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segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Enquanto isso, bolsopatas cantam Vandre e a PF canta João Bosco, por Armando Coelho Neto

“Você, naturalmente, já foi à Disney, não é?”, perguntou a socialite ao escritor e dramaturgo Ariano Suassuna, durante um evento social no Rio de Janeiro. Perplexa com a resposta negativa, retrucou: “foi aos Estados Unidos e não foi à Disney?”. Mais uma decepção, pois o poeta respondeu que nunca havia saído do país. No desenrolar da conversa, Ariano acabou se convencendo que aquela senhora havia dividido a humanidade em duas partes: entre os que foram e os que não foram à Disney. O episódio está relatado em vídeo no Youtube e, brincadeira ou não, reflete o fútil e alienado perfil de grande parte da sociedade brasileira.
 Tenho ironizado o perfil classe média brasileira com uma fala da filósofa Marilena Chaui. “A classe média brasileira é uma aberração cognitiva” – seja lá o que for que ela quer dizer com isso. Aliás, vigente dentro da Polícia Federal, onde vivi mais tempo do que com minha família. Mais da metade de minha existência foi lá. Entre tapas e beijos, conheci as entranhas do pensamento dominante, o ideário do carreirismo, das fogueiras de vaidades e das puxadas de tapete... Observei perplexo o frenesi da cultura do chegar lá – pouco importa o sentido e a dimensão do que isso possa representar para os federais. Havia e há um chegar lá a qualquer custo - puxando o saco honesta ou desonestamente.
Grande parte dos integrantes da PF tem o denominado perfil “qualificado”, quando se toma por base os referenciais médios de aferição cultural, saldo bancário, o carro, os eletrodomésticos. Mergulhados e ou fechados nesse universo de números, signos e significados, muitos sequer têm idéia do que possa ser o tal “ideário classe média”. Até se irritam quando “um classe média” como eu (sob a perspectiva deles) critica a classe média. Mas, o universo PF não difere das demais confrarias golpistas. Numa entrevista sobre salário, um desembargador paulista disse que seus colegas entram em depressão por não poderem viajar pra Miame. Um auditor fiscal, durante debate salarial com um ministro, fundamentou a necessidade de reajuste dizendo: “ministro, tenho dois aparelhos de ar condicionado e só estou ligando um”.
O que a Polícia Federal tem a ver com Ariano Suassuna e Marilena Chaui? O ideário classe média descrito por ambos, que por conta da aberração cognitiva separa o mundo entre quem foi ou não à Disney. Quero, pois, falar da burrice crônica da classe média desconectada e o faço ao me dar conta de que numa manifestação pró-intervenção militar, uma legião de bolsopatas o fez entoando a canção “Pra não dizer que não falei das flores”, de autoria do Geraldo Vandré. Perdidos de tudo, os bolsopatas não conseguem estabelecer um diálogo político civilizado com qualquer cidadão. Ao mesmo tempo em que têm informação, a conjugação de dados é rasteira e tendenciosa. Como assim? Já ouviram falar de Geraldo Vandré mas não sabem o que defendeu e nem o que aconteceu com ele por defender suas idéias. 
Ao ver o uso inadequado da canção de Vandré, lembrei de uma campanha política de Paulo Salim Maluf embalada pela música “Explode Coração”, composta por Gonzaguinha, que se vivo estivesse à época, não permitiria o aviltamento público de sua obra. Não sem propósito, Chico Buarque desautorizou o uso da canção “Roda Viva” no hoje desmoralizado programa do mesmo nome. Coisas da aberração cognitiva de que fala Marilena Chaui, tão odiada dentro da PF quanto o ex-presidente Lula, justo ele que propiciou os melhores salários e recursos materiais para instituição. Justo ele, ligado ao partido que, por meio da legítima Presidenta Dilma, conferiu o maior arsenal jurídico para a PF trabalhar. 

Daí que quando discuto a acefalia crônica do ideário classe média, de pronto me ocorre os barnabés da golpista Polícia Federal. Seus servidores não aprenderam nada, quando, por burrice, maldade, preconceito ou ódio aos pobres, apoiaram a candidatura de Aécio Neves e até hoje integra a vassalagem do covil tucano. A propósito, a falange paulista concede ou concedeu sesmarias a delegados ativos e inativos da PF. Afinal, Alckmin, Serra, Dória e Huck não dormem em serviço e quer manter sesmarias na polícia judiciária mais bem paga do País. Polícia, aliás, onde cresce vertiginosamente o ideário bolsopata, no melhor estilo aberração cognitiva do quem foi ou não à Disney.
Pois bem. Recentemente, se o ideário bolsopata da PF não engrossou o coral cantando Vandré pró-intervenção militar, em mais uma pirotecnia truculenta, batizou uma operação pelo nome de “Esperança Equilibrista”, numa alusão a obra de João Bosco e Aldir Blanc (O Bêbado e a Equilibrista). Indignado, o autor, por meio de nota no Facebook, destacou a truculência bolsopata que a cada dia se consolida na PF. Segundo ele, a canção foi concebida “em honra a todos os que lutaram contra a ditadura... Não autorizo, politicamente, o uso dessa canção por quem trai seu desejo fundamental. Noutras palavras, o ideário classe média da PF poderia dormir sem essa.
Vexames da PF à parte, o que choca é a superficialidade que tem marcado as ações da PF, com matizes mais intensas na trupe golpista de Curitiba. É dela que brotam as interpretações rasteiras da lei e dá mote à mídia produtora de sofismas. Via cínico jogo de palavras, produz ilusões de verdades e pós-verdades. Inspirada, movida e consubstanciada pela mentalidade excludente e precária de quem divide a sociedade entre quem foi ou não à Disney.

É essa gente com raciocínio raso que vem traçando os destinos do País. É com essa “profundidade” que produzem leis, investigam, acusam, condenam, destroem reputações. É com essa mentalidade que a Farsa Jato exibe como troféu a recuperação de R$ 1,4 bilhões para a Petrobras. Um fundamentado discurso da Senadora Gleisi Hoffmann revela que os ativos da empresa são de R$ 802 bilhões e que só no primeiro mandato da Presidenta Dilma Rousseff foram investidos R$ 462 bilhões. Mostra também que a Farsa Jato causou prejuízo de R$ 140 bilhões à empresa e que causou três milhões de desempregados. 
O fruto dessa aberração cognitiva impede a análise daqueles números e intensifica o conteúdo ginasiano da sentença condenatória de Lula.  É com essa profundidade que os meios de comunicação colocaram o Brasil como o segundo pais do mundo em que as pessoas têm a percepção equivocada sobre a realidade, segundo pesquisa internacional do instituto Ipsos Mori.
A rasidade do raciocínio superficial que divide o País entre os que foram e não foram à Disney e o voyeurismo estimulado que gravita em torno disso se tornam engraçadas na crônica de Ariano Suassuna. Mas é trágica na vida real do povo brasileiro, dominado por uma elite burra, mesquinha, atrasada e malvada. A verdadeira aberração cognitiva, na qual bolsopatas cantam Vandré e a PF canta João Bosco...
Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista e advogado, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo
GGN

domingo, 25 de junho de 2017

“A classe média é feita de imbecil pela elite”, Jessé Souza

Os extratos médios, diz o sociólogo, defendem de forma acrítica os interesses dos donos do poder e perpetuam uma sociedade cruel forjada na escravidão.
Paulo Pinto/Fotos Públicas
Inocentes úteis? Ou só úteis?

Em agosto, o sociólogo Jessé Souza lança novo livro, A Elite do Atraso – da Escravidão à Lava Jato. De certa forma, a obra compõe uma trilogia, ao lado de A Tolice da Inteligência Brasileira, de 2015, e de A Ralé Brasileira, de 2009, um esforço de repensar a formação do País.

Neste novo estudo, o ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada aprofunda sua crítica à tese do patrimonialismo como origem de nossas mazelas e localiza na escravidão os genes de uma sociedade “sem culpa e remorso, que humilha e mata os pobres”. A mídia, a Justiça e a intelectualidade, de maneira quase unânime, afirma Souza na entrevista a seguir, estão a serviço dos donos do poder e se irmanam no objetivo de manter o povo em um estado permanente de letargia. A classe média, acrescenta, não percebe como é usada. “É feita de imbecil” pela elite.

CartaCapital: O impeachment de Dilma Rousseff, afirma o senhor, foi mais uma prova do pacto antipopular histórico que vigora no Brasil. Pode explicar?

Jessé Souza: A construção desse pacto se dá logo a partir da libertação dos escravos, em 1888. A uma ínfima elite econômica se une uma classe, que podemos chamar de média, detentora do conhecimento tido como legítimo e prestigioso. Ela também compõe a casta de privilegiados. São juízes, jornalistas, professores universitários. O capital econômico e o cultural serão as forças de reprodução do sistema no Brasil.

Em outra ponta, temos uma classe trabalhadora precarizada, próxima dos herdeiros da escravidão, secularmente abandonados. Eles se reproduzem aos trancos e barrancos, formam uma espécie de família desestruturada, sem acesso à educação formal. É majoritariamente negra, mas não só. Aos negros libertos juntaram-se, mais tarde, os migrantes nordestinos. Essa classe desprotegida herda o ódio e o desprezo antes destinados aos escravos. E pode ser identificada pela carência de acesso a serviços e direitos. Sua função na sociedade é vender a energia muscular, como animais. É ao mesmo tempo explorada e odiada.

CC: A sociedade brasileira foi forjada à sombra da escravidão, é isso?

JS: Exatamente. Muito se fala sobre a escravidão e pouco se reflete a respeito. A escravidão é tratada como um “nome” e não como um “conceito científico” que cria relações sociais muito específicas. Atribuiu-se muitas de nossas características à dita herança portuguesa, mas não havia escravidão em Portugal.

Somos, nós brasileiros, filhos de um ambiente escravocrata, que cria um tipo de família específico, uma Justiça específica, uma economia específica. Aqui valia tomar a terra dos outros à força, para acumular capital, como acontece até hoje, e humilhar e condenar os mais frágeis ao abandono e à humilhação cotidiana.

CC: Um modelo que se perpetua, anota o senhor no novo livro.

JS: Sim. Como essa herança nunca foi refletida e criticada, continua sob outras máscaras. O ódio aos pobres é tão intenso que qualquer melhora na miséria gera reação violenta, apoiada pela mídia. E o tipo de rapina econômica de curto prazo que também reflete o mesmo padrão do escravismo.

CC: Como isso influencia a interpretação do Brasil?

JS: A recusa em confrontar o passado escravista gera uma incompreensão sobre o Brasil moderno. Incluo no problema de interpretação da realidade a tese do patrimonialismo, que tanto a direita quanto a esquerda, colonizada intelectualmente pela direita, adoram. O conceito de patrimonialismo serve para encobrir os interesses organizados no chamado mercado. Estigmatiza a política e o Estado, os “corruptos”, e estimula em contraponto a ideia de que o mercado é um poço de virtudes.

"O ódio aos pobres é intenso"
CC: O moralismo seletivo de certos setores não exprime mais um ódio de classe do que a aversão à corrupção?

JS: Sim. Uma parte privilegiada da sociedade passou a se sentir ameaçada pela pequena ascensão econômica desses grupos historicamente abandonados. Esse sentimento se expressava na irritação com a presença de pobres em shopping centers e nos aeroportos, que, segundo essa elite, tinham se tornado rodoviárias.

A irritação aumentou quando os pobres passaram a frequentar as universidades.
 Por quê? A partir desse momento, investiu-se contra uma das bases do poder de uma das alas que compõem o pacto antipopular, o acesso privilegiado, quase exclusivo, ao conhecimento formal considerado legítimo. Esse incômodo, até pouco tempo atrás, só podia ser compartilhado em uma roda de amigos. Não era de bom tom criticar a melhora de vida dos mais pobres.

"O ódio aos pobres é intenso"

CC: Como o moralismo entra em cena?

JS: O moralismo seletivo tem servido para atingir os principais agentes dessa pequena ascensão social, Lula e o PT. São o alvo da ira em um sistema político montado para ser corrompido, não por indivíduos, mas pelo mercado. São os grandes oligopólios e o sistema financeiro que mandam no País e que promovem a verdadeira corrupção, quantitativamente muito maior do que essa merreca exposta pela Lava Jato. O procurador-geral, Rodrigo Janot, comemora a devolução de 1 bilhão de reais aos cofres públicos com a operação. Só em juros e isenções fiscais o Brasil perde mil vezes mais.
Souza: novo livro em agosto (Foto: Filipe Vianna)

CC: Esse pacto antipopular pode ser rompido? O fato de os antigos representantes políticos dessa elite terem se tornado alvo da Lava Jato não fragiliza essa relação, ao menos neste momento?

JS: Sem um pensamento articulado e novo, não. A única saída seria explicitar o papel da elite, que prospera no saque, na rapina. A classe média é feita de imbecil. Existe uma elite que a explora. Basta se pensar no custo da saúde pública. Por que é tão cara? Porque o sistema financeiro se apropriou dela. O custo da escola privada, da alimentação. A classe média está com a corda no pescoço, pois sustenta uma ínfima minoria de privilegiados, que enforca todo o resto da sociedade. A base da corrupção é uma elite econômica que compra a mídia, a Justiça, a política, e mantém o povo em um estado permanente de imbecilidade.

CC: Qual a diferença entre a escravidão no Brasil e nos Estados Unidos?

JS: Não há tanta diferença. Nos Estados Unidos, a parte não escravocrata dominou a porção escravocrata. No Brasil, isso jamais aconteceu. Ou seja, aqui é ainda pior. Os Estados Unidos não são, porém, exemplares. Por conta da escravidão, são extremamente desiguais e violentos. Em países de passado escravocrata, não se vê a prática da cidadania. Um pensador importante, Norbert Elias, explica a civilização europeia a partir da ruptura com a escravidão. É simples. Sem que se considere o outro humano, não se carrega culpa ou remorso. No Brasil atual prospera uma sociedade sem culpa e sem remorso, que humilha e mata os pobres. 

CC: Algum dia a sociedade brasileira terá consciência das profundas desigualdades e suas consequências?

JS: Acho difícil. Com a mídia que temos, desregulada e a serviço do dinheiro, e a falta de um padrão de comparação para quem recebe as notícias, fica muito complicado. É ridícula a nossa televisão. Aqui você tem programas de debates com convidados que falam a mesma coisa. Isso não existe em nenhum país minimamente civilizado. É difícil criar um processo de aprendizado.

CC: O senhor acredita em eleições em 2018?

JS: Com a nossa elite, a nossa mídia, a nossa Justiça, tudo é possível. O principal fator de coesão da elite é o ódio aos pobres. Os políticos, por sua vez, viraram símbolo da rapinagem. Eles roubam mesmo, ao menos em grande parte, mas, em analogia com o narcotráfico, não passam de “aviõezinhos”. Os donos da boca de fumo são o sistema financeiro e os oligopólios. São estes que assaltam o País em grandes proporções. E somos cegos em relação a esse aspecto. A privatização do Estado é montada por esses grandes grupos. Não conseguimos perceber a atuação do chamado mercado. Fomos imbecilizados por essa mídia, que é paga pelos agentes desse mercado. Somos induzidos a acreditar que o poder público só se contrapõe aos indivíduos e não a esses interesses corporativos organizados. O poder real consegue ficar invisível no País.

CC: O quanto as manifestações de junho de 2013, iniciadas com os protestos contra o reajuste das tarifas de ônibus em São Paulo, criaram o ambiente para a atual crise política?

JS: Desde o início aquelas manifestações me pareceram suspeitas. Quem estava nas ruas não era o povo, era gente que sistematicamente votava contra o projeto do PT, contra a inclusão social. Comandada pela Rede Globo, a mídia logrou construir uma espécie de soberania virtual. Não existe alternativa à soberania popular. Só ela serve como base de qualquer poder legítimo. Essa mídia venal, que nunca foi emancipadora, montou um teatro, uma farsa de proporções gigantescas, em torno dessa soberania virtual. 
Um resumo das relações sociais no Brasil
CC: Mas aquelas manifestações foram iniciadas por um grupo supostamente ligado a ideias progressistas...

JS: Só no início. A mídia, especialmente a Rede Globo, se sentiu ameaçada no começo daqueles protestos. E qual foi a reação? Os meios de comunicação chamaram o seu povo para as ruas. Assistimos ao retorno da família, propriedade e tradição. Os mesmos “valores” que justificaram as passeatas a favor do golpe nos anos 60, empunhados pelos mesmos grupos que antes hostilizavam Getúlio Vargas. Esse pacto antipopular sempre buscou tornar suspeito qualquer representante das classes populares que pudesse ser levado pelo voto ao comando do Estado. Não por acaso, todos os líderes populares que chegaram ao poder foram destituídos por meio de golpes. 

Da Carta Capital