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terça-feira, 10 de abril de 2018

Chegou a hora de acabar com essa indesejável relativização do Direito, por Ricardo Lewandowski

*Artigo originalmente publicado na edição desta terça-feira (10/4) do jornalFolha de S.Paulo, com o título "Direito como tópica"
A crescente imprevisibilidade das decisões proferidas por juízes e tribunais vem alimentando uma visível descrença no Poder Judiciário.
Esse fato traz de volta uma velha questão: o Direito, afinal, é uma ciência ou simples técnica retórica? A resposta a essa pergunta tem suscitado acaloradas discussões ao longo de várias gerações de juristas.
Tal debate não se colocava ao tempo dos antigos romanos. O Direito, para eles, tinha cunho objetivo e eminentemente prático, empregado como instrumento para consolidar a paz social, inclusive nos vastos territórios que conquistaram.
Após a queda do Império Romano, a jurisprudência latina incorporou os usos e costumes dos chamados "povos bárbaros", dando origem a um sistema híbrido, que mesclava leis escritas e práticas ancestrais, o qual perdurou por toda a Idade Média.
Com a prevalência dos ideais iluministas, surgiram as primeiras Constituições, concebidas para enquadrar o poder político, e também as grandes codificações, destinadas a racionalizar a intrincada legislação que sobreviveu à época medieval. Na crença de que esses novos textos esgotavam todo o Direito, exigiu-se dos juízes que fossem aplicados literalmente, sendo-lhes vedada qualquer interpretação.
O aprofundamento da Revolução Industrial fez com que as sociedades se tornassem mais complexas e dinâmicas, ficando logo evidente que os diplomas legais recém-editados não logravam abarcar a totalidade do Direito. Como era de esperar, passaram a apresentar inúmeras lacunas, que tiveram de ser preenchidas mediante o emprego da analogia e de outros expedientes.
Várias escolas de hermenêutica, então, se sucederam. Algumas tentaram resgatar a imperatividade das leis escritas, a exemplo da positivista, cujo maior expoente foi o austríaco Hans Kelsen (1881-1973).
Outras, de índole relativista, ao contrário, buscaram ampliar a criatividade dos juristas, como aquela chefiada pelo alemão Theodor Viehweg (1907-1988).
Viehweg repudiava o tradicional método interpretativo, consistente em subsumir fatos a normas previamente selecionadas, segundo um raciocínio lógico-formal. É que ele concebia o Direito como uma tópica, cujo significado somente poderia ser desvendado caso a caso, por meio de uma argumentação pontual. Críticos não tardaram a concluir que tal concepção, levada a extremos, geraria enorme insegurança.
Parece que hoje alguns magistrados, sobretudo os da área penal, voltaram a considerar o Direito uma mera tópica, da qual é possível extrair qualquer resultado. E o fazem pela adoção desabrida de teorias estrangeiras, em especial germânicas e anglo-saxônicas, quase sempre incompatíveis com nossa tradição pretoriana, que extrai o Direito essencialmente de fontes formais.
Chegou a hora de colocarmos um paradeiro nessa indesejável relativização do Direito, a qual tem levado a uma crescente aleatoriedade dos pronunciamentos judiciais, retornando-se a um positivismo jurídico moderado, a começar pelo estrito respeito às garantias constitucionais, em especial da presunção de inocência, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Ricardo Lewandowski é ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de Teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Do Conjur

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Estrutura inquisitória do processo de Lula impressiona, diz jurista italiano Luigi Ferrajoli

