A Constituição foi jogada no lixo e Lula preso. Ainda triste
e perplexo com o óbvio esperado, tento tecer considerações sobre um espetáculo
circense, que deram de chamar "julgamento de Lula". A rigor não era
julgamento dele, mas sim a apreciação de um "habeas corpus", sobre
seu direito de recorrer em liberdade, até esgotar todas as instâncias.
Entretanto, o espetáculo foi vendido aos poucos esclarecidos como prova de
culpa, como se o tal Supremo Tribuna Federal tivesse, também, reconhecido a
culpa e estivesse Lula condenado mais uma vez.
Integro o rol dos indignados inquietos com o avanço do
fascismo. Meu impulso inicial é inconfessável, pois uma coisa chamada caráter
continua a ser o freio do cidadão de bem. Entre as ideias mais estupidas
reveláveis que me ocorreram foi rasgar o título de eleitor e o diploma de
Direito. O primeiro pela inutilidade da soberania popular e o segundo por se
revelar inútil o que aprendi na faculdade. Compartilhei essa angústia com o
minoritário senso crítico da Policia Federal, e o resumo da conversa virtual
está em duas partes, sem autoria definida.
Parte 1 – Nulidade
processual e cláusula pétrea
Uma Corte Suprema que empata em matéria de defesa é por si
mesma desmoralizada. Defesa é princípio absoluto previsto na Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948), como forma de proteger o cidadão da
tirania do Estado. Os signatários daquela Carta tinham razão de sobra, pois
vinham de um desastroso pós-guerra mundial. Aquela Carta foi inspirada nos
ideais da Revolução Francesa, consolidados e divulgados por meio da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, a qual consagrou os direitos
naturais, inalienáveis e não negociáveis do homem. Eis, pois, em quanto no
tempo, o STF retrocedeu.
Sob aquela perspectiva, o Brasil de uma pós-ditadura
assassina foi além na ideia, de forma que, na Constituição Federal de 1988, deu
status maior à defesa. Escreveu “ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes”... Ou seja, ao adjetivar a defesa, o constituinte ampliou o
conceito tornando-a mais soberana. O STF, até então menos flagrantemente
politizado, determinou a nulidade absoluta de qualquer processo no qual
ocorresse cerceamento de defesa. Mas, ele próprio negou esse direito ao
ex-presidente Lula. Sua defesa técnica foi tão pró forma quanto a de Dilma
Rousseff diante do Congresso Nacional.
A decisão majoritária tem grave vício de interpretação. Por
meio de dois exemplos simples (Estatuto do Idoso e Estatuto da Criança e do
Adolescente) gostaria de ajudar o leitor pouco informado a entender como a
leitura de nossa Constituição foi subvertida.
Se Estatuto do Idoso foi criado para proteger pessoas nessa
condição, qualquer artigo que possa gerar dúvida deve ser interpretado a favor
do idoso. Do mesmo modo, a lei que protege criança e adolescente não pode ser
interpretada contra quem ela visa proteger. Juristas renomados do mundo chamam
isso de interpretação teleológica da lei, ou seja, o sentido profundo daquilo
que a lei/sociedade quer proteger. A pergunta primária é: o que a lei quer
proteger?
Voltemos ao Lula e ao
circo do STF.
A Constituição de 1988 é tratada como Carta Cidadã, devido ao
enfoque que deu aos direitos e garantias individuais, tentando proteger até
direito não regulamentado, por meio de mandado de injunção. Nesse sentido,
nenhum artigo dessa Constituição pode ter interpretação de forma contrária aos
direitos fundamentais, entre eles defesa, liberdade, presunção de inocência,
etc.
O mesmo raciocínio aplicado aos estatutos de proteção ao
idoso e às crianças deve ser feito na Constituição. Mas, no caso do Lula, o STF
interpretou contrário ao direito do cidadão e solapou dele (Lula) a presunção
de inocência e o direito à liberdade garantida a qualquer pessoa. Em tempos de
normalidade democrática isso não aconteceria.
Outro ponto importante a ser destacado é que o Art. 60,
parágrafo 4º, da Constituição de 1988, coloca os direitos e garantias
fundamentais como “cláusula pétrea”. Nesse caso, nem mesmo sob o formato de
Emenda Constitucional esse assunto pode reformulado. Desse modo, somente uma
nova Constituição poderia alterar a regra de presunção de inocência e da
liberdade até o último recurso. Assim, fica claro como foi viciada a apreciação
do Caso Lula pelo STF.
2 – Fascismo e STF.
“Tem que manter isso”
O segundo ponto da conversa entre delegados foi o pensamento
“Weberiano” (não do Marx, mas da tal Rosa Weber). Foi deplorável o voto de
ocasião por ela proferido, no melhor estilo tribunal acuado pela Globo ou a
mídia como um todo. Afinal, os juízes precisam decidir conforme a opinião
pública (que eles mesmos formam por meio da mídia). No caso, além de trair a si
mesma num julgamento político, na base do “hoje voto assim”, a ministra Rosa
parece ter querido saciar a ira insana dos apoiadores do golpe. Ou quem sabe,
simplesmente seguir o que já fora adiantado por Romero Jucá, sobre o tal acordo
“com o supremo e tudo”. É como se o pensamento da ministra tivesse um quê do
impostor Temer - “tem que manter isso”.
Se o STF pensou que agora vai melhor, tudo indica que vai
piorar. Primeiro, por que ao ceder à pressão da extrema direita, se acovardou e
se apequenou. Passou a certeza de que a pressão contra a legalidade funcionou.
Tudo vai poder ser atingido por meio de expedientes exasperados. Na melhor
linha fascista, a intolerância até de juízes será tolerada.
O que o STF fez foi muito pior do que parece, ao permitir o
recolhimento do maior líder popular da América Latina, condenado sem provas, ao
relativizar politicamente o princípio sagrado da presunção de inocência.
Sucumbiu à lógica imediatista da pressão midiática, de intervenção tática no
processo eleitoral em curso e deixou de levar em conta o que está acontecendo
na Sociedade. Deixou de protegê-la de um risco concreto: o fascismo.
Não adianta tentar ignorar. O fascismo já conseguiu se
naturalizar na “elite social” e se consolidou no sequestro da política. Desse
modo, os próximos passos poderão ser piores, pois dá suporte a uma sociedade
dividida, fato que pode resvalar em confrontos iminentes. Quem irá proteger um
vizinho do outro que pensa diferente? São nítidos os sinais de que o “Direito
Penal do Lula” entra na fase do “Direito Penal do Povo”. A repressão judicial
no acampamento dos apoiadores do ex-presidente Lula, em Curitiba, fala por si.
Armando Rodrigues Coelho Neto é advogado e jornalista,
delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São
Paulo.
Do GGN