Karl Marx
O Dia Mundial da Liberdade de Imprensa foi celebrado na mais
recente quinta-feira. Em muitos lugares se publicou que a data lembrava a
defesa do jornalista e a independência da informação. Viva! Desde 1993, a
Unesco estabelecera o dia 3 de maio como o Dia Mundial da Liberdade de
Imprensa. Viva, mais uma vez.
O jornal O Globo, entre outros, destacou:
“Há 25 anos, a Assembleia Geral da ONU proclamou 3 de maio
como Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, em uma ação para conscientizar
o mundo para a luta a favor do simples direito de informar — sistematicamente
violado mundo afora, seja através de violência, intimidação, censura ou
desinformação deliberada. Muito mudou desde então, principalmente com o
ascensão irrefreável das mídias digitais. Mas fazer jornalismo com liberdade,
adverte a entidade, ainda é um desafio um tanto difícil....”
Mas que interessante: Jornal Nacional, Jornal das Dez,
CBN.... Sobre as dificuldades do jornalismo, da censura e desinformação
deliberada, não temos como discordar do parágrafo acima, a partir do que vemos
no próprio grupo midiático Globo. O certo é que no Dia Mundial da
Imprensa o tom geral das notícias omitiu a defesa da liberdade de opinião, o
justo exercício da inteligência e sensibilidade do jornalista. E vem a
recordação que na imprensa jornalista não tem opinião. A sua sempre será a do
patrão. Um processo de comunismo invertido: o empregado pensa que é o
pensamento do dono do seu trabalho.
Então é hora de trazer as luzes de Marx sobre a liberdade de
imprensa. Em um de seus textos de juventude, na Gazeta Renana, ele escrveu:
“A imprensa livre é o olhar onipotente do povo, a confiança
personalizada do povo nele mesmo, o vínculo articulado que une o indivíduo ao
Estado e ao mundo, a cultura incorporada que transforma lutas materiais em
lutas intelectuais, e idealiza suas formas brutas. É a franca confissão do povo
a si mesmo, e sabemos que o poder da confissão é o de redimir. A
imprensa livre é o espelho intelectual no qual o povo se vê, e a visão de si
mesmo é a primeira condição da sabedoria”. (Destaque meu)
O que vale dizer, o povo não pode ser analisado, sequer
visto, pelo que se publica nos jornais, rádio e tevê. Ali, a condição não é
livre. Na mídia, não lhe reconhecem sequer humanidade, como no recente
noticiário da CBN sobre o desabamento do prédio em São Paulo. Ao tranquilizar
os cidadãos, vale dizer, os que merecem o nome, a emissora esclareceu: ali, só
moravam moradores de rua e drogados. Ah, bom, nem parecem gente. Mas não só
nesse caso. Nas notícias de todos os dias, quando um jovem negro é assassinado
– aliás, nem é jovem, essa categoria nobre, é marginal, traficante, o que vem a
ser o mesmo: negro e morador de favela merec a sua justiça. Em outros casos,
quando fazem caras e bocas, vozes e expressões de piedade, de “humanos”
enfim (alô, alô, construtores de robôs, olhem os modelos na tevê).
Semelhante representação ocorre quando noticiam, por exemplo, uma
desempregada que sonha em ter uma máquina de lavar e chora na imagem, ou
na notícia da criança imigrante com o corpinho morto na praia. Penso que assim
como os ingleses têm, ou tinham, a sua hora do chá, o tea time, podemos dizer
que nesses momentos os apresentadores possuem o seu hypocrisy time. Emoção
também se vê aqui.
E continua o jovem Marx na Gazeta Renana, como se escrevesse
para o Brasil deste 2018:
“Na medida em que a imprensa elogia diariamente as criações
da vontade do governo, na medida em que o próprio Deus manifestou-se na
seguinte forma sobre a sua criação, no sexto dia: ‘Verdadeiramente, foi muito
bom’, na medida em que um dia necessariamente contradiz o outro, a imprensa
mente constantemente e deve rejeitar a consciência de que mente,
escondendo assim a sua própria vergonha” (Destaque meu)
Ora, como não lembrar esse Marx nas explicações da imprensa
nacional sobre o mais medíocre e entreguista governo do Brasil até hoje? Seria
cômico, se não fosse essencialmente trágico. Fala o comentarista econômico suavizando
uma desastrosa ascensão: “Ele sobe, sobe, mas depois cai”. Ele estava falando
do dólar. E a edição que se faz da quantidade massacrante de desempregados com
carteira assinada? “É, mas se abrem novas atividades”. O que vale dizer:
vendedores em luta fratricida nas ruas, a disputar pontos de venda de
churrasquinhos. Enquanto ganham centavos, todos estão trabalhando. Diante dos
programas sociais que são cortados e se esvaziam, os âncoras (de quê, meu
Deus? Dos náufragos?) falam que o “governo passa um pente fino para retirar os
fraudadores de benefícios”. A saber: débeis mentais, deficientes de toda ordem,
miseráveis que podem e devem trabalhar porque, afinal, ainda estão vivos.
O Karl Marx mais maduro, quarenta anos adiante da Gazeta
Renana, na sua crítica à cobertura da imprensa inglesa sobre a Guerra Civil
norte-americana, é um escritor, historiador e jornalista ao mesmo tempo:
“A Inglaterra, cuja indústria está parcialmente ameaçada de
ruína através da estagnação na exploração de algodão dos estados escravagistas,
acompanha o desenvolvimento da Guerra Civil nos Estados Unidos com intensidade
febril.
Durante meses os semanários e diários principais da imprensa
de Londres reiteraram a mesma ladainha sobre a Guerra Civil Americana. Enquanto
insultam os estados livres do Norte, eles se defendem ansiosamente contra a
suspeita de serem simpatizantes dos estados escravagistas do Sul....
A guerra entre o Norte e o Sul – assim é a primeira escusa da
imprensa inglesa –é uma mera guerra tarifária, uma guerra entre um sistema de
proteção e um sistema de mercado livre. O senhor de escravos deve usufruir o
trabalho escravo em sua totalidade ou ser roubado em uma parte dele pelos
protecionistas do Norte? Está e a questão que está em litígio nesta guerra
segundo a imprensa londrina”.
Em que lugar teríamos um jornalista que flagra a história e
lhe dá uma visão de análise que será insuperável 200 anos depois? Nem mesmo o
privilegiado e brilhante John Reed conseguiu tamanha altitude ao testemunhar a
revolução de 1917. Escreve Marx:
“Mas, defende a imprensa londrina, a guerra dos Estados
Unidos não é nada mais do que uma guerra pela manutenção da União pela força.
Os ianques não podem se decidir a eliminar quinze estrelas de sua bandeira.
Eles querem parecer colossais no palco mundial. Sim, seria diferente, se a
guerra fosse pela abolição da escravatura! A questão da escravatura, no
entanto, como, entre outros, declara categoricamente The Saturday Review, não
tem absolutamente nada a ver com esta guerra...
Outro matador do Sul, Senhor Spratt, gritou: ‘Para nós é uma
questão da fundação de uma grande república escravagista’. Se, portanto,
foi de fato apenas em defesa da União que o Norte desembainhou a espada, já não
tinha o Sul declarado que a continuação da escravatura não era mais compatível
com a continuação da União? A eleição de Lincoln como presidente deu o sinal
para a secessão. No dia 6 de novembro de 1860 Lincoln foi eleito. A 8 de
novembro de 1860 veio um telegrama da Carolina do Sul: ‘A secessão é
considerada aqui como um fato consumado’”.
Voltemos ao jovem Karl Marx. Agora, não tenho o necessário
tempo e competência para refletir a crítica que ele faz ao profissional da
imprensa, quando escreveu:
“Mas a imprensa será verdadeira de acordo com a sua natureza,
atuará segundo a nobreza da sua natureza, será livre, se for degradada à
categoria de ofício? O escritor, certamente, deve ganhar sua vida a fim de
existir e de poder escrever, mas não deve de nenhuma maneira existir e escrever
a fim de ganhar a vida.... A primeira liberdade da imprensa consiste
em que ela não seja um ofício”
E cita, no escrito dos primeiros anos de luta jornalística,
as palavras de dois espartanos a um governante persa:
“Você sabe o que é ser um vassalo, mas nunca provou a
liberdade para saber se ela é doce ou não. Porque, se a tivesse provado, teria
nos aconselhado a lutar por ela não apenas com lanças, mas também com
machados”.
Ou como ele escreveu um dia, na crítica permanente à censura
que continua nas redações da mídia do capital: “A censura pune a liberdade como
se fosse um abuso”. Essa é a melhor razão para se publicar nos sítios
onde se pensa livre.
*As citações dos artigos de Marx vêm do livro “A liberdade de
imprensa”, L & PM Editores, 1980.