Luigi Ferrajoli, 77 anos, pensador e jurista de fama mundial, o mais categorizado aluno de Norberto Bobbio, publicou excelente artigo na CartaCapital.
A cultura jurídica democrática italiana está profundamente perplexa com os acontecimentos que conduziram ao processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff e ao processo penal contra Lula. Tem-se a impressão de que esses acontecimentos sinalizem uma preocupante carência de garantias e uma grave lesão aos princípios do devido processo legal, dificilmente explicáveis se não com a finalidade política de pôr fim ao processo reformador realizado no Brasil nos anos da Presidência de Lula e de Dilma Rousseff, que tirou da miséria 40 milhões de brasileiros.
Ascânio Seleme e João Roberto Marinho entregam a Moro o prêmio “Faz Diferença” (Foto de Fabio Rossi / Agencia O Globo)
Antes de mais nada, a carência de garantias constitucionais da democracia política evidenciada pelo impeachment com o qual foi destituída a presidente Dilma Rousseff, legitimamente eleita pelo povo brasileiro. O crime imputado é o previsto no artigo 85 da Constituição brasileira. Apesar de esta norma ser formulada em termos não absolutamente precisos, parece-me difícil negar, com base em uma interpretação racional, e na própria natureza do instituto do impeachment, que não existiam os pressupostos para a sua aplicação. O crime previsto por essa norma é, de fato, um crime complexo, consistente, conjuntamente, de um delito-fim de atentado à Constituição e de um dos sete delitos-instrumentos elencados no art. 85 como crimes-meios.
Pois bem, na conduta de Dilma Rousseff, admitindo-se que se caracterize um desses sete crimes-meios, certamente não restou caracterizado o delito-fim de atentado à Constituição. Tem-se, portanto, a impressão de que, sob a forma de impeachment, tenha sido, na realidade, expresso um voto político de desconfiança, que é um instituto típico das democracias parlamentares, mas é totalmente estranha a um sistema presidencialista como o brasileiro. Sem contar a lesão dos direitos fundamentais e de dignidade pessoal da cidadã Dilma Rousseff, em prejuízo da qual foram violadas todas as garantias do devido processo legal, do princípio da taxatividade ao contraditório, do direito de defesa e da impessoalidade e imparcialidade do juízo.
Quanto ao processo contra o ex-presidente Lula, aqui na Itália não conhecemos os autos, senão sumariamente. Ficamos, todavia, impressionados com a sua estrutura inquisitória, manifestada por três aspectos inconfundíveis das práticas inquisitivas.
Em primeiro lugar, a confusão entre juiz e acusação, isto é, a ausência de separação entre as duas funções e, por isso, a figura do juiz inquisidor que em violação ao princípio do ne procedat iudex ex officio promove a acusação, formula as provas, emite mandados de sequestro e de prisão, participa de conferência de imprensa ilustrando a acusação e antecipando o juízo e, enfim, pronuncia a condenação de primeiro grau. O juiz Sergio Moro parece, de fato, o absoluto protagonista deste processo. Além de ter promovido a acusação, emitiu, em 12 de julho deste ano, a sentença com a qual Lula foi condenado à pena de 9 anos e 6 meses de reclusão por corrupção e lavagem de dinheiro, além de interdição para o exercício das funções públicas por 19 anos. É claro que uma similar figura de magistrado é a negação da imparcialidade, dado que confere ao processo um andamento monólogo, fundado no poder despótico do juiz-inquiridor.
O segundo aspecto deste processo é a específica epistemologia inquisitória, baseada na petição de princípio por força da qual a hipótese acusatória a ser provada, que deveria ser a conclusão de uma argumentação indutiva sufragada por provas e não desmentida por contraprovas, forma, ao contrário, a premissa de um procedimento dedutivo que assume como verdadeiras somente as provas que a confirmam e, como falsas, todas aquelas que a contradizem. Donde o andamento tautológico do raciocínio probatório, por força do qual a tese acusatória funciona como critério prejudicial de orientação das investigações, como filtro seletivo da credibilidade das provas e como chave interpretativa do inteiro processo.
Apenas dois exemplos. O ex-ministro Antônio Palocci, sob custódia preventiva, em maio deste ano, tinha tentado uma “delação premiada” para obter a liberdade, mas o seu pedido foi rejeitado porque não havia formulado nenhuma acusação contra Lula ou Dilma Rousseff, mas somente contra o sistema bancário. Pois bem, esse mesmo réu, em 6 de setembro, perante os procuradores do Ministério Público, mudou sua versão dos fatos e forneceu a versão pressuposta pela acusação para obter a liberdade. Totalmente ignorado foi, ao contrário, o depoimento de Emílio Odebrecht, que, em 12 de junho, havia declarado ao juiz Moro nunca ter doado qualquer imóvel ao Instituto Lula, ao contrário do que era pressuposto pela acusação de corrupção.
A terceira característica inquisitória deste processo é, enfim, a assunção do imputado como inimigo: a demonização de Lula por parte da imprensa. O que é mais grave é o fato de que a campanha da imprensa contra Lula foi alimentada pelo protagonismo dos juízes, os quais divulgaram atos protegidos pelo segredo de Justiça e se pronunciaram publicamente e duramente, em uma verdadeira campanha midiática e judiciária, contra o réu, em busca de uma legitimação imprópria: não a subjeção à lei e à prova dos fatos, mas o consenso popular, manifestando assim uma hostilidade e falta de imparcialidade que tornam difícil compreender como não tenham justificado a suspeição.
Palocci e Odebrecht
O juiz Moro, que continua a indagar sobre outras hipóteses de delito imputadas a Lula, antes da abertura do processo concedeu numerosas entrevistas à imprensa, nas quais atacou abertamente o imputado; promoveu as denominadas “delações premiadas”, consistentes de fato na promessa de liberdade como compensação pela contribuição dos imputados à acusação; até mesmo reivindicou a interceptação, em 2016, do telefonema no qual a presidente Rousseff propunha a Lula de integrar o governo, publicizada por ele sob a justificativa de que “as pessoas tinham que conhecer o conteúdo daquele diálogo”.
A antecipação do juízo não é, por outro lado, um hábito somente do juiz Moro. Em 6 de agosto deste ano, em uma intervista ao jornal O Estado de S. Paulo, o presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), perante o qual prosseguirá o segundo grau, declarou que a sentença de primeiro grau “é tecnicamente irrepreensível”.
Semelhantes antecipações de juízo, segundo os códigos de processo de todos os países civilizados – por exemplo os artigos 36 e 37 do Código Penal Italiano – são motivos óbvios e indiscutíveis de abstenção e afastamento do juiz. E também no Brasil, como recordou Lenio Streck, existe uma norma ainda que vaga – artigo 12 do Código da Magistratura Brasileira de 2008 – que impõe ao magistrado o dever de se comportar de modo “prudente e imparcial” em relação à imprensa. Os jornais brasileiros, invocando a operação italiana Mani pulite do início dos anos 90, se referem à operação Lava Jato que envolveu Lula como sendo a “Mãos Limpas brasileira”. Mas nenhuma das deformações aqui ilustradas pode ser encontrada no processo italiano: uma investigação que nenhum juiz ou membro do Ministério Público italiano que nela atuaram gostaria que fosse identificada com a brasileira.
São, de fato, os princípios elementares do justo processo que foram e continuam a ser desrespeitados. As condutas aqui ilustradas dos juízes brasileiros representam, de fato, um exemplo clamoroso daquilo que Cesare Beccaria, no  § XVII,  no livro Dos Delitos e das Penas, chamou “processo ofensivo”, em que “o juiz – contrariamente àquilo por ele chamado “um processo informativo”, onde o juiz é “um indiferente investigador da verdade” – “se torna inimigo do réu”, e “não busca a verdade do fato, mas procura no prisioneiro o delito, e o insidia, e crê estar perdendo o caso se não consegue tal resultado, e de ver prejudicada aquela infalibilidade que o homem reivindica em todas as coisas”; “como se as leis e o juiz”, acrescenta Beccaria no § XXXI, “tenham interesse não em buscar a verdade, mas de provar o delito”. É, ao contrário, na natureza do juízo, como “busca indiferente do fato”, que se fundam a imparcialidade e a independência dos juízes, a credibilidade de seus julgamentos e, sobretudo, juntamente com as garantias da verdade processual, as garantias de liberdade dos cidadãos contra o arbítrio e o abuso de poder.
Acrescento que mais de uma vez expressei minha admiração pela Constituição brasileira, talvez a mais avançada em temas de garantias dos direitos sociais – os limites orçamentários, a competência do Ministério Público quanto aos direitos sociais, a presença de um Procurador atuante no Supremo Tribunal Federal – a ponto de constituir um modelo daquilo que chamei de “constitucionalismo de terceira geração”. Foi em razão da atuação desse constitucionalismo avançado que no Brasil, como recordei no início, se produziu nos últimos anos uma extraordinária redução das desigualdades e da pobreza e uma melhora geral das condições de vida das pessoas.
Os penosos eventos institucionais que atingiram os dois presidentes, que foram protagonistas desse progresso social e econômico, trouxeram à luz uma incrível fragilidade do constitucionalismo de primeira geração, isto é, das garantias penais e processuais dos clássicos direitos de liberdade: uma fragilidade sobre a qual a cultura jurídica e política democrática no Brasil deveriam refletir seriamente. Sobretudo, esses acontecimentos geram a triste sensação do nexo que liga os dois eventos – a inconsistência jurídica da deposição de Dilma Rousseff e a violência da campanha judiciária contra Lula – e, por isso, a preocupação de que a sua convergência tenha o sentido político de uma única operação de restauração antidemocrática.
Essa sensação e essa preocupação são agravadas pelas notícias, referidas de modo concordante e sereno em muitos jornais, que os juízes estariam procurando acelerar os tempos do processo para alcançar o mais rápido possível a condenação definitiva; a qual, com base na “Lei da Ficha Limpa” impediria Lula de candidatar-se às eleições presidenciais de outubro de 2018. Tratar-se-ia de uma pesada interferência da jurisdição na esfera política, que teria o efeito, entre outros, de uma enorme deslegitimação, antes de mais nada, do próprio Poder Judiciário.
DCM

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

As lições do juiz italiano das Mãos Limpas ao pretor de Curitiba Sergio Moro., por Kiko Nogueira

Gherardo Colombo
Estadão entrevistou o ex-juiz Gherardo Colombo, um dos protagonistas da Operação Mãos Limpas, referência para a Lava Jato.

Ele trabalhou na força tarefa do grupo que provocou “um “terremoto político na Itália”.
Ex-ministro da Corte de Cassação, o equivalente ao Supremo Tribunal, Colombo dedica-se hoje a dar palestras a jovens estudantes sobre a importância da luta contra a corrupção.

