Mostrando postagens com marcador presunção de inocência. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador presunção de inocência. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 10 de abril de 2018

Chegou a hora de acabar com essa indesejável relativização do Direito, por Ricardo Lewandowski

*Artigo originalmente publicado na edição desta terça-feira (10/4) do jornalFolha de S.Paulo, com o título "Direito como tópica"
A crescente imprevisibilidade das decisões proferidas por juízes e tribunais vem alimentando uma visível descrença no Poder Judiciário.
Esse fato traz de volta uma velha questão: o Direito, afinal, é uma ciência ou simples técnica retórica? A resposta a essa pergunta tem suscitado acaloradas discussões ao longo de várias gerações de juristas.
Tal debate não se colocava ao tempo dos antigos romanos. O Direito, para eles, tinha cunho objetivo e eminentemente prático, empregado como instrumento para consolidar a paz social, inclusive nos vastos territórios que conquistaram.
Após a queda do Império Romano, a jurisprudência latina incorporou os usos e costumes dos chamados "povos bárbaros", dando origem a um sistema híbrido, que mesclava leis escritas e práticas ancestrais, o qual perdurou por toda a Idade Média.
Com a prevalência dos ideais iluministas, surgiram as primeiras Constituições, concebidas para enquadrar o poder político, e também as grandes codificações, destinadas a racionalizar a intrincada legislação que sobreviveu à época medieval. Na crença de que esses novos textos esgotavam todo o Direito, exigiu-se dos juízes que fossem aplicados literalmente, sendo-lhes vedada qualquer interpretação.
O aprofundamento da Revolução Industrial fez com que as sociedades se tornassem mais complexas e dinâmicas, ficando logo evidente que os diplomas legais recém-editados não logravam abarcar a totalidade do Direito. Como era de esperar, passaram a apresentar inúmeras lacunas, que tiveram de ser preenchidas mediante o emprego da analogia e de outros expedientes.
Várias escolas de hermenêutica, então, se sucederam. Algumas tentaram resgatar a imperatividade das leis escritas, a exemplo da positivista, cujo maior expoente foi o austríaco Hans Kelsen (1881-1973).
Outras, de índole relativista, ao contrário, buscaram ampliar a criatividade dos juristas, como aquela chefiada pelo alemão Theodor Viehweg (1907-1988).
Viehweg repudiava o tradicional método interpretativo, consistente em subsumir fatos a normas previamente selecionadas, segundo um raciocínio lógico-formal. É que ele concebia o Direito como uma tópica, cujo significado somente poderia ser desvendado caso a caso, por meio de uma argumentação pontual. Críticos não tardaram a concluir que tal concepção, levada a extremos, geraria enorme insegurança.
Parece que hoje alguns magistrados, sobretudo os da área penal, voltaram a considerar o Direito uma mera tópica, da qual é possível extrair qualquer resultado. E o fazem pela adoção desabrida de teorias estrangeiras, em especial germânicas e anglo-saxônicas, quase sempre incompatíveis com nossa tradição pretoriana, que extrai o Direito essencialmente de fontes formais.
Chegou a hora de colocarmos um paradeiro nessa indesejável relativização do Direito, a qual tem levado a uma crescente aleatoriedade dos pronunciamentos judiciais, retornando-se a um positivismo jurídico moderado, a começar pelo estrito respeito às garantias constitucionais, em especial da presunção de inocência, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Ricardo Lewandowski é ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de Teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Do Conjur

