O ministro Ricardo
Lewandowski é o autor de um artigo publicado hoje na Folha de S. Paulo em que
explica por que, constitucionalmente, a prisão em segunda instância deve ser
revista. Segue o artigo:
As constituições
modernas surgiram na esteira das revoluções liberais do século 18 como
expressão da vontade do povo soberano, veiculada por seus representantes nos
parlamentos.
Desde então,
revestiram-se da forma escrita para conferir rigidez aos seus comandos eis que
foram concebidas como instrumentos para conter o poder absoluto dos
governantes, inclusive dos magistrados.
Apesar de sua rigidez,
logo se percebeu que as constituições não poderiam permanecer estáticas, pois
tinham de adaptar-se à dinâmica das sociedades que pretendiam ordenar, sujeitas
a permanente transformação. Se assim não fosse, seus dispositivos perderiam a
eficácia, no todo ou em parte, ainda que vigorassem no papel.
Por esse motivo,
passou-se a cogitar do fenômeno da mutação constitucional, que corresponde aos
modos pelos quais as constituições podem sofrer alterações.
Resumem-se basicamente
a dois: um formal, em que determinado preceito é modificado pelo legislador ou
mediante interpretação judicial, e outro informal, no qual ele cai em desuso
por não corresponder mais à realidade dos fatos.
Seja qual for a maneira
como se dá a mutação do texto constitucional, este jamais poderá vulnerar os
valores fundamentais que lhe dão sustentação.
A Constituição Federal
de 1988 definiu tais barreiras, em seu art. 60, 4º, denominadas de cláusulas
pétreas, a saber: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto,
universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias
individuais.
A presunção deinocência integra a última dessas cláusulas, representando talvez a mais
importante das salvaguardas do cidadão, considerado o congestionadíssimo e
disfuncional sistema judiciário brasileiro, no bojo do qual tramitam atualmente
cerca de 100 milhões de processos a cargo de pouco mais de 16 mil juízes,
obrigados a cumprir metas de produtividade pelo Conselho Nacional de Justiça.
Salta aos olhos que em
tal sistema o qual, de resto, convive com a intolerável existência de
aproximadamente 700 mil presos, encarcerados em condições sub-humanas, dos
quais 40% são provisórios multiplica-se exponencialmente a possibilidade do
cometimento de erros judiciais por magistrados de primeira e segunda
instâncias.
Daí a relevância da
presunção de inocência, concebida pelos constituintes originários no art. 5º,
LVII, da Constituição em vigor, com a seguinte dicção: ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença criminal condenatória, o que
subentende decisão final dos tribunais superiores.
Afigura-se até
compreensível que alguns magistrados queiram flexibilizar essa tradicional
garantia para combater a corrupção endêmica que assola o país.
Nem sempre emprestam,
todavia, a mesma ênfase a outros problemas igualmente graves, como o
inadmissível crescimento da exclusão social, o lamentável avanço do desemprego,
o inaceitável sucateamento da saúde pública e o deplorável esfacelamento da
educação estatal, para citar apenas alguns exemplos.
Mesmo aos deputados e
senadores é vedado, ainda que no exercício do poder constituinte derivado do
qual são investidos, extinguir ou minimizar a presunção de inocência.
Com maior razão não é
dado aos juízes fazê-lo por meio da estreita via da interpretação, pois
esbarrariam nos intransponíveis obstáculos das cláusulas pétreas, verdadeiros
pilares de nossas instituições democráticas.
.x.x.x.x.
RICARDO LEWANDOWSKI - é professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da USP e ministro
do Supremo Tribunal Federal.
DCM