Suas observações seriam muito úteis a Sergio Moro, caso este, atualmente, não estivesse convencido de que inventou o Direito no mundo.

Vinte e cinco anos depois de Mãos Limpas, um condenado por corrupção vai para a cadeia na Itália? Cumpria pena atrás das grades?

Muitos foram os condenados. Alguns foram para a cadeia. Mas muitos empresários – devo dizer que não sei se o nosso sistema corresponde ao de vocês – fizeram acordos e conseguiram a suspensão condicional da pena. E, portanto, não foram para a cadeia. Depois, progressivamente, nosso legisladores – nossos processos e investigações duraram 13 anos – modificaram alguns crimes, como o de falsificação de balanços e o favorecimento administrativo, reduzindo o prazo de prescrição; modificaram os valores das provas, retirando o valor de atos processuais que antes tinham valor como prova, razões pelas quais depois o número de condenações diminuiu bastante.

Quanto caiu o número das condenações caíram na Itália?

É difícil de dizer. Aqui em Milão, posso fazer um cálculo aproximado desse fenômeno. Nós pedimos que fossem julgadas cerca de 3,7 mil pessoas. Dessas, foram absolvidos 20%, cerca de 750. Cerca de 40% dos casos prescreveram, ou seja, cerca de 1.500. Das outras 1,5 mil, cerca de mil fizeram um algum acordo. Esse é um cálculo que faço de memória. Foram condenados cerca de 700 pessoas, sendo que alguns ainda puderam gozar da suspensão condicional da pena.

E quantos desses foram condenados a até 3 anos e, portanto, puderam fazer serviços sociais em vez de ir para a cadeia?

Eu creio que uma grande parte. A maioria. Além disso, na Itália, existe a possibilidade para pessoas particularmente idosas de cumprir a pena em prisão domiciliar. Para cárcere foram poucas pessoas. Sobretudo em razão das reformas legislativas que um pouco restringiram os crimes e um pouco reduziram o valor das provas.

O senhor acredita que um acusado de corrupção deve ser mantido em prisão preventiva na cadeia?

Bem, eu pelo que compreendo, e não conheço completamente o sistema processual brasileiro, porém, chegam notícias, e se lê e deve levar em consideração o meu nível de informação sobre o sistema brasileiro. Porém, o nosso sistema, o sistema italiano, prevê que a custódia cautelar seja possível somente para evitar o perigo de fuga, o perigo de destruição de provas ou perigo de reiteração do crime do mesmo tipo.

Ora, não existe na Itália um sistema para a corrupção similar ao vosso da delação premiada. Não existe. A delação premiada é um termo que não se pode usar. Nós falamos de colabores de Justiça no campo da Máfia e do terrorismo. A Máfia e o terrorismo são tratados geralmente de um modo muito particular. Não se pode pôr na cadeia uma pessoa para fazê-la falar. Ok? Para contar fatos dos outros. Ainda que esse seja uma distinção muito sutil porque, se uma pessoa se torna não confiável ao sistema de corrupção do qual ela provém, então não se justifica mais a custódia cautelar.

Porque não há mais o risco de reincidência, pois os outros não confiam mais nela e não há perigo de fuga porque já confessou e, geralmente, quem resolve contar o que sabe recebe normalmente uma pena que não é grave. E não há mais risco de destruição de provas, pois a prova já foi feita. E em um sistema (delação) no qual não basta que as pessoas sejam corretas mas é sempre necessário esse, para a sentença, para a condenação, é sempre necessário que existam também comprovações do que foi dito, como a prova da passagem do dinheiro por meio financeiro e assim por diante. E isso vale também para a custódia cautelar. Em relação às pessoas contra quem foram aplicadas a custódia cautelar na Itália por parte dos magistrados, há uma outra particularidade que, para mim, é importante, e torna impossível fazer paralelos entre Mãos Limpas e Lava Jato.

Existe uma diferença notável sobre o perfil do controle dos magistrados. Na Itália existe o Ministério Público que faz a investigação. Existe o juiz da investigação preliminar que controla a atividade do Ministério Público e que emite todos os procedimentos que restringem em qualquer medida a liberdade como a custódia cautelar na cadeia, as interceptações telefônicas e por aí vai. Quando a investigação termina, um outro juiz, um juiz para a audiência preliminar, decide se vai mandar a julgamento o investigado ou mesmo se recusa a abertura do processo. Mas não é ele que condena porque a condenação só pode ser emitida por um tribunal, que um juízo diferente e para os casos de corrupção é o juízo de um colegiado, composto por três pessoas.

E por isso alguns advogados brasileiros dizem que aqui no Brasil o juiz tem um papel de super-homem no processo.

Notei que o juiz que fez a investigação no processo contra Lula (Sérgio Moro) era o mesmo que fez a sentença e isso me deixou um pouco surpreso porque aqui na Itália isso não poderia acontecer.

Um sistema assim no Judiciário, como seria julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos?

Eu tenho dificuldade para dizer-lhe. Posso dizer que na Itália, o juiz que faz a investigação, não podia condenar nem mesmo com o Código de Processo Penal que era de 1930. O juiz de então podia somente decidir se aceitava ou não a denúncia. Se decidisse pela abertura do processo, o processo era feito por outro. O articulo 6 da Convenção das Salvaguarda dos Direitos do Homem para o Conselho Europa diz que cada pessoa tem direito que sua causa seja examinada imparcialmente, publicamente e em um tempo razoável por um tribunal independente e imparcial constituído por meio de lei que decidirá etc.

No caso, se fala somente de um tribunal independente e imparcial. Mas aquele que faz a investigação pode em alguma medida ser influenciado por aquilo que descobriu, tanto que, na Itália, o juiz que decide não pode conhecer o conteúdo dos atos processuais senão por meio do debate no tribunal.

Quer dizer que o juiz decide baseado no que acontece diante dele. Outra coisa que existe em Itália: um juiz tem a obrigação de abster-se de antecipar um juízo, ou seja, dizer o que pensa a propósito do processo. Não sei se isso existe. Nós tivemos um grande cuidado além do que estava previsto no Código de Processo Penal na Itália. Durante o curso de Mãos Limpas sempre evitamos de nos exprimir sobre a situação de réus em particular. Falávamos da corrupção, mas sempre evitamos falando sobre a posição dos denunciados, mesmo trabalhando como procurador e não como juiz (na Itália o Ministério Público faz parte da magistratura).

E mesmo durante as entrevistas coletivas?

Eu nunca falei sobre a situação de um acusado, mas somente sobre atos judiciários. Eu pessoalmente evito falar de pessoas que foram meus acusados, mesmo depois do processo. Quando vou às escolas, eu procuro evitar falar de acusados, mesmo depois de passados dez anos, 15 anos. É uma questão que, pelo que me diz respeito, que vai além do texto legal.
Moro vê seu ator preferido no cinema: ele mesmo
(…)
Pelo que o senhor me disse, o senhor seria favorável ao uso dos colaboradores de Justiça nos casos de corrupção?