segunda-feira, 26 de março de 2018

A FIDELIDADE à Constituição e os ATAQUES FASCISTAS a Lula., por Eugênio Aragão

Requisito para participar, como agente público, do funcionamento das instituições do Estado democrático de direito é a íntima convicção sobre o dever de respeitar e fazer respeitar a Constituição da República. Essa vinculação, mais do que no plano formal, no plano ideológico, de sua cosmovisão, ao valor jurídico e político da Constituição é o que se chama na doutrina alemã “Verfassungstreue” – ou fidelidade, lealdade à Constituição.
É assustador verificar que alguns atores-chave de nosso Estado não têm clara noção sobre seu lugar no mapa constitucional e, se confundem esse lugar, fica difícil dizer que podem ser leais à Constituição.
A presidenta do STF, por exemplo. Em entrevista ao Sistema Globo disse que seria papel do judiciário “combater a corrupção”. Nada mais equivocado do que essa afirmação. O papel do judiciário num Estado de Direito não é “combater”, mas, sim, uma vez provocado, zelar por que os que eventualmente decidam “combater” sejam enquadrados na lei quando atravessam os limites do permitido. Se o judiciário se confunde com os “combatentes”, quem vai controlá-los? Teremos um “combate” sem regras e sem limites? Porque de uma coisa já sabemos: ninguém controla o judiciário brasileiro. Não há, entre nós, freios e contrapesos aptos a limitar sua atuação quando transborda da jurisdição.
É deveras preocupante que a presidenta do STF aparenta não conhecer o lugar de seu tribunal na arquitetura institucional do país. E, se o órgão máximo de controle da constitucionalidade está perdido no cipoal das normas do direito brasileiro, imaginem o resto!
Não há fidelidade à Constituição possível, onde não há conhecimento dela.
Grande parte de nossa crise é uma crise de legitimidade. A lei maior do Estado, que deveria dar sentido a suas estruturas e funções, regrar o consenso fundamental na sociedade e permitir o convívio pacífico dos diversos grupos e das diversas tendências antagônicas na complexidade pós-moderna, deixou de significar. Só isso explica como uma senadora da direita do espectro político institucionalizado se dá ao desplante de aplaudir publicamente a ação violenta de falta de tolerância de grupos fascistas contra uma liderança nacional como Lula.
Se o STF ignora seu papel no quadro constitucional, o que dizer dos gorilas toscos que têm saudade da ditadura militar, de seus torturadores e executores? O que dizer de meganhas fardados na sedizente polícia militar de Santa Catarina que riem ostensivamente diante da agressão física a um ex-chefe de Estado com elevadíssimo índice de popularidade apesar de toda injustiça contra si cometida por operadores do direito contaminados pela febre fascista?
A volta ao leito da Constituição urge para salvar o Brasil da barbárie, pois violência chama violência e, sem lei nem legitimidade, as instituições nada podem, nada valem. Sem o consenso jurídico mínimo, instala-se entre nós a guerra civil, em que grupos e tendências antagônicas passarão a escolher a força bruta ao invés do diálogo e do discurso argumentativo para se impor sobre os adversários.
O sinal mais inquietante desse novo estágio político é o fato de ninguém mais fazer questão de sequer manter as aparências da autocontenção. Os fascistas saíram do armário glorificando a mesquinharia, o ódio social e político e a intolerância aos divergentes. Por sua vez, a justiça de classe se desnuda com o discurso falso-moralista e seletivo contra os representantes das forças democráticas. A propósito, lembro-me da advertência de Leon Trotski sobre o avanço revolucionário: quanto mais perto o embate decisivo, mais claras e transparentes se tornam as condutas e as opiniões das classes em confronto. Só na democracia liberal se cultiva a disciplina verbal como forma de escamotear conflitos latentes. Quando essa decai, a escamoteação se desfaz e os monstros se apresentam sem disfarces.
Talvez estejamos na undécima hora para o STF dar o exemplo de altivez e autoridade e fazer cumprir a Constituição, mostrar lhe ser fiel, a começar por suas garantias fundamentais, como a que estabelece a presunção de inocência dos acusados até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Somente será bem sucedido se lograr bloquear a prematura violência contra Lula que inspira as outras violências, físicas e verbais, partidas de quem não respeita à Constituição, não respeita o STF e a este, prefere, porque conveniente para dar guarida a seus abusos, um juizinho de província exibicionista, sem eira nem beira, a quem ostensivamente falece qualquer respeito e, que dirá, fidelidade à lei maior.
É essa atitude que brasileiras e brasileiros democráticos e amantes da paz esperam do STF. Ainda é tempo de fazer seu dever de casa, mas as horas se esvaem rapidamente na tempestade de intolerância política criminosa e organizada daqueles que têm desprezo e ódio pela Constituição cidadã. Parece que estão esperando um corpo, um mártir, apenas, para projetar o País do precipício para a incerteza da aventura.
Definitivamente, não merecemos isso. Não merecemos que forças sem nenhum compromisso com o Estado democrático de Direito nos retirem toda a esperança numa solução parcimoniosa, justa e, sobretudo, constitucional para a crise que criaram para desempoderar a sociedade e reinstalar a ditadura.
DCM

