Por
má fé ou ignorância (às vezes pelas duas virtudes juntas) tem muita gente
condenando a participação das brigadas de médicos cubanos que saem pelo mundo
combatendo o Coronavírus. A alegação é de que eles são médicos de família,
generalistas, sem experiência em infectologia e virologia. Uma dessas vozes
está em uma matéria publicada pelo Washington Post. “Os cubanos nunca foram necessários”,
afirma o doutor Santiago Carrasco, atual presidente da Federação Médica do
Equador. “Eles nem eram especialistas”.
O
doutor Carrasco – que não se perca pelo sobrenome – não deve saber, ou sabe e
esconde, que os médicos que estão enfrentando o Coronavírus não são os mesmos
médicos de família que estiveram, entre outros países, no Brasil e no
Equador.
As
brigadas cubanas que lutam contra o Covid-19 fazem parte de uma organização sem
precedentes no mundo, o “Contingente Internacional de Médicos Especializados em
Situações de Desastres, Pandemias e Graves Epidemias”. Conhecidas pelos cubanos
como “Brigadas Emergentes Henry Reeve”, elas foram concebidas pessoalmente por
Fidel quinze anos atrás, quando o Comandante enviou uma centena de médicos
cubanos em missão humanitária a Angola. (Não será demais lembrar que foi graças
ao envio de 250 mil soldados cubanos armados à África que Angola conquistou sua
independência, levando de arrastão o Apartheid sul-africano e permitindo a
libertação de Nelson Mandela.)
A um estrangeiro pode parecer estranho que as brigadas tenham sido batizadas com
o nome de Henry Reeve, um gringo. Reeve, para quem não sabe, era um adolescente
de dezesseis anos nascido no Brooklyn, em Nova York, em abril de 1850. Lutou na
Guerra de Secessão dos EUA e em seguida emigrou para Cuba, onde se alistou como
voluntário na Guerra de Independência contra a Espanha. Depois de participar de
mais quatrocentos batalhas ao lado do Exército Libertador de Cuba, morreu em
combate aos 26 anos lutando contra as tropas coloniais espanholas.
Esses
homens e mulheres que o imbecil equatoriano diz que não têm especialização
lutaram contra a malária e o ebola em metade da África, e atuaram como
infectologistas, que eu me lembre, de memória, em Serra Leoa, na Armênia, no
Haiti, no Congo, na Guiné Bissau, na Etiópia, curaram as crianças contaminadas
pela tragédia de Chernobyl e combateram epidemias nos confins do Laos.
Quem
não tem contribuição a dar à guerra contra o Coronavírus deveria ficar de boca
fechada. Já seria uma grande ajuda.
A mídia ganhou nos últimos anos um poder de manipulação que
consequentemente matou sua capacidade de mediação.
O País tem assistido a uma disputa de narrativas que é uma
das coisas mais nonsense de sua história. Veja o episódio da saída dos médicos
cubanos.
Bolsonaro queria mudar pagamento ao governo cubano e impôr a
revalidação do diploma, um conjunto de exigências que acabaria com o programa
Mais Médicos.
Hoje, com Cuba anunciando sua retirada da parceria, Bolsonaro
diz a seus seguidores que libertou os médicos da escravidão e os devolveu a
seus familiares. Mas como deputado, Bolsonaro tentou proibir, por exemplo, a
vinda dessas mesmas famílias ao Brasil.
É um caso que mostra que estamos lidando com um mentiroso
clássico, que foi eleito presidente da República.
De um lado teríamos o pessoal do Bolsonaro dizendo que os
cubanos foram libertados e, de outro, aqueles que dizem que a saída dos
cubanos, com todos os reflexos sobre 600 municípios que ficarão sem médico, é
culpa das declarações do presidente eleito.
Quem que faz a mediação da opinião pública? Deveria ser a
mídia, os chamados jornais da grande mídia, aqueles que definem a opinião. Mas
você não tem mais essa imprensa aqui.