Eu tenho muitas reservas com os colaboradores de Justiça. Para que não se cometam crimes, é preciso que exista entre o cidadão e o Estado a confiança. E, para mim, cooperar – eu prometo uma pena menor se você conta quem são seus comparsas – é uma coisa que, em vez de promover confiança, de algum modo, você a tolhe. Creio que algumas vezes se cometem crimes realmente graves, como no caso da máfia, que dissolve crianças no ácido, e por isso, algumas vezes, é necessário recorrer a instrumentos que, infelizmente, em si não são educativos, que não educam a cidadania.
Deve ser uma medida (colaboradores de Justiça) limitadíssima e, por isso, eu não a introduziria no campo da corrupção, mas existem muitas pessoas que pensam de modo contrário. Mas, em vez disso, há uma coisa que se precisa fazer aquilo que eu lhe disse antes: um fenômeno tão espalhado como a corrupção na Itália não pode ser combatido com o processo penal. É necessária outra coisa. Prometer a alguém a redução de pena se fala, essa medida está no processos penal, mas não serve ao processo penal.

O que é necessário fazer é operar a dois campos, que são a educação e a prevenção. Na Itália, espero que se for possível, ir adiante do ponto desses pontos de vista. Eu acredito que a situação mudará. Para prevenir a corrupção são necessárias duas coisas: que as empresas adotem procedimentos para todas as suas atividades, pois, quando há um procedimento de modo que tudo deixe traços tudo se torna transparente, pois tudo se torna verificável,  como quem tomou cada decisão, por que a tomou, por quais motivos.

E esse é o segundo ponto de vista: a transparência. E que tudo isso seja público. Do ponto de visto educativo é necessário para acompanhar as pessoas para saber que a corrupção faz mal até para quem a comete, pois desregula as instituições. Evidentemente que nesse meio tempo é necessário descobrir quem participa da corrupção, mas não porque alguém colaborou, mas porque o contexto social no qual as pessoas se encontram se rebela e reage, quem assiste a um crime de corrupção denuncie. No caso de corrupção é difícil que as pessoas aceitem testemunhar.

DCM

domingo, 15 de outubro de 2017

Lava jato, o caso do reitor Cancelier e a banalização do mal, por Luis Nassif do Jornal GGN

Assim como o Ministro Luís Roberto Barroso, o reitor Luiz Carlos Cancelier de Olivo, da Universidade Federal de Santa Catarina, era advogado. Como Barroso, também era professor. E, da mesma maneira que Barroso, defendia a Lava Jato.

Havia diferenças. As opiniões de Cancelier eram restritas ao seu entorno; as de Barroso ecoam pelo país e servem de ração vitaminada para o fortalecimento da convicção dos pittbulls do direito, de que todos os abusos serão perdoados.

A Lava Jato era para ser o teto, o momento excepcional em que se poderiam cometer todas as atrocidades legais, porque a serviço de uma missão santa: a destruição de um partido político. Mas depois de provar carne fresca, quem trará de volta as hienas para o cercado das restrições legais?

Analise-se essa delegada Erika Marena.

Como esquecer os momentos de glória, o prazer das coletivas aos jornais, o gozo inenarrável de destruir a alma do réu? Pode existir demonstração maior de poder, do que o de transformar uma simples convicção, mesmo que amarrada com barbantes de contextualizações imaginárias, na pena de morte do caráter do réu, antes mesmo que algum Juiz diga alto lá, vocês não dispõem desse poder absoluto. Mas, como, não é isso que o Ministro Barroso insinua nas suas pregações?

Quando deixou a Lava Jato e saiu de Curitiba em direção ao bucolismo de Florianópolis, de volta à pasmaceira das atribuições rotineiras, a delegada Erika se viu acometida da síndrome da abstinência, dos que se viciaram em violência, em abusos, em holofotes, no exercício do poder absoluto de apontar para uma imprensa sequiosa de sangue o alvo a ser exterminado. Não há exercício de poder maior do que o de decretar a morte moral de uma pessoa.

Como trazer de volta aqueles momentos únicos? Como se acostumar novamente à modorra de uma atividade comum, a ter que submeter suas investigações a procuradores responsáveis, a juízes integros?

Aí, surgem as investigações sobre desvios de recursos em uma Universidade federal. Penalmente, um tema menor, sujeito a uma investigação burocrática, sem riscos maiores, com os dados disponíveis na CAPES, bastando conferir as notas de prestações de serviço, identificar os desvios e punir os infratores. Esse trabalho seria feito com um pé nas costas pelas áreas técnicas da Polícia Federal, o único setor que ainda faz investigações, já que os delegados se especializaram no bem-bom de criar uma narrativa qualquer, recheá-las com declarações arrancadas a fórceps de prisioneiros, sem a necessidade de apresentação de provas, comportando-se igual a a jornalistas preguiçosos que inventam matérias sensacionalistas e recheiam com declarações em off.

E, assim como o jovem delegado deslumbrado de Curitiba, que mobilizou mil policiais para uma mera operação de levantamento corrupção na fiscalização sanitária do Estado, a delegada Erika quis se mostrar à altura da fama de durona. Solicitou cem policiais do Maranhão, imaginando-se em um filme de terceira categoria.

Cem policiais, como se o alvo fosse Carlinhos Cachoeira, que continua livre, o Comendador Arcanjo, que continua solto, Michel Temer, que continua presidente.

Bastariam sete intimações a professores, que jamais se recusariam a atender. No país que enfrenta a maior crise fiscal da sua história, decidiu-se pela mobilização de cem policiais de outro estado, atuando como figurantes para que a delegada Erika pudesse repetir os momentos da glória da Lava Jato.

Sete professores foram arrancados de sua casa, com a condução coercitiva, sem sequer terem sido intimados a comparecer. O reitor foi detido com base na panaceia jurídica atual: a obstrução de Justiça, embora o máximo que se levantou contra ele foi suposta tentativa de obstrução de um inquérito administrativo, conforme mostrou o repórter Marcelo Auler.

Arrancados da cama, foram submetidos a uma revista vexatória, que incluiu revista no ânus E uma outra filha da Lava Jato, a juíza Janaína Cassol Machado, tratou de endossar todos os abusos, porque o Ministro Barroso avisou que todos os abusos são peixe pequeno perto do grande objetivo nacional, de combate à corrupção.

Aliás, duvide-o-dó que o escritório de advocacia de Barroso passasse incólume por uma investigação nos moldes preconizados por ele para a Lava Jato.

A grande ópera trágica se completa com as associações de juízes federais, procuradores da República e delegados da PF, endossando esse gozo doentio de seus associados pela violência gratuita.

E, do sepulcro do Supremo, a única voz de resistência foi a do Ministro Gilmar Mendes. De Luís Roberto Barroso, o silêncio obsequioso. Nenhum gesto de solidariedade ao colega vítima de uma brutalidade policial. Nenhum gesto de apoio aos agressores, porque a morte do reitor rompeu a unanimidade. E Barroso só cresce em ambientes de unanimidade, aquelas que transformam fracos em fortes, tímidos em falantes, humanistas em déspotas, e, como situação limite, revelam o caráter das pessoas.

Através de seus porta-vozes na mídia, a Lava Jato anuncia a super-operação antes do final do ano, a arrancada final para terminar com fecho de cobre e sangue a grande cruzada moralista, que ajudou a colocar no poder a pior quadrilha da história.