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Não acredito na prisão de Lula pois "Incendiaria o País", diz o ministro Marco Aurélio Melo do STF

O ministro Marco Aurélio Mello disse, na noite de quarta (24), não acreditar que o ex-presidente Lula será preso após esgotados os recursos ao TRF-4 contra a condenação imposta no caso triplex.
"Eu duvido que o façam [prendam Lula], porque não é a ordem jurídica constitucional. E, em segundo lugar, no pico de uma crise, um ato deste poderá incendiar o País", afirmou o ministro do Supremo Tribunal Federal à agência de notícias do Estadão. ​
Marco Aurélio defendeu que o Supremo Tribunal Federal revise "o quanto antes" a jurisprudência que possibilidade que ordens de prisão sejam dadas tão logos um réu seja condenado em segunda instância.
A revisão também é defendida por Gilmar Mendes, que acredita existir votos na Corte para mudar o placar antigo, de 6 x 5 contra a possibilidade de recorrer até a última instância.
Para Marco Aurélio, se Lula não for preso, "é porque essa jurisprudência realmente não encontra base na Constituição Federal, e tem que ser revista", disse. 
"Para os cidadãos em geral, (prisão após segunda instância) é o que vem ocorrendo, agora eu quero ver, é uma prova dos nove dessa nova jurisprudência, como eu disse, se forem determinar a prisão do ex-presidente. Eu não acredito", completou.
GGN

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

O cadáver do Reitor explica o sentido da Operação Ouvidos Moucos, por Armando Coelho Neto

Com perplexidade, li a sinistra nota da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), em conjunto com a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) e a Associação dos Juízes Federais de Santa Catarina (AJUFESC).  Nela, registram que, ao mesmo tempo em que lamentam a morte do reitor Luiz Carlos Cancellier e se solidarizam com a família “nesse momento de dor”, vêm a público repudiar afirmações de eventuais exageros na Operação Ouvidos Moucos.

​O sinistro começa por aí. Não enxergam exagero algum numa ciclo de ações que soam como represália coronelesca das brenhas. A ação em tela é só mais uma, num conjunto de outras, que não precisam ser enumeradas. Genericamente, os desastres das operações da PF, não raro com endosso do Ministério Público Federal (amparadas por ordens judiciais), de há muito têm ares grotescos. Faz tempo que até o suspeitíssimo Gilmar Mendes fala de “prisões espetacularizadas”. Sem embargo, os calendários para desenvolvimento e os vazamentos seletivos por si sós garantem a chancela de ações políticas. A rigor, traduzem a explicita partidarização, nesses tempos de ausência e negação de provas permitidas em direito. Revelam o espírito do golpe e do “Direito Penal do Lula”.

Desse modo, soa grotesco tentar minimizar exageros, sobretudo quando, em que pese o preenchimento de alguns requisitos legais, trazem a marca do voluntarismo subjetivista. Um subjetivismo moralista que se contrapõe à subjetividade da dor alheia espezinhada. O “respeito” que a nota registra em relação à família não foi o mesmo quando a fúria punitiva humilhou publicamente um homem com história, currículo e DNA democrático. Um reitor de universidade foi tratado como rábula, mas, para os oficiantes do moralismo de plantão, isso não é dor. Como dito no texto da semana passada, são ações executadas por pessoas para quem dor é o dedo preso numa porta. Desse modo, a dor em relação à família, em detrimento da dor do então vivo, soa como mera retórica corporativista, de quem está “acima do bem e do mal”.

Não há perdão, já o disse e repito: a Polícia Federal entrou para a história dos golpes, e, o Ministério Público, que deveria ser o fiscal da lei, tem feito leituras de rasas e de conveniências da lei. Basta comparar a postura da Procuradoria Geral da República em relação ao grampo da legítima presidenta Dilma Rousseff (Fora Temer!). O que dizer do endosso ao impedimento de nomeação do ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva para ministro da Casa Civil (Dilma)? O que dizer de caso similar sobre a nomeação de Moreira Franco, cuja secretaria foi transformada do dia para a noite em ministério, em pleno curso de denúncias e investigações? Onde estava o fiscal da lei quando um procurador “designado” pelo panfleto político conhecido por Veja queria se antecipar a Sérgio Moro para prender Lula? Onde estava a tal Ajufe quando Sérgio Moro inventou o “convite coercitivo” para Lula?

