jessé Souza: A construção desse pacto se dá logo a partir da libertação dos escravos, em 1888. A uma ínfima elite econômica se une uma classe, que podemos chamar de média, detentora do conhecimento tido como legítimo e prestigioso. Ela também compõe a casta de privilegiados. São juízes, jornalistas, professores universitários. O capital econômico e o cultural serão as forças de reprodução do sistema no Brasil.

Em outra ponta, temos uma classe trabalhadora precarizada, próxima dos herdeiros da escravidão, secularmente abandonados. Eles se reproduzem aos trancos e barrancos, formam uma espécie de família desestruturada, sem acesso à educação formal. É majoritariamente negra, mas não só. Aos negros libertos juntaram-se, mais tarde, os migrantes nordestinos. Essa classe desprotegida herda o ódio e o desprezo antes destinados aos escravos. E pode ser identificada pela carência de acesso a serviços e direitos. Sua função na sociedade é vender a energia muscular, como animais. É ao mesmo tempo explorada e odiada.

CC: A sociedade brasileira foi forjada à sombra da escravidão, é isso?

JS: Exatamente. Muito se fala sobre a escravidão e pouco se reflete a respeito. A escravidão é tratada como um “nome” e não como um “conceito científico” que cria relações sociais muito específicas. Atribuiu-se muitas de nossas características à dita herança portuguesa, mas não havia escravidão em Portugal.

Somos, nós brasileiros, filhos de um ambiente escravocrata, que cria um tipo de família específico, uma Justiça específica, uma economia específica. Aqui valia tomar a terra dos outros à força, para acumular capital, como acontece até hoje, e humilhar e condenar os mais frágeis ao abandono e à humilhação cotidiana.

CC: Um modelo que se perpetua, anota o senhor no novo livro.

JS: Sim. Como essa herança nunca foi refletida e criticada, continua sob outras máscaras. O ódio aos pobres é tão intenso que qualquer melhora na miséria gera reação violenta, apoiada pela mídia. E o tipo de rapina econômica de curto prazo que também reflete o mesmo padrão do escravismo.

CC: Como isso influencia a interpretação do Brasil?

JS: A recusa em confrontar o passado escravista gera uma incompreensão sobre o Brasil moderno. Incluo no problema de interpretação da realidade a tese do patrimonialismo, que tanto a direita quanto a esquerda, colonizada intelectualmente pela direita, adoram. O conceito de patrimonialismo serve para encobrir os interesses organizados no chamado mercado. Estigmatiza a política e o Estado, os “corruptos”, e estimula em contraponto a ideia de que o mercado é um poço de virtudes.

"O ódio aos pobres é intenso"
CC: O moralismo seletivo de certos setores não exprime mais um ódio de classe do que a aversão à corrupção?

JS: Sim. Uma parte privilegiada da sociedade passou a se sentir ameaçada pela pequena ascensão econômica desses grupos historicamente abandonados. Esse sentimento se expressava na irritação com a presença de pobres em shopping centers e nos aeroportos, que, segundo essa elite, tinham se tornado rodoviárias.

A irritação aumentou quando os pobres passaram a frequentar as universidades.
 Por quê? A partir desse momento, investiu-se contra uma das bases do poder de uma das alas que compõem o pacto antipopular, o acesso privilegiado, quase exclusivo, ao conhecimento formal considerado legítimo. Esse incômodo, até pouco tempo atrás, só podia ser compartilhado em uma roda de amigos. Não era de bom tom criticar a melhora de vida dos mais pobres.

"O ódio aos pobres é intenso"

CC: Como o moralismo entra em cena?

JS: O moralismo seletivo tem servido para atingir os principais agentes dessa pequena ascensão social, Lula e o PT. São o alvo da ira em um sistema político montado para ser corrompido, não por indivíduos, mas pelo mercado. São os grandes oligopólios e o sistema financeiro que mandam no País e que promovem a verdadeira corrupção, quantitativamente muito maior do que essa merreca exposta pela Lava Jato. O procurador-geral, Rodrigo Janot, comemora a devolução de 1 bilhão de reais aos cofres públicos com a operação. Só em juros e isenções fiscais o Brasil perde mil vezes mais.
Souza: novo livro em agosto (Foto: Filipe Vianna)

CC: Esse pacto antipopular pode ser rompido? O fato de os antigos representantes políticos dessa elite terem se tornado alvo da Lava Jato não fragiliza essa relação, ao menos neste momento?