Cancelier provou, da maneira mais trágica, a lógica inevitável dos movimentos de intolerância. Para legitimar a operação, levantou-se seu passado de PCB. Na cobertura, escondeu-se seu presente, de defensor da Lava Jato, porque aí se chegaria à única bala de prata capaz de deter o monstro: a constatação de que a Lava Jato avança não apenas contra “eles”, mas também contra “nós”.

Mais que nunca, vale Bertold Brecht:
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém

Ninguém se importa comigo.

GGN

sábado, 8 de julho de 2017

#SomosTodosJuízes ou a “pátria de toga”, por Rubens Casara

Linchamento ocorrido no Brasil em 2015 que vitimou Cleidenilson Pereira Silva. Foto: Biné Morais

 1 – Apresentação do Problema
Era uma vez, um tempo em que o brasileiro se orgulhava de conhecer como ninguém a beleza, as estratégias e os segredos do futebol. Esse tempo passou, talvez em razão da transformação dos campeonatos brasileiros em mercadoria (e de qualidade ruim), talvez diante da ferida narcísica provocada pela derrota para a Alemanha na última Copa do Mundo. Hoje, abandonada a sensação de que todo brasileiro entende de futebol, o Brasil tornou-se a pátria dos juízes. Os duzentos milhões de técnicos de futebol tornaram-se duzentos milhões de especialistas em direito, duzentos milhões de juízes prontos para julgar com celeridade fatos e pessoas. Todos se sentem habilitados a julgar e, enquanto isso, os juízes profissionais, aqueles concursados ou indicados para exercer a jurisdição estatal, tornaram-se protagonistas da vida política brasileira (alguns falam em efeito colateral do ativismo judicial, outros em hegemonia do “partido da justiça”).

O que interessa neste texto é analisar a “pátria de toga” à luz da formação cultural desses milhões de julgadores. Em uma sociedade de “juízes” forjados em uma tradição autoritária, os julgamentos serão sempre marcados pelo autoritarismo. E o Brasil, até agora, fracassou na missão de construir uma cultura democrática e isso repercute no teor dos julgamentos.

Os brasileiros, de um modo geral, acreditam no uso da violência para resolver os mais variados problemas sociais e, em consequência, apostam e apresentam respostas violentas como a solução para qualquer situação problemática. Não há que se estranhar, pois, o aumento do número de agressões a pretexto de fazer “justiça”, com especial destaque para os linchamentos tanto físicos quanto virtuais, tanto nas ruas das cidades quanto nas redes sociais. Em uma sociedade de milhões de juízes que foram levados a acreditar que os direitos e garantias fundamentais são obstáculos transponíveis à eficiência repressiva do Estado ou aos lucros dos empreendedores (e até os explorados, hoje, acreditam ser empreendedores), os julgamentos tendem a desconsiderar os limites civilizatórios.

Em apertada síntese, pode-se afirmar que uma cultura autoritária produz julgamentos autoritários, nos quais se verifica não só forte aderência aos valores da classe média (valores produzidos – vale frisar – em favor da elite econômica), mesmo quando esses valores estão em oposição à normatividade constitucional, como também o recurso à simplificação da realidade e ao pensamento estereotipado. Nos julgamentos do dia-a-dia cresce a tendência a explicações hipersimplistas de eventos humanos hipercomplexos; a reflexão é demonizada em tempo de anti-intelectualismo, típico de momentos autoritários. No país de duzentos e oito milhões de juízes verifica-se uma preocupação em afirmar desproporcionalmente os valores “força” e “dureza”, em manifestações de hostilidade generalizada, com muito cinismo e a desconsideração dos valores atrelados à dignidade da pessoa humana.

Mas, para além da tradição autoritária que condiciona os julgamentos do dia-a-dia, o problema é ainda mais grave. Basta lembrar que, não raro, esses julgamentos que se dão nas ruas, sem informação suficiente e por pessoas sem formação jurídica ou mesmo democrática, passaram a influenciar os julgamentos dos juízes profissionais (dos funcionários públicos a que se reserva o exercício da jurisdição estatal), inclusive nos tribunais superiores. Muitos juízes passaram a justificar suas decisões a partir da necessidade de “ouvir as ruas”, de ouvir a opinião dos milhões de juízes sem toga em seus sofás. Com isso, progressivamente o caráter contramajoritário da função jurisdicional, necessário ao modelo de democracia constitucional, passou a ser abandonado.

Nas democracias constitucionais, marcadas por limites rígidos ao exercício do poder, a “voz das ruas”, a “opinião pública” e as “maiorias de ocasião” não são suficientes para afastar os diretos e garantias fundamentais de qualquer pessoa concreta, culpado ou inocente, amado ou odiado. Em outras palavras, na democracia constitucional o principio da maioria (ou a percepção do juiz acerca da “voz das ruas” ou do “clamor popular”) não se sobrepõe à normatividade extraída da Constituição da República, dos tratados e das convenções internacionais que reconhecem direitos humanos.

Neste pequeno artigo, a proposta é analisar a mudança que parece ocorrer na atuação do juiz brasileiro, que estaria a abandonar o modelo racional e eticamente regrado de apuração dos fatos para aderir à lógica de uma espécie de “cognição mística radicada nas vísceras comunitárias” (Cordero). A hipótese assumida aqui é a de que o recurso às “vísceras comunitárias” estaria a serviço de justificar decisões a partir das convicções dos atores jurídicos (muitas vezes, certezas delirantes do julgador), ainda que essa convicção se revele afastada do acervo probatório ou em desatenção aos limites constitucionais, éticos ou epistêmicos.

2 – Dos Ordálios à “voz do povo”
Com as invasões bárbaras, tornou-se comum no Ocidente um instrumento usado para resolver controvérsias de todo o tipo: o ordálio. Pode-se, em certo sentido, afirmar que os ordálios constituíram uma espécie de sistema probatório composto de uma variedade de técnicas (duelo judicial, prova d`água, caldeirão fervente, etc.) que poderiam ser utilizadas em cada situação, a depender das tradições locais e, em alguns casos, da vontade das partes ou mesmo do juiz.

Alguns afirmam que os ordálios eram meios de prova irracionais. Isso não parece estar correto, como percebeu Taruffo. Os ordálios obedeciam a uma lógica racional, funcional e amplamente aceita no contexto (dominado pelo enchantment) em que eles eram utilizados: o divino podia e diria a verdade para solucionar um conflito. Na realidade, pode-se afirmar que o ordálio era tido como a liturgie d`um miracle judiciaire (Jacob).

Em um contexto de profunda fé religiosa, os ordálios eram a prova de que Deus estava presente nas disputas judiciais, sempre que outros meios se revelavam insuficientes para por fim à controvérsia. O ordálio caracterizava-se por ser decisivo e o seu resultado, as consequências positivas ou negativas da prova (então, mais um desafio do que um elemento de cognição), sempre claro e incontrastável (como duvidar da resposta fornecida por Deus?). Após o órdálio, não havia mais dúvida possível, Deus definia a parte vencedora.