Quem matou o reitor foi quem concorreu para a degradação pública de sua história. A vítima não teve direito à subjetividade da amargura, nem à dor com a qual não conseguiu viver. A imprensa jogou sal na subjetividade de uma ferida idiossincrásica. Coisas do limite humano! E agora, cumpre perguntar: quem promoveu a degradação pública de pessoas, destruiu biografias - inspirado numa série de outras similares? Que juiz para proferir uma sentença, ora assume papel de acusador, ora de palestrante formador de opinião pública? Ora assume o papel de vítima, para tentar explicar porque ignora essa ou aquela prova ou falta dessas? Quem tentou prender o acompanhante de uma pessoa com câncer dentro de um hospital? Quem foi prender e quem deu manifestação favorável? Quem foi que, repentinamente, converteu essa mesma prisão de natureza necessária para desnecessária? Quem foi que se escudou num “eu não sabia”, quando Lula (por dedução) “sabia de tudo”?

É preciso contextualizar o suicídio do reitor. O “golpíchment”, viciado na origem, seguiu os trâmites da “maconha intrujada”. Hoje, são fartas as notícias de votos comprados. Viciado “ab ovo”, o estupro à democracia se deu com omissão da suporta “Alta Corte”. Não vi notas de delegados, procuradores e juízes defendendo a moralidade, estado de direito, democracia. Desse modo, soam torpes os argumentos da nota, numa democracia destroçada.  As instituições públicas têm como aliadas uma imprensa corrupta, que se encarrega de preparar o espírito dos leigos para aceitar como normal as ilegalidades  e o autoritarismo em curso, maquiados de pretensa legalidade.
A carta assinada pelos tais operadores do direito traz a marca do “quem usa cuida”. Já que suas ações são politizadas, só lhes resta a insólita conclusão de que debater excessos é politizar a tragédia. Vejam o que dizem: “Ao contrário do que vem sendo afirmado por quem quer se aproveitar de uma tragédia para fins políticos, no Brasil os critérios usados para uma prisão processual, ou sua revogação, são controlados, restritos e rígidos. Uma tragédia pessoal não deveria ser utilizada para manipular a opinião pública, razão pela qual as autoridades públicas em questão, em respeito ao investigado e a sua família, recusam-se a participar de um debate nessas condições”. Como assim?

Haja peroração! “Os integrantes das respectivas carreiras, não apenas na referida operação, como também no exercício de suas demais atribuições funcionais, norteiam-se pelos princípios da impessoalidade e da transparência, atuando de forma técnica e com base na lei”.

É de se perguntar: qual a impessoalidade em ações dirigidas para o Partido dos Trabalhadores, previamente anunciadas para a imprensa? Qual a impessoalidade de um delegado federal que fez campanha para o candidato Aécio? Que dizer de Sérgio Moro em fotos ao lado de João Dória, Aécio Neves, Gedel Vieira, Michel Temer, Geraldo Alckmin? Qual a imparcialidade dos oficiantes da Farsa Jato nesse contexto político?
Ah, tá. “Hoje você é quem manda, falou tá falado, não tem discussão”. Qual a importância de uma tragédia pessoal diante de vossa impunidade e de vosso corporativismo? Sim, sei, “timing é tudo”. A solidariedade às vítimas é condenável, é coisa de "aproveitadores". Só a defesa dos algozes é moral. Como donos da verdade, não toleram contestação. A julgar pela postura, são seres infalíveis, acima do bem e do mal. “Probleminhas em operações acontecem. Fazer o quê”?

Um homem público movido pelo sentimento do injusto se mata e os representantes daqueles que, técnica e genericamente, contribuíram para sua morte, se recusam ao debate. E o mais grotesco: não o fazem "em respeito à família" do falecido reitor.

Pasmem! Não querem a opinião da sociedade em tragédias decorrentes de seus atos - da quebra de empresas à destruição de biografias. Se não querem debater, não querem ouvir ninguém, o silêncio sobre o cadáver do reitor explica bem o significado do nome “Operação Ouvidos Moucos”.

Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista e advogado, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo.

GGN

sábado, 1 de julho de 2017

Cesare Beccaria, Lula e a presunção da inocência, por Eduardo José Santos Borges para o GGN

Os historiadores do período Moderno (entre os quais eu me incluo), fase tradicionalmente intercalada entre os séculos XVI e XVIII, tendem a caracterizar esse período histórico como o formador do pensamento contemporâneo. Homens como Voltaire, Maquiavel, Rousseau, Montesquieu, Montaigne, Hume, Hobbes e Cesare Beccaria, nos ajudaram cada um à sua maneira, entender as dinâmicas das sociedades e os passos dados pela humanidade na construção de um mundo melhor para se conviver. Esses homens nos ofereceram o Estado e algumas de suas principais instituições e formas de organização, mas também nos alertaram sobre as possíveis consequências decorrentes do mau uso destes instrumentos de poder.

Fiz essa introdução básica, apenas para criar um ambiente em torno do que pretendo escrever nos parágrafos que se seguem. A temática é o tão decantado processo contra o ex-presidente Lula e, mais recentemente, as alegações finais produzidas pelo ministério público. Diante da peça acusatória, emerge um tema que se impõe de maneira natural, a presunção de inocência. Na produção dos argumentos que se seguem irei recorrer, em determinados momentos, à companhia de um grande mestre do período moderno, o italiano Cesare Beccaria.

Para quem não conhece Cesare Bonesana, depois marquês de Beccaria, tratou-se de um grande pensador do Direito do século XVIII. Sua obra Dos Delitos e das Penas é uma interpretação filosófica da prática do Direito. O texto de Beccaria é um libelo pela liberdade, contra a acusação injusta, contra as penas infamantes e, principalmente, pelo uso da razão e da consciência na interpretação das leis.

De volta ao tema, o processo do Ministério Público contra Lula é por demais conhecido e dispensa maiores detalhes. Desde que foi feito a denúncia contra Lula, em 2016, o processo vem se arrastando e ganhando contornos kafkianos. No decorrer do processo os polos foram sendo definidos, de um lado, o ex-presidente e sua banca de advogados, e do outro, o doutor Deltan Dallagnol, os outros membros da força tarefa da Lava Jato e o juiz Sergio Moro. À primeira vista, se alguém estiver chegando recentemente de Marte, deve estar confuso diante da informação de que o Juiz está ao lado de um dos litigantes, afinal, pressupõe-se que cabe ao juiz o lugar de arbitro, ou seja, de quem esteja acima do conflito e sem envolvimento com um dos lados.

Se esse mesmo turista, que chegou recentemente de uma longa viagem por Marte, estiver achando que estamos sendo leviano com o magistrado vip de Curitiba, vamos a alguns fatos que falam por eles mesmos. Em um levantamento básico na imprensa via site de busca, encontramos os seguintes exemplos da “magistratura morana” vamos a eles acompanhados de pequenos adendos analíticos: “prisão provisória de 3 anos”, acho que nesse caso existe um erro de semântica com a palavra provisório. “Condução coercitiva de investigado sob a alegação de que estava protegendo o investigado”, justificativa mais esdruxula, contraditória e inverossímil, impossível. 

“Televisionamento ao vivo de audiência sob sigilo legal”, enquadramento perfeito no demagogo discurso de prestação de conta à opinião pública. “Vazamentos de conversas sigilosas para redes de televisão”, repete-se a explicação anterior, com a ressalva da seletividade de vazamentos ou, indo no popular: para os amigos tudo, para os inimigos a lei. “Manifestação via redes sociais solicitando apoio da população à sua cruzada moralista”, eu sou do tempo em que discrição era o outro nome que se dava a um Juiz. E, finalmente, o mais absurdo de todos eles: “O próprio juiz se posiciona como chefe de força tarefa e de operação policial, ocupando o mesmo lado do acusador”, já não seria isso um clássico caso de antecipação de sentença?

Retornando ao processo kafkiano, digo, de Lula, vamos refletir um pouco sobre a grande peça teatral que ele se tornou. Já identificamos os atores envolvidos e a temática central da trama, falta, portanto, o desenrolar do roteiro. Desde a denúncia, um personagem tem se sobressaído ao buscar para si, insistentemente, os holofotes, refiro-me ao procurador Deltan Dallagnol. O que se espera do Ministério Público em um processo penal? Recorro a quem mais conhece, o promotor Marcio Berclaz apontou os caminhos. Dele se espera a abertura de uma acusação a partir de “critérios de tradição, coerência e integridade, e, ainda assim, paradoxal e contraditoriamente sempre aberto a revisar ou desconstruir a própria pretensão acusatória”¹. Mais à frente, diz o doutor Berclaz que cabe ao órgão e seus representantes, promover “justiça e não condenações estatísticas ou matemáticas”. Por mais que possamos entender que o Ministério Público, de certa forma, será sempre uma das partes de um processo, dele se espera o cumprimento do dever de maneira equilibrada, visando se aproximar ao máximo do que podemos entender como uma atuação neutra e baseado pelas evidências, de preferência irrefutáveis, que saiam sempre, em última instância,  exclusivamente das provas.

Como, entretanto, se comportou e se comporta o Ministério Público no processo contra o ex-presidente Lula? Vamos aos fatos. Acelerando os ponteiros do processo, pulando fase inicial de investigação, acusação e defesa, vamos ao famoso Power Point do doutor Dallagnol e sua pirotecnia escatológica. Sobre a apresentação, muito já se falou, e sobrou apenas a conclusão, já transformada em “clássico do Direito”, de que se não temos prova, temos convicção.

O Power Point do doutor Dallagnol é daqueles espetáculos que entram para a história como exemplos de como a democracia e o Estado de Direito podem ser manipulados a depender da motivação de quem o manipula. Em tempos de clichês, inevitavelmente temos que recorrer a um deles, o citado procurador empreendeu uma vigorosa “construção de narrativa”. Costumo dizer aos meus alunos que com um pouco de esforço consigo vincular em uma trajetória linear o romano Júlio Cesar ao inefável Donald Trump. Com um bom encadeamento de fatos é possível construir uma narrativa que até consiga a condenação do Papa Francisco.

Ao fazer uso do Power Point como instrumento argumentativo, o doutor Dallagnol adaptou-se perfeitamente ao que tem sido chamado criticamente de “cultura do Power Point”. Uma profusão de slides e de montagens de palavras chaves encobre a incapacidade do apresentador de ser detalhista nos argumentos, e cria a sensação, no espectador, de estar diante de algo cientificamente rigoroso e irrefutável. No fundo, são só jogos de palavras e imagens, que podem fazer sucesso nas orquestradas e previsíveis apresentações de auto ajuda, mas que é uma grande irresponsabilidade ética, quando utilizada em uma peça acusatória do campo jurídico.

Não satisfeito com o frágil e débil Power Point o doutor Dallagnol nos apresentou, em suas alegações finais, uma narrativa que seria cômica, não fosse tão trágica. Suas alegações finais contra o ex-presidente Lula, trataram-se, simplesmente, da tradução em texto, da frágil estrutura argumentativa do Power Point. Contudo, diferente da linguagem do Power Point, o texto escrito exige um pouco mais em termos de detalhamento argumentativo, o procurador manteve a essência da “temos convicção, ainda que as provas sejam frágeis”, mas teve que fazer um esforço hercúleo para justificar suas mais de trezentas páginas. Vejamos o que nos diz o citado documento produzido pelo Ministério Público.

No capítulo identificado como “Pressupostos Teóricos”, o doutor Dallagnol pretendeu embasar teoricamente sua tese. Pareceu querer demonstrar que ele é muito mais do que um simples calouro que disfarça seu nervosismo e pouco domínio do assunto, se escondendo atrás de um Power Point. Mas o digníssimo procurador, não vai além dos argumentos de um quase formando que precisa impressionar a banca. Principia com um profundo desconhecimento de como funciona o presidencialismo de coalizão no Brasil, vejamos: “Nesse contexto, a distribuição, por LULA, de cargos para políticos e agremiações estava, em várias situações, associada a um esquema de desvio de dinheiro público e pagamento de vantagens indevidas. Trata-se de um complexo esquema criminoso praticado em variadas etapas e que envolveu diversas estruturas de poder, público e privado.”

Com esse argumento, o procurador condena não só Lula, mas todos os que estão exercendo cargo de executivo no país. A distribuição de cargos para aliados é prática comum em um sistema político que funciona sem construção de maiorias prévias e sem fidelidade programática. Não concordo com essa prática, acho que devemos mudar o sistema, mas vai uma grande distancia transformá-lo em argumento jurídico sem a devida prova do fato. Entretanto, Dallagnol não tem dúvida a atribuir essa prática no governo Lula como um “complexo esquema criminoso”. Nos governos municipais e estaduais, cuja prática também é realizada, imagino que o procurador acredite que todas aconteçam dentro do mais perfeito republicanismo.

Não satisfeito, diz o autor através do documento: “A análise dos fatos engloba a existência de um cartel que se relacionava de forma espúria com diretorias da maior estatal do país por mecanismo de corrupção que era praticado com elevado grau de sofisticação” Não adianta o procurador saber que os diversos delatores da Lava-Jato afirmaram que a corrupção da Petrobras antecede em muito o governo Lula. Não adianta o procurador saber que uma auditoria, feita pela KPMG, não identificou participação do ex-presidente Lula na corrupção da Petrobras. Isso pode até ser uma prova, mas não suficiente para abalar a convicção de Dallagnol.

Em outra página, o trecho mais perturbador, por ser o mais perigoso: “Se é extremamente importante a repressão aos chamados delitos de poder e se, simultaneamente, constituem crimes de difícil prova, o que se deve fazer? A solução mais razoável é reconhecer a dificuldade probatória e, tendo ela como pano de fundo, medir adequadamente o ônus da acusação, mantendo simultaneamente todas as garantias da defesa”. Veja a parte grifada, percebeu o perigo, Dallagnol admite a dificuldade das provas, não me restando alternativa que não seja recorrer ao maior jurista da história deste país, meu conterrâneo Rui Barbosa: “A acusação é sempre um infortúnio enquanto não verificada pela prova.” Portanto, na métrica do doutor Dallagnol, o  ônus da prova não é de quem acusa, pelo contrário, quem acusa, pode se dar ao luxo de acusar justamente pela dificuldade de se adquirir as provas. Acho que agora, aquele turista que esteve em Marte, está começando a entender as coisas.

Ainda sobre provas - é estranho, mas nesta peça acusatória do Ministério Público, provas é o que menos interessa – vamos ao século XVIII dar voz ao mestre Cesare Beccaria: “quando a força de várias provas depende da verdade de uma só, o número dessas provas nada acrescenta nem subtrai à probabilidade do fato: merecem pouca consideração, porque, destruindo a única prova que parece certa, derrubais todas as outras. Mas, quando as provas são independentes, isto é quando cada indício se prova à parte, quanto mais numerosos forem esses indícios, tanto mais provável será o delito, porque a falsidade de uma prova em nada influi sobre a certeza das restantes”². Traduzindo Beccaria, diríamos que o Ministério Público, não só não tem várias provas independentes contra Lula, como sua única “prova” - que se destruída derruba todas as outras – é simplesmente a admissão de ausência de provas.

Nas páginas que se seguem do documento, o procurador, para demonstrar conhecimento teórico e embasar suas teses, passa a citar uma série de autores e de exemplos em que todos tendem a  reconhecer que não há diferença de natureza entre prova direta e indireta. Esquece ele de que prova, é prova aqui e em qualquer lugar do mundo. É a vida de um ser humano que está em jogo, e, como acontece em um jogo de futebol, quando um pênalti precisa ser visto várias vezes para termos certeza de que foi pênalti, o olhar de condenação tem que ser condescendente com o árbitro.