Desde o impeachment Collor há um jornalismo de guerra que
consiste em sempre dar as versões que interessavam, que dão manchete mesmo em
cima de avaliações erradas e sensacionalistas. O importante é ter volume de
leitura.
De 2005 para cá, quando Roberto Civita montou a cartelização
da mídia e implementou defitivamente o jornalismo de guerra, qualquer história
de mediação veio por água abaixo.
No jornalismo de guerra, o que importa é ganhar a narrativa
considerando alguns interesses, como o do mercado.
Há inúmeros exemplos de narrativas erradas que ganham a
opinião pública nos últimos anos. A história que Bolsonaro repete, de que há um
número gigante de estatais e por isso tudo deve ser privatizado, é uma delas.
Que a Petrobras foi quebrada pela corrupção, é outra narrativa manipulada.
O que levou a uma redução de valor da Petrobras foi a queda
do preço do barril de petróleo no ambiente internacional. Os ajustes contábeis
decorrentes desse fato foram todos tratados pela imprensa meramente como valor
da corrupção.
Há décadas, diariamente, a mídia viciou o organismo da
opinião pública em toda sorte de manipulação. E soma-se a isso a arrogância que
acompanhou a imprensa desde o impeachment do Collor, como se ela fosse o poder
maior. Tudo isso matou a capacidade de mediação da mídia.
Então, agora, quando chega um novo governo com um chanceler
que fala os absurdos que fala, com os filhos do presidente e outros membros do
núcleo duro moldando discursos com base numa visão religiosa fundamentalista,
sem conhecimento técnico e científico sobre vários assuntos, prevalecem as
mentiras deslavadas, como essa do Mais Médicos, porque a mídia já não consegue
fazer a mediação.
A mídia ganhou nos últimos anos um poder de manipulação que
consequentemente matou sua capacidade de mediação.
A queda na qualidade jornalística comprometeu a
informação, que é fundamental dentro de um ambiente democrático e de mercado.
Através da informação é que se forma a opinião, e através da opinião você forma
os pactos jurídicos, políticos, constitucionais, e dali derivam as leis.
O que aconteceu foi que o desmonte da credibilidade da
informação se deu ainda no período de predomínio da mídia, e agora as redes
sociais bagunçam mais ainda a guerra de narrativas. Não adianta mais a imprensa
dizer que a culpa dos Mais Médicos é do Bolsonaro porque o pessoal vai
acreditar no que ele diz nas redes.
O grande problema, acima de tudo, são os filtros, a falta de
canais de controle. Trump tem seus canais de controle dentro do próprio
governo. É o que está impedindo que as maluquices dele tenham consequencias
maiores. Lá, por trás de tudo, você tem uma mídia de opinião que faz a cabeça
dos técnicos que seguram os abusos. Fazem a cabeça gerando debate na imprensa a
partir de várias opiniões técnicas. Isso não tem no Brasil. O que a mídia criou
dentro das corporações públicas, nesse período, foi uma militância antipetista
que se sobrepôs ao debate técnico e aos mecanismos de controle.
Não importa mais se a consequência é que vamos deixar milhões
sem médicos. O que importa é que vamos tirar esses comunistas daqui. Vence o
discurso que não se submeteu à mediação.
O padrão de mediação da mídia, em relação a qualquer governo,
deveria ser o de elogiar o que tem de ser elogiado, e criticar o que tem de ser
criticado, para que o leitor entenda o peso. Mas esse padrão não foi
estabelecido.
Hoje temos um País em que todas as barbaridades, no plano das
discussões das ideias, ganham força. Tudo vira guerra de narrativas.
Infelizmente a imprensa tenta agora de algum modo recuperar a
credibilidade perdida, mas foram muitos anos de demonstração de poder, de usar
a influência midiática para promover badernas e derrubar presidentes, e hoje o
mercado de opinião está a mercê de qualquer cultivador de teorias de disco
voador.
Assista o comentário de Luis Nassif, na íntegra, abaixo: