Os laços da grande família jurídica do Brasil voltam à tona com a Lava Jato, por Rodolfo Borges do EL País.
Em foto de
dezembro de 2009, o ministro Gilmar Mendes recebia os colegas que compunham a
Corte do STF e ministros aposentados para almoço de confraternização.
Do El Pais
Uma pendenga
entre o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e o ministro do SupremoTribunal Federal, Gilmar Mendes, está na mesa da presidenta da Corte, Carmen
Lúcia. No último dia 8, Janot entrou com um pedido para que Mendes seja
impedido de julgar o caso no STF envolvendo o empresário Eike Batista no âmbitoda Lava Jato. O procurador enxergou motivo para afastamento no caso do habeas
corpus concedido por Gilmar para libertar o bilionário já que a mulher do juiz,
Guiomar Mendes, trabalha no escritório que defende o empresário suspeito depagar propina ao ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral.
Nesta
quinta, Mendes apresentou sua defesa a Carmen Lúcia, devolvendo artilharia a
seu ‘acusador’. “A ação do Dr. Janot é um tiro que sai pela culatra. Animado em
atacar, não olhou para a própria retaguarda”, escreveu. O ministro se referia
ao fato de a filha de Janot advogar para a empreiteira OAS, uma das
protagonistas da Lava Jato, comandada no STF pelo pai. “Se o argumento do
crédito fosse levado à última instância, talvez a atuação do procurador-geral
da República pudesse ser desafiada, visto que sua filha pode ser credora por
honorários advocatícios de pessoas jurídicas envolvidas na Lava Jato”, escreveu
Mendes.
Se os laços
familiares dos dois magistrados parecem comprometê-los, talvez todo o sistema
jurídico nacional teria de ser visto com lupa. Na verdade, todas as famílias de
juristas brasileiros se parecem e, por vezes, se entrelaçam. Mas cada uma delas
enfrenta uma suspeita diferente de conflito de interesse. Neste novelo
jurídico, sobra até para os procuradores de Curitiba. Os irmãos Diogo e Rodrigo
Castor de Mattos também atuam em lados opostos da Lava Jato. O primeiro está
sob o comando de Deltan Dallagnol, enquanto o segundo se juntou à defesa do
marqueteiro João Santana. O Ministério Público Federal em Curitiba diz que o
irmão procurador não atua nos casos de Santana e que, além do mais, o
escritório do irmão advogado começou a atuar no caso após o fechamento do
acordo de delação do marqueteiro.
Os juristas
brasileiros parecem de fato tomar cuidado com seus laços de sangue —
recentemente o ministro Luiz Fux ficou de fora da disputa entre Sport e
Flamengo pelo título do Campeonato Brasileiro de 1987, porque seu filho é
advogado do rubro-negro carioca —, mas as precauções não são o bastante para
afastar as suspeitas de quem enxerga promiscuidade entre juízes e defensores,
ainda mais quando as relações se repetem com tanta frequência.
No STF, sete
dos 11 ministros têm parentes como donos, administradores ou funcionários de
grandes escritórios de advocacia, aponta levantamento do site Poder360. Um
oitavo, novamente o ministro Fux, tinha uma filha advogada que trabalhava em
grande escritório até o ano passado, quando ela deixou o posto para virar
desembargadora no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro — sob questionamento
formal de que não tinha qualificações para tanto e suspeitas de influência de
seu pai na nomeação. Assim, esse tipo de suspeita está disseminada por
praticamente todos os níveis do Judiciário nacional.
O cientista
político Frederico de Almeida, professor da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), diz que essa dinâmica tende a se repetir em todos os países, porque
as faculdades de elite, que formam os maiores juristas, ajudam a criar e até
reforçam redes que já existem em nível familiar. Mas esse fenômeno é mais
intenso no Brasil. "No caso brasileiro, o mais peculiar talvez seja que,
por sermos um país muito desigual, com uma elite muito restrita e que se
reproduz há muito tempo e com pouca abertura para novos membros, essas redes
sejam mais intensas e fechadas aqui, ainda mais nos níveis superiores",
diz Almeida.