No capítulo intitulado: “Modernas técnicas de análise de evidências”, o documento do Ministério Público recorre ao probabilismo, na vertente do bayesianismo, e o explanacionismo. Não tenho as credenciais intelectuais para analisar tais técnicas, mas indico o excelente e didático artigo do professor Lênio Streck, sobre o tema³. Antecipo uma precisa e lapidar assertiva de Lênio Streck sobre o tema em questão: “O agente do MPF nos deve accountability. Deve ser imparcial. Não pode dizer o que quer. Há uma estrutura externa que deve constranger a sua subjetividade. Essa estrutura é formada pela Constituição, as leis, as teorias da prova, as teorias sobre a verdade, enfim, há uma tradição acerca do que são garantias processuais.” O doutor Dallagnol e sua trupe desconhecem o que significa “constranger a sua subjetividade”, em outras palavras, falta-lhe a grandeza de perceber e submeter-se à outra frase mestra do Direito: o juiz é apenas aquele que erra por último.
  
Diante desse impasse metodológico e da completa falta de capacidade de se constranger, por parte do procurador, não podemos nos esquecer de que existe o outro polo do processo sofrendo, diretamente, o fundamentalismo moralista e cruzadista de alguns membros do Ministério Público. Ao outro polo, no caso o ex-presidente Lula, resta-lhe apegar-se à essência básica do Direito de que todos são inocentes até que se prove em contrário e apostar na objetividade da presunção de inocência.

Filha da Revolução Francesa, a presunção da inocência foi um avanço fundamental em termos de direitos humanos. De acordo com o artigo 9º da Declaração dos Direitos do Homem e dos Cidadãos, de 1789, “Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa, deverá ser severamente reprimido pela Lei”. Essa passou a ser a premissa básica que forjou as relações humanas nas sociedades contemporâneas. O cidadão é o centro do poder e para seu bem estar deve convergir as leis e os governos. Vejamos o que escreveu Beccaria sobre questão semelhante: “Sejam públicos os julgamentos; sejam-no também as provas do crime: e a opinião, que é talvez o único laço das sociedades, porá freio à violência e às paixões. O povo dirá: Não somos escravos, mas protegidos pelas leis.” Esse é o sentimento que deve permear um processo conduzido por um órgão como o Ministério Público, o réu deve sentir-se protegido pela lei, mas o que vemos é a lei sendo usada pelo agente público para constranger o réu.

A forma como vem sendo conduzido o processo do ex-presidente Lula fica evidente o permanente flerte com a politização da justiça. Em tempos de redes sociais com seus “juízes” de plantão sempre prontos a julgar e condenar a partir do mais simplório argumento, o doutor Dallagnol, com seu Power Point, virou a estrela do espetáculo. O ex-ministro da Justiça, Eugênio Aragão, foi de uma felicidade sutil e precisa ao afirmar que “lugar de procurador não é em púlpito de Igreja, palco de show ou em congressos para se vangloriar de seus feitos”.

Utilizar probabilidades e algoritmos para decidir sobre a liberdade de um cidadão é deixar a sociedade a mercê de interpretações jurídicas demasiado abertas. O Direito deve ser exercido no limite entre a liberdade e a pena. Ao agente, operador do Direito, cabe  o bom senso de não se sentir acima do próprio Direito. Vejamos o que podemos aprender com Beccaria sobre as interpretações da lei: “O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não à lei; a consequência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for constrangido a fazer um raciocínio a mais, ou se o fizer por conta própria, tudo se torna incerto e obscuro.”

A forma instrumental e tendenciosa como vem sendo conduzido, pelo Ministério Público, o processo do ex-presidente Lula tem sido eivado de raciocínios incertos e obscuros. Defender maior lisura e neutralidade no julgamento do ex-presidente, não significa fechar os olhos para possíveis erros cometidos por um agente público eleito para governar de maneira correta e honesta.  Defender maior lisura e neutralidade no julgamento do ex-presidente Lula, é defender o respeito ao Estado de Direito e a própria democracia. É defender o avanço civilizatório da sociedade, fruto das lutas populares e das cabeças brilhantes dos grandes pensadores iluministas a exemplo do mestre Cesare Beccaria.

Eduardo José Santos Borges - Doutor em História Social – Professor de História Moderna da UNEB.
¹ http://justificando.cartacapital.com.br/2016/03/28/qual-e-o-lugar-do-ministerio-publico-no-processo-penal/
² http://livros01.livrosgratis.com.br/eb000015.pdf.
³ http://www.conjur.com.br/2017-jun-22/senso-incomum-exoticas-teorias-usadas-mpf-seriam-chumbadas-cnmp2

GGN