JS: Sem um pensamento articulado e novo, não. A única saída seria explicitar o papel da elite, que prospera no saque, na rapina. A classe média é feita de imbecil. Existe uma elite que a explora. Basta se pensar no custo da saúde pública. Por que é tão cara? Porque o sistema financeiro se apropriou dela. O custo da escola privada, da alimentação. A classe média está com a corda no pescoço, pois sustenta uma ínfima minoria de privilegiados, que enforca todo o resto da sociedade. A base da corrupção é uma elite econômica que compra a mídia, a Justiça, a política, e mantém o povo em um estado permanente de imbecilidade.

CC: Qual a diferença entre a escravidão no Brasil e nos Estados Unidos?

JS: Não há tanta diferença. Nos Estados Unidos, a parte não escravocrata dominou a porção escravocrata. No Brasil, isso jamais aconteceu. Ou seja, aqui é ainda pior. Os Estados Unidos não são, porém, exemplares. Por conta da escravidão, são extremamente desiguais e violentos. Em países de passado escravocrata, não se vê a prática da cidadania. Um pensador importante, Norbert Elias, explica a civilização europeia a partir da ruptura com a escravidão. É simples. Sem que se considere o outro humano, não se carrega culpa ou remorso. No Brasil atual prospera uma sociedade sem culpa e sem remorso, que humilha e mata os pobres. 

CC: Algum dia a sociedade brasileira terá consciência das profundas desigualdades e suas consequências?

JS: Acho difícil. Com a mídia que temos, desregulada e a serviço do dinheiro, e a falta de um padrão de comparação para quem recebe as notícias, fica muito complicado. É ridícula a nossa televisão. Aqui você tem programas de debates com convidados que falam a mesma coisa. Isso não existe em nenhum país minimamente civilizado. É difícil criar um processo de aprendizado.

CC: O senhor acredita em eleições em 2018?

JS: Com a nossa elite, a nossa mídia, a nossa Justiça, tudo é possível. O principal fator de coesão da elite é o ódio aos pobres. Os políticos, por sua vez, viraram símbolo da rapinagem. Eles roubam mesmo, ao menos em grande parte, mas, em analogia com o narcotráfico, não passam de “aviõezinhos”. Os donos da boca de fumo são o sistema financeiro e os oligopólios. São estes que assaltam o País em grandes proporções. E somos cegos em relação a esse aspecto. A privatização do Estado é montada por esses grandes grupos. Não conseguimos perceber a atuação do chamado mercado. Fomos imbecilizados por essa mídia, que é paga pelos agentes desse mercado. Somos induzidos a acreditar que o poder público só se contrapõe aos indivíduos e não a esses interesses corporativos organizados. O poder real consegue ficar invisível no País.

CC: O quanto as manifestações de junho de 2013, iniciadas com os protestos contra o reajuste das tarifas de ônibus em São Paulo, criaram o ambiente para a atual crise política?

JS: Desde o início aquelas manifestações me pareceram suspeitas. Quem estava nas ruas não era o povo, era gente que sistematicamente votava contra o projeto do PT, contra a inclusão social. Comandada pela Rede Globo, a mídia logrou construir uma espécie de soberania virtual. Não existe alternativa à soberania popular. Só ela serve como base de qualquer poder legítimo. Essa mídia venal, que nunca foi emancipadora, montou um teatro, uma farsa de proporções gigantescas, em torno dessa soberania virtual. 
Um resumo das relações sociais no Brasil
CC: Mas aquelas manifestações foram iniciadas por um grupo supostamente ligado a ideias progressistas...

JS: Só no início. A mídia, especialmente a Rede Globo, se sentiu ameaçada no começo daqueles protestos. E qual foi a reação? Os meios de comunicação chamaram o seu povo para as ruas. Assistimos ao retorno da família, propriedade e tradição. Os mesmos “valores” que justificaram as passeatas a favor do golpe nos anos 60, empunhados pelos mesmos grupos que antes hostilizavam Getúlio Vargas. Esse pacto antipopular sempre buscou tornar suspeito qualquer representante das classes populares que pudesse ser levado pelo voto ao comando do Estado. Não por acaso, todos os líderes populares que chegaram ao poder foram destituídos por meio de golpes. 

Da Carta Capital