Em sua tese
de doutorado, intitulada A nobreza togada, Almeida levantou registros que essa
prática se repete desde os tempos de monarquia no Brasil, pela simples leitura
das biografias dos magistrados. O currículo do ministro do STF Francisco de
Paula Ferreira de Resende (1832-1893), por exemplo, destaca, com orgulho, o
destino de seus rebentos na mesma seara. “Dois de seus filhos alcançaram altos
cargos na administração e magistratura do Brasil: Francisco Barbosa de Resende,
advogado e presidente do Conselho Nacional do Trabalho, e Flamínio Barbosa de
Resende, desembargador do Tribunal de Apelação do Distrito Federal”.
Nada mais
natural em uma área na qual as relações contam pontos no currículo. No século
passado, valia também enaltecer a ‘network’ com referências às amizades de
longa data, como no caso do ministro do STF João Martins de Carvalho Mourão
(1872-1951): "Foi redator, com Edmundo Lins (mais tarde presidente do
Supremo Tribunal Federal), Afonso de Carvalho (desembargador aposentado do
Tribunal de Apelação de São Paulo, do qual foi presidente), Rodrigo Brêtas
(peregrina inteligência, prematuramente falecido), Teodoro Machado (depois
conceituado advogado nos auditórios do Distrito Federal) e Francisco Brant
(depois diretor da Faculdade de Direito de Belo Horizonte), da Folha Acadêmica,
jornal literário que fez na época da faculdade”.
Fabiano
Engelmann, professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), diz que o parentesco sempre foi um fator facilitador. “A
ocupação de um cargo de assessor de desembargador, geralmente de algum parente,
sempre foi uma espécie de antessala para muitos oriundos de famílias jurídicas
que, posteriormente, seriam aprovados em concursos para a magistratura”, diz
ele. “Quando não há possibilidade legal do nepotismo diretamente, ele ocorre de
forma cruzada. Ou seja, um integrante da Justiça federal contrata o parente de
um colega da Justiça estadual, e assim sucessivamente", diz. Engelmann
lembra que há dezenas de outras formas em que as relações de parentesco atuam
no meio judicial, como na ascensão mais rápida nas carreiras públicas de
membros que são de 'famílias jurídicas'. “Obtém, assim, mais facilidade para
ocupar cargos de direção ou ser convocados para funções mais prestigiadas em
tribunais superiores”, completa.
Se as
relações servem como referência e endosso — o que, é preciso ponderar, ocorre
em quase todas as profissões —, como assegurar que os laços entre acusadores,
defensores e juízes não interfiram em seus trabalhos? O problema pode ser
atacado por pelo menos dois lados, dizem os especialistas. Já existem regras
que impedem um mesmo escritório de advocacia de assessorar duas partes de um
mesmo conflito.
Nos Estados
Unidos, contudo, a rigidez das bancas jurídicas é bem maior do que no Brasil.
Os norte-americanos criaram mecanismos internos de confidencialidade e de
responsabilização civil para evitar suspeitas. A ideia é permitir que dentro de
um grande escritório — composto às vezes por 300 advogados — os juristas possam
trabalhar em casos sem que um de seus colegas, parente de um juiz ou procurador,
por exemplo, sirva de motivo de questionamento para um processo em que nem
sequer atua, como tem ocorrido no Brasil.
Outro
caminho é aumentar a fiscalização. “O problema principal parece ser a
inexistência de órgãos de controle efetivos, como existem para o Executivo”,
diz Fabiano Engelmann. Segundo ele, tanto o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
quanto o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), além das corregedorias
dos tribunais estaduais, têm uma atuação muito tímida. “Seja por não disporem
de recursos suficientes de investigação, seja por arbitrarem punições muito
brandas. Parecem órgãos meramente formais, hoje capturados pelo corporativismo
dessas instituições e suas associações.”
Para
Engelmann, há carência também de transparência sobre os casos investigados e as
punições impostas. Faltam, enfim, dados organizados e aprofundados que possam
ser acessados pelo cidadão brasileiro. “Isso tudo pode contribuir para atenuar
a ação do tráfico de influências familial e garantir a independência do
Judiciário”, sugere. Sem isso, o orgulho do pai juiz que vê sua filha virar
desembargadora ou sócia de um grande escritório de advocacia pode acabar
corroído por suspeitas de que, ainda que não tenha ocorrido conflito de
interesse, eles dificilmente conseguirão se defende.
GGN