A operação Lava Jato é uma peça teatral com juiz acumulando
papéis de investigador, acusador e magistrado; procurador como assistente
inquisitorial; e uma plateia à frente, a opinião pública, hipnotizada por
informações que lhes são seletivamente vazadas, via conluio de veículos de
imprensa interessados em estimular a demonização e a condenação antecipada
deste ou daquele réu (inimigo). Esta estratégia de destruição midiática do
oposto tem sido utilizada de reverso na heroicização dos protagonistas,
transformando o juiz em super magistrado, com poder de impor sua vontade tanto
às varas de todo país, como aos tribunais acima de sua jurisdição. Nos demais
papéis, nenhum mistério: alguns réus em pontas secundárias e um antagonista
encarnando o papel de vilão-mor a ser execrado publicamente.
Foi assim que, num episódio de indisfarçável apelo midiático,
reproduzido em TVs de todo país, entre clichês e datashow, meia dúzia de
tecnocratas do ministério público federal, absorta em interesses
políticos, “sem provas, mas com convicção”, tomando como base
indícios frágeis e delações premiadas (que, além de viciadas, nem diretamente
comprometiam o réu) e apelando juridicamente a suposições e ao domínio do fato,
apresentou denúncia frágil, que, doravante, repercutiu na mais que previsível condenação
de primeiro grau ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Previsível não por
ser justa ou devida, mas por ter sido julgada pelo mesmo personagem que o
investigou e o acusou.
A mesma pessoa que, mesmo antes do ex-presidente se tornar
réu na ação que ora responde, já lhe havia determinado uma violenta e
injustificada condução coercitiva para prestação de depoimento, nas primeiras
horas da manhã, sob forte escolta policial, com transmissão ao vivo pelas
lentes de TVs de todo país, resultando em horas de detenção ilegal. O mesmo
super magistrado que lhe determinou a quebra do sigilo telefônico e que
condescendeu com o vazamento para a imprensa de áudios íntimos seus e de sua
família, determinando, sem autorização do STF, a escuta telefônica da então presidenta
da República Dilma Vana Rousseff, conversa que também foi vazada. Trata-se do
juiz Sérgio Fernando Moro.
Não foram as primeiras e, certamente, não serão as últimas
violações de prerrogativas individuais, liberdades fundamentais, do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seus familiares e correspondentes
advogados que o juiz Sérgio Moro patrocinará no âmbito da farsa chamada Lava
Jato. Os fatos são de tal natureza graves que estão denunciados no Comitê de
Direitos Humanos da ONU. “O Lula não está acima da lei, mas também não
está abaixo dela”, tem dito em palestras a advogada do ex-presidente, Valeska
Teixeira Zanin Martins. O ex-mandatário só precisa de um juízo imparcial para
provar sua inocência, o que já conseguiu demonstrar, por exemplo, no processo
que lhe foi aberto no juízo federal de Brasília, relacionado à delação premiada
do ex-senador Delcídio do Amaral. Ali, o ministério público federal não relutou
em requerer a absolvição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na acusação
de tentativa de obstrução dos trabalhos da Lava Jato através da compra de
silêncio do delator Nestor Cerveró, ex diretor da estatal e um dos principais
pivôs do escândalo de corrupção objeto de toda operação investigativa.
Há nítida utilização de lawfare contra o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na ação criminal que responde perante o
juízo paranaense. Mal fora sentenciado e o presidente da Corte que irá julgá-lo
em segunda instância reverberou para a grande mídia nacional escandalosa
saudação ao juiz Sérgio Moro, venerando de forma parcial a sentença que,
segundo sua compreensão, de tão irretocável, produto de um trabalho minucioso,
tecnicamente irrepreensível, entrará para a história do país. Menos mal que o
desvairado dirigente do TRF admitiu, também, na ocasião, não haver lido o
processo, sequer ter tido acesso às provas, ou seja, deixando claro sua falta
de isenção para figurar como Estado-juiz no caso, nem mesmo para que sua
opinião fosse levada a sério, com um mínimo de respeito.
No ritmo da tragicomédia em curso, estreou no país,
recentemente, o filme “Operação Lava Jato – A lei é Para Todos”, com direito a
PT na expressão final e tudo mais. Na avant-première, em Curitiba, um
sorridente Moro, acompanhado de sua não menos jubilosa esposa, empanturrava-se
com um saco vermelho de pipoca em meio ao público. Sobre isso, com a breve
observação de que os patrocinadores da trama (não se sabe por que) preferem
manter-se no anonimato, vale a transcrição de comentário do juiz da Vara de
Execução Penal do Tribunal de Justiça do Amazonas, Doutor em Direito Penal pela
Universidade de São Paulo, Dr. Luís Carlos Valois, postado em sua página no
facebook: “Se o filme fosse sobre algum processo que eu já tive em minhas
mãos, ninguém iria sorrir, nem eu, nem ninguém. Talvez fosse um filme de drama,
talvez um de suspense, podia até ser um de terror, mas nenhum com a capacidade
de se fazer sorrir comendo pipoca. Poderia fazer chorar, fazer virar a cara,
dar nojo e até dar vontade de sair do cinema, mas nunca fazer sorrir. A justiça
penal verdadeira não devia ser local, motivo, de alegria, mas de tristeza
sempre, porque, quando age, age demonstrando o quanto falhamos como
sociedade. Não importa se a atuação da justiça penal pode ser transformada em
algo plasticamente belo, o que já é uma deturpação da verdade, a justiça penal
é triste, deve ser triste, para o bem da sociedade e da possibilidade de se
manter são. Eu não vi esse filme, mas se ele é sobre justiça penal, polícia e
prisão, e causa essa alegria toda, eu não vou ver...”.
As palavras do magistrado amazonense levantam uma preocupação
fundamental que se encontra com as pretensões do presente texto. A inquietação
da postagem nem é propriamente com a operação Lava Jato, nem com a inocência ou
culpabilidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é, fundamentalmente,
a teatralização que vem substituindo à vital ação de “fazer justiça” no Brasil.
Nesse sentido, as ansiedades lá e cá se tocam.
Há que se dar fim a muitos abusos do sistema judicial
brasileiro. A Lava Jato reflete uma crise institucional complexa, que requer um
reexame aprofundado que perpassa à compatibilidade do Judiciário com o caráter
que a Constituição lhe confere (no equilíbrio entre o papel contramajoritário e
a politização da atividade jurisdicional, nos vícios orgânicos, etc.) ao
enveredamento nos demais Poderes. De todo modo, há lições elementares sobre
direito e justiça que parecem não ser do conhecimento dos protagonistas que
estão por trás da operação e que precisam ser ditas, por exemplo:
Que no exercício das funções públicas que exercem não agem em
nome próprio, a partir de suas emoções. Eles são o Estado no exercício da
jurisdição, são o Estado aplicando a justiça. Por isso mesmo, gozam de
prerrogativas constitucionais e legais. Não para menosprezarem a ordem
constitucional, ignorarem os princípios gerais que regem as nações democráticas
e resolverem conflitos unicamente segundo seus desígnios morais e volitivos. Ao
contrário, para honrarem a Constituição da república e atuarem de forma isenta,
independente e imparcial. Noutro sentido, eles não podem, de nenhum modo,
menosprezar, espezinhar, desfrutar de prazer, orgulho ou sadismo ao determinar
uma condenação ou fixar uma pena. Também não deveriam se sentir mais
importantes por figurarem em jornais ou capas de revistas se ali estão por
meras razões informativas. Se a hipótese é o apelo midiático-especulativo,
sequer deveriam aparecer. Não deveriam se encantar ao serem venerados como
heróis por movimentos fascistas, se envaidecer com homenagens em festas black
tie ou se render ao charme de palestrar em eventos patrocinados por
pessoas e empresas que eles sabem que poderão ser as próximas vítimas dos
crimes que analisam. É o mínimo.
A propósito, não seria demasiado pedir duas coisas ao juiz
Fernando Moro: a primeira, que movesse esforços no sentido de esclarecer para o
povo brasileiro quem são os patrocinadores do filme “Operação Lava Jato – A lei
é Para Todos”. Afinal, logo ele, o super juiz brasileiro em pessoa, prestigiou
a avant-première, e não lhe caem bem, na condição de magistrado,
ambiguidades sobre eventuais interesses político-partidários. A segunda é que
seja convincente na explicação da grave denúncia que lhe foi feita sobre o
advogado Carlos Zucolotto Junior, segundo consta, personagem de sua intimidade,
com quem sua esposa já manteve parcerias profissionais, de que cobrara
aproximadamente 1/3 de valores “por fora” do foragido da justiça Rodrigo Tacla
Duran para negociar redução de pena e ampliação de benefícios em delação
premiada realizada na jurisdição federal de sua alçada, com participação de
procuradores da república, possivelmente Deltan Dallagnol.
Marcelo Ribeiro Uchôa, Advogado e Professor Doutor de Direito
da Universidade de Fortaleza
GGN