O declínio do recurso aos ordálios, ao que parece, coincide com profundas mudanças na sociedade, e em especial nas práticas judiciárias. Passou-se a acreditar que a verdade dos fatos, a solução justa para uma determinada controvérsia, podia e devia ser apresentada a partir de condutas humanas e não mais por revelações divinas. Do ponto de vista teológico, aderiu-se à tese, já presente em São Tomás de Aquino, de que não se deveria desafiar Deus a resolver matérias que a razão humana poderia dar conta.

Michele Taruffo aponta o surgimento de “caminhos divergentes” após o declínio dos ordálios. Na Inglaterra e no Continente Europeu, o fim dos ordálios produziu consequências diferentes. Na Inglaterra, esse declínio guarda conexão com a consolidação do jury trial. Enquanto isso, na Europa Continental, a probatio substituiu a divinatio, com o aparecimento de novos meios de prova (apresentados como “racionais”), voltados a descoberta da verdade dos fatos (a principal técnica era a inquisitio), que passaram a ser geridos, no mais das vezes, por juízes profissionais.

Na Inglaterra (e de lá para o mundo anglo-saxão), o Júri se consolidou como o principal método à resolução dos conflitos postos à apreciação judicial. Os jurados, antes “testemunhas dos fatos” e depois “juízes do fato”, tornam-se autores de um veredicto imperscrutável (e nesse particular, se assemelha à solução alcançada pela via dos ordálios). É importante lembrar que o juramento solene dos jurados, que ainda hoje se faz presente, invoca a intervenção de Deus no julgamento. Pode-se afirmar que o jury trial, construído como uma garantia individual contra a opressão do poder, busca nas “vísceras comunitárias” a legitimidade dos julgamentos (o que no sistema dos ordálios era obtido mediante a evocação divina).

No modelo originado na Europa Continental, e em princípio adotado no Brasil, procurou-se abandonar os ordálios em uma tentativa de “racionalizar” a busca pela verdade como condição para a realização do valor justiça. O “mito de Deus” acabou substituído pelos mitos da “razão” e da “ciência”. Nesse modelo, os julgamentos têm por base a reconstrução dos fatos através de meios probatórios admitidos na legislação, razão pela qual tanto a “divindade” quanto a “voz das ruas” ou as “vísceras comunitárias” mostram-se estranhas à solução justa dos casos postos à apreciação do Sistema de Justiça. A “verdade” é elevada à condição de legitimidade dos julgamentos e, ao mesmo tempo, as garantias processuais e demais direitos fundamentais, limites jurídicos e éticos ao exercício do poder, passam a funcionar como condições de legitimidade da busca da verdade.

Em apertada síntese: enquanto no modelo europeu-continental (civil law) a verdade dos fatos é tida como um dos principais escopos do processo, no modelo de common law a confiança na correção e na justiça do veredito dos jurados baseia-se no fato dele ser formulado por pessoas que retratam a vox populi (nesse sentido, por todos, Taruffo).

Costuma-se aproximar a “voz do povo” do princípio majoritário. Este, por sua vez, costuma ser apontado com uma manifestação necessariamente democrática. Trata-se de uma concepção que identifica a vontade da maioria (ou, ao menos, a “voz do povo”) com a democracia. Não faltam exemplos históricos de que essa visão é equivocada. Basta pensar na maioria alemã que levou Hitler ao poder e apoiou o projeto nazista ou na maioria dos estadunidenses que apoiava a segregação racial. A democracia e a justiça, coo se percebe, não guardam relação com a opinião das maiorias.

Em princípio, decisões que buscam legitimidade a partir da “voz do povo”, isso é, a partir da opinião (algo da ordem da doxa) dos milhões que se consideram aptos a fazer julgamentos no Brasil, não se mostram sensíveis a limites, sempre que os limites se revelem incompatíveis com o princípio majoritário. Em outras palavras: levar em consideração a “voz do povo” nas decisões judiciais, muitas vezes, vai significar a violação dos limites jurídicos, éticos e epistêmicos (e aqui não se esta problematizando a questão do significado da expressão “voz do povo”). Nada assegura que a “voz do povo” retrate a verdade ou produza justiça.

Registre-se que nos Estados Unidos da América, o trial by jury, pensado como uma garantia contra o poder (a voz Populi em defesa das garantias individuais), vem sendo substituído por técnicas da chamada “justiça negocial” (bargain), adequadas à razão neoliberal, que faz com que todos os valores (verdade, liberdade, etc.) sejam tratados como meras mercadorias (negociáveis, portanto).

III – O Brasil da voz autoritária
No Brasil, apesar da adesão inicial ao modelo europeu-continental, verifica-se, nos últimos anos, a incorporação de institutos, práticas e modos de ver o Sistema de Justiça cunhados para o modelo anglo-saxão. Esse fenômeno, todavia, ocorreu sem a incorporação dos correlatos limites à atividade das partes, à produção e à valoração das provas. Com isso, a vox populi foi elevada a fator decisório, mas sem a dimensão de garantia que existia no modelo do Júri. Mas, qual é a “voz das ruas” que passou a justificar as decisões no Brasil? Uma vox populi selvagem, sem limites, desconstituinte e autoritária.

No Brasil, para satisfazer “as vísceras comunitárias” e atender à “voz das ruas”, atores jurídicos passaram a desconsiderar direitos e garantias fundamentais, vistos não como conquistas civilizatórias, mas como obstáculos à eficiência do Estado. No lugar da busca pela verdade (respeitados os limites jurídicos e éticos), surgem construções narrativas adequadas ao que o julgador afirma ser a “voz das ruas”, mas que muitas vezes não passa de uma estratégia discursiva para decidir contra a lei ou a doutrina.

Muitas sentenças passaram a assumir como “verdade” o que é uma mera possibilidade. São acolhidas as versões que vão ao encontro das convicções dos atores jurídicos (e dos milhões de julgadores), mesmo que os fatos afirmados não encontrem respaldo nas provas produzidas ao longo do processo. Aliás, se verifica uma mutação na valoração da prova: a prova vista como positividade (a “boa prova”, a informação útil, etc.) é apenas aquela que confirma a hipótese já assumida como verdadeira pelo julgador ou pela “voz das ruas”. A verdade judicial passa a ser aquilo que o juiz afirma ser “verdade” a partir de “convicções” prévias (leia-se: preconceitos e pré-compreensões), mesmo que inexista prova nesse sentido (ressuscitou-se a máxima de viés autoritário: auctoritas facit veritas).

Em nome da “voz das ruas”, a natureza contramajoritária da função jurisdicional acaba por desaparecer, o que representa risco concreto aos direitos das minorias e facilita a opressão estatal. Como já se disse no início deste texto: sociedades autoritárias, produzem decisões autoritárias. Escutar a vox populi em um contexto autoritário equivale a abandonar não só o modelo de democracia constitucional como também qualquer pretensão de verdade e justiça.
     
Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ e escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.

GGN

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Por Lenio Streck: O protagonismo judicial e a máxima “enquanto houver bambu, vai flecha”

Sabemos que uma lei (um texto legal-constitucional) não é uma coisa em si. Não se pode dizer que o sentido da lei se esgota em si mesmo. Isso é tão velho que Jonathan Swift já fez blague com isso em 1726, nas Viagens de Gulliver, quando conta que o “gigante” foi condenado à morte por ter salvado a rainha do incêndio. Como assim? Simples: para salvar sua majestade, ele urinou sobre o castelo. Havia uma lei, cuja pena era a morte, para quem urinasse em público. Bingo.

Mas, se não se pode interpretar assim, de forma burra e tola, também não se pode ignorar totalmente um texto legal ou interpretá-lo ao seu contrário. Se uma lei diz que é proibido carregar cães na plataforma do trem, isso não quer dizer que, no fiel cumprimento, seja possível levar um urso. E assim por diante.

Portanto, em termos de paradigmas filosóficos, nem a lei tem um sentido objetivado-emsimesmado (uma verdade de cunho adequacionista), nem a lei tem o sentido que possa ser produto de livre atribuição de sentido, tipo “livre convencimento” ou “dou às palavras o sentido que quero”, como é o caso do personagem niilista Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho.

Preocupado com isso, meu Grupo de Pesquisa Dasein, da Unisinos (em comandita com meu grupo de estudos da Estácio de Sá), organizou simpósio para discutir os limites da atribuição de sentido. Título do evento: II Colóquio de Critica Hermenêutica do Direito — Às voltas com o positivismo jurídico contemporâneo (todas as conferências estão neste link, inclusive as discussões que se seguiram; congresso diferente e diferenciado: depois de cada dupla de palestrantes, uma hora inteirinha para debate; diferente dos congressos em que o sujeito fala e sai correndo para o aeroporto, sem que os participantes possam fazer perguntas ou contestar o que foi dito — bingo para a organização, modéstia às favas).

Hermeneutas, dworquinianos, positivistas exclusivos, inclusivos e normativos, sistêmicos, jusnaturalistas: uma coisa em comum — oferecer soluções para limitar o protagonismo na interpretação-aplicação do Direito. Enfim, como evitar decisionismos, ativismos e realismos retrôs que dominam as práticas jurídicas no país, pelas quais não temos qualquer grau de previsibilidade (o mais engraçado — e essa crítica foi lugar comum no simpósio — é que o Brasil é o único lugar do mundo em que os realistas se pretendem normativos, transformando a teoria jurídica em uma jabuticaba retrô).

Todos acordamos em um ponto: na democracia, o cumprimento das leis e da Constituição é, além de uma obviedade, uma obrigação, mormente quando se tem uma Constituição normativa. Não é possível que uma pessoa ou um grupo de pessoas possa, para além dos limites impostos pela Constituição, legislar por intermédio de decisões judiciais e/ou construção prévia de “precedentes de Cortes de Vértice” (deve ser algo como “diverte-se e os demais sofrem”).

“Enquanto houver bambu, vai flecha” (?): o papel do MP é esse?

A propósito de protagonismos, ativismos e realismos tratados no simpósio, a Folha de S.Paulo do dia 1.7.2017 produziu um “bom” exemplo de como não deve ser a discussão sobre o direito no Brasil. Trata-se do “debate” produzido pelo advogado de Temer e um Promotor de Justiça de São Paulo. A pergunta era: Denúncia contra o presidente Temer é sólida?. O advogado do presidente está absolutamente no seu papel. Advogado faz discurso estratégico. É sua obrigação.

Já o promotor respondeu à pergunta como parte, sim, como se fora a parte ex-adversa e não como um agente do Estado que deve ter imparcialidade e atuar no plano da impessoalidade. Aliás, o membro do MP nem poderia opinar sobre a matéria. Não conhece os autos. E não é o promotor da causa. Como ser tão peremptório? E que história é essa de que um conjunto de indícios apontando para a mesma direção correspondem a prova de um fato? O promotor, juntamente com os que defendem o baiesianismo e explanacionismo (sic) estariam reescrevendo a teoria da prova? Como assim? Ah, mas o promotor deu opinião como professor e mestre em Direito. Ah, bom. Só que isso torna a questão mais complexa ainda, na medida em que, no caso, os dois corpos do membro do MP ali estão geminados, incindíveis.

Quero dizer com isso é que, na linha da agora já famosa frase de Janot “enquanto houver bambu, vai flecha”, a discussão proposta pela Folha nada acrescentou. Uma coisa é o advogado colocar suas teses; outra é o agente do MP simplesmente, com parcialidade (o que um membro do MP não deve ser: parcial), opinar em um complexo caso em menos de 3 mil caracteres. Para o promotor, a denúncia é perfeita. Claro: examinada sob o ponto de vista estratégico, a denúncia é péssima na opinião do advogado e perfeitíssima na opinião do promotor. Mas, exceção feita ao advogado — o qual, insisto, está no seu papel — é esse tipo de coisa que enfraquece o Ministério Público. Fragiliza. Desgasta. Transformou-se em parte. Em acusador sistemático. Em torcedor.

Sigo. A infeliz frase “enquanto houver bambu, vai flecha” bem denota o ponto em que chegamos. Quando entrei no MP há 31 anos atrás, no meu discurso de posse recitei um mantra que levei comigo durante mais de 28 anos: a de que o MP era uma coisa diferente, que devia atuar como magistrado, que não tinha lado, o seu lado era a lei e a Constituição, doa a quem doer. Pena que isso venha sendo esquecido. Da judicialização da política chegamos a politização da Justiça. Hoje, imitando agir estratégico, até se distorcem teorias para justificar que “prova é igual a fé ou crença” ou “mesmo não tendo prova, a probabilidade estatística é suficiente para obter a condenação” ou “um conjunto de indícios consubstanciam uma prova do fato imputado”. Vem a calhar o editorial do Estadão de 5.7.2017, quando alerta:

“Seria um equívoco não pequeno se o desejo de combater a corrupção e a impunidade levasse a um descarte paulatino da lógica e das garantias do processo. A delação premiada deve ser instrumento de auxílio à Justiça, e não uma obsessão que faz inverter o ônus da prova, excluir a presunção de inocência e transigir com as condições para a prisão”.

No fundo, a coisa se coloca do seguinte modo, já que estamos falando de bambus e flechas: o “fator Target”[1] é sempre perigoso. De novo o editorial do Estadão: “Atirar antes e perguntar depois não é uma boa forma de conduzir processo penal”. Atirar a fecha e depois pintar o alvo, pode até em um primeiro momento significar vitória. Afinal, o atirador nunca erra. O problema é quando o alvo não mais pode ser pintado à vontade. Então a disputa voltará a ser equilibrada.

Paro por aqui. Meu receio, como ex-procurador de Justiça — sei do que estou falando; já estive lá e participei anos e anos dos órgãos colegiados e na linha de frente — é que venhamos a apanhar bambus muito apressadamente. Afinal, do bambu saem as flechas; e do couro saem as correias. A politização da justiça é o primeiro passo para a decadência.

O que quero dizer — e aqui praticamente escrevo uma carta ao MP — é muito simples e é absolutamente a favor da preservação da instituição: há (ou deveria) haver uma diferença entre o agir de um membro do MP e o de um advogado. Se não há diferença — isto é, se, à semelhança do advogado, MP faz agir estratégico (ou seja, simplesmente disputa e quer ganhar) — , qual seria a razão de o MP ter garantias?

Peço que, antes de me apontarem as flechas (enquanto ainda existir bambu), reflitam sobre o que estou dizendo. Despacito.



1 O Target effect é uma criação minha e que consta no livro Hermenêutica e Jurisdição – Diálogos com Lenio Streck (livraria do Advogado, 2017). Quer dizer: pelo “efeito alvo”, o atirador nunca erra. E sabem por que? Porque primeiro atira a flecha e depois pinta o alvo em torno da flecha. 100% de acerto.

DCM

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Lenio Streck: Teorias exóticas do MP no caso Lula seriam chumbadas pelo CNMP

Foto: Pedro Oliveira/ALEP

Recentemente, o conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) Valter Shuenquener concedeu liminar (aqui) para anular a questão número 9 do 54º concurso público para promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. No voto, o conselheiro cita coluna Senso Incomum, na qual denunciei o exotismo das teorias perquiridas no certame, como a teoria (sic) da graxa e do Estado vampiro. O CNMP, assim, dá importante passo para desbaratar embustes epistêmico-concurseiristas, como o uso de questões exóticas e quiz shows. Bingo, conselheiro Valter. Estava na hora de passar um recado às bancas de concursos. Há que se avisar que o concurso não é da banca; é do “público”; é res publica. Não é res concurseira.
Pois parece que o recado do CNMP não retumbou em certas teorias utilizadas pelo Ministério Público Federal nas alegações finais subscritas recentemente no processo criminal movido contra o ex-presidente Lula. Que o procurador signatário da peça cite em seu livro teorias exóticas e incompatíveis com qualquer perspectiva contemporânea acerca da prova, OK. Mas que queira fazer uso de teorias, teses ou posturas acopladas a fórceps no Direito é outra coisa. Qual é o limite ético do uso de determinadas teses, tratando-se de uma instituição que deve ser imparcial (MP deveria ser uma magistratura) e zelar pelos direitos e garantias dos cidadãos e da sociedade?

É possível, na ânsia de condenar, jogar para o alto tudo o que já se ensinou e escreveu nas mais importantes universidades do mundo sobre a prova e a verdade no processo penal? Aliás, nas alegações finais que tive a pachorra de ler (e só o fiz depois que fiquei sabendo que o procurador usou o bayesianismo e o explanacionismo), sequer são citados os livros nos quais ele se baseia.

O que diz o signatário? Vamos lá. “As duas mais modernas teorias sobre evidência atualmente são o probabilismo, na vertente do bayesianismo, e o explanacionismo. Não é o caso aqui de se realizar uma profunda análise teórica delas, mas apenas de expor seus principais pontos, a fim de usar tal abordagem na análise da prova neste caso”. (grifei)

Sigo. E ele explica: “Muito sucintamente, o bayesianismo, fundado na atualização de probabilidades condicionais do Teorema de Bayes, busca atualizar a probabilidade de uma hipótese com base em evidências apresentadas. Na linguagem probabilística, uma evidência E confirma ou desconfirma uma hipótese H. Contudo, a vertente probabilística de análise de prova apresenta inúmeras dificuldades para as quais ainda não foi apresentada resposta convincente, como o problema das probabilidades iniciais, a complexidade dos cálculos, o problema da classe de referência, o paradoxo das conjunções, as evidências em cascata etc. Já de acordo com o explanacionismo, a evidência é vista como algo que é explicado pela hipótese que é trazida pela acusação ou pela defesa”. (sic)

Bom, isso se pode ver também na Wikipédia (e olha que a fonte das páginas Wikis nem são tão confiáveis). Aliás, na Wiki está mais “clara” essa “bela” tese sobre “a prova” adaptada à fórceps ao Direito. Vejamos: O teorema de Bayes (por isso bayesianismo!) é um corolário do teorema da probabilidade total que permite calcular a seguinte probabilidade:

Pronto. Eis aí a fórmula para condenar qualquer réu e por qualquer crime. Você joga com as premissas (ou probabilidades) e... bingo. Tira a conclusão que quiser. Algo próximo a autoajuda para entender o que é isto — a verdade no processo penal. Gostei mesmo foi do “Paradoxo das conjunções...”. Deve ser esse o busílis do teorema aplicado à teoria da prova. Fico imaginando o juiz dizendo (não resisto a fazer uma blague e peço já desculpa aos leitores e ao signatário da peça por isso — mas é que a situação é por demais peculiar): “— Condeno o réu Mévio porque o Pr(A), na conjunção com o Pr(AB) deu 0,1. Isso porque a probabilidade a posteriori indicava que Pr(B-A) era inferior a Pr (B+). Perdeu. A casa caiu; a pena aplicada é de X anos”.

Mas a peça é ornamentada com mais uma “teoria jurídica”: O explanacionismo, que “tem por base a lógica abdutiva, desenvolvida por Charles Sanders Peirce no início do século XIX. Para se ter ideia da força que assumiu a abdução, que foi denominada inferência para uma melhor explicação (“inference to the best explanation”) pelo filósofo Harman, pode-se citar uma obra da década de 1980 em que Umberto Eco, junto com outros renomados autores, examinaram exemplos do uso dessa lógica em inúmeras passagens de Sherlock Holmes.

Na linguagem explanacionista, a hipótese fática H (cuidado com a cacofonia) que é tomada como verdadeira é aquela que melhor explica a evidência E, ou o conjunto de evidências do caso. Assim, a melhor hipótese para a evidência consistente em pegadas na areia é a hipótese de que alguém passou por ali. (...) Combinando o explanacionismo com o standard de prova da acusação, que se identifica como a prova para além de uma dúvida razoável, pode-se chegar à conclusão quanto à condenação ou absolvição do réu”. (sic)

Pronto. Sherloquianamente, a partir do explanacionismo, chega-se à conclusão de que... de que, mesmo? Ou seja: Tício pode ser condenado porque a hipótese fática H (cuidado de novo) foi tomada como verdadeira por Caio porque é a que melhor explica a evidência E. E eu poderia dizer que, a partir da teoria da incompletude de Gödel, a tese esgrimida na peça processual está errada. Ou está certa. Quem sabe? Ou que pelo sistema de Hilbert (por essa ninguém esperava, hein; pensam que não leio essas coisas?) há 85% de chances de a abdução realizada pelo procurador signatário da peça ser falsa, porque, no plano sistêmico — entendido a partir de uma epistemologia não-cognitivista moral (teoria metaética) — ele está absolutamente equivocado. Mas isso que eu acabei de falar é tão verdadeiro quanto a teoria do bayesianismo. Ou não. Entenderam?

Ou seja, cada coisa que está dita — e vou utilizar o neopositivismo lógico (não inventei isso) e sua condição semântica de sentido — pode ser refutada com a simples aposição da palavra “não”. Vou me autocitar só uma vez (há 7 autocitações na peça processual): no meu Dicionário de Hermenêutica, há um verbete sobre Resposta Adequada a Constituição, em que mostro como usar a condição semântica de sentido (por óbvio, sob um viés hermenêutico que não vou explicar aqui). De uma forma simples, é assim: Um enