Outro
dia, cometi o desatino de entrar na página de um dos líderes da campanha para
proibir Judith Butler de falar no Brasil - um olavete de poucas luzes e muitos
milhares de seguidores, que divide suas postagens entre ataques à filósofa
estadunidense, protestos de fidelidade canina ao guru de Richmond e a defesa da
ideia de que é preciso anular a Reforma protestante.
A
mistura de má fé, desinformação deliberada e ignorância não causa espanto, pois
é o feijão com arroz desse pessoal. O espantalho da "ideologia de
gênero" é mobilizado generosamente. Uma observação de Butler - de que suas
contribuições à discussão sobre gênero são antigas e hoje o foco de sua
reflexão é outro - é apresentada como evidência de que ela estaria amarelando
diante da campanha contra sua presença no Brasil. Argumenta-se que não há
tentativa de censura, pois o abaixo-assinado para calá-la tem mais de 200 mil
apoios, uma falácia lógica tão bizarra que não pode ter passado desapercebida a
quem a cometeu.
O
que é grave é a recusa explícita à noção de que se deve "combater ideias,
e não pessoas". Ao contrário, diz o cruzado anti-Butler, são as pessoas
que devem ser combatidas. Os exemplos são chocantes: "Tivesse a pobre
Igreja combatido heresias, sem advertir, convocar e, então, excomungar hereges,
não estaríamos aqui" (no lugar de "excomungar" é fácil colocar
"queimar"). Ou, então, numa aproximação talvez inesperada:
"Stálin se fixou no poder matando Trotsky, e não combatendo seus ideais
internacionalistas apenas".
É
um chamamento à violência e mesmo ao assassinato político. E não vem de um
maluco isolado qualquer; ele apenas verbaliza de forma mais aberta e mais
extremada o que já é o modus operandi da direita bolsonariana e mebelística,
que aposta na intimidação física e no cerceamento pela força da expressão de
vozes dissidentes.
Com
a ruptura da democracia, o jogo político está mudando, infelizmente para pior,
para muito pior. Cabe à esquerda entender isso. Nós queremos o livre debate de
ideias, porque nele, não tenho dúvidas, nós ganhamos de lavada. Mas não podemos
assistir passivamente ao fechamento de nossos espaços, muito menos confiar num
aparato policial e judiciário que se posiciona sem disfarces ao lado de nossos
adversários.
Mesmo
o reverendo Martin Luther King sabia que uma marcha não-violenta pelos direitos
civis às vezes dependia do apoio de grupos de autodefesa negra, como os Deacons
for Defense and Justice. Já passou da hora da esquerda brasileira
levar a sério a necessidade da autodefesa antifascista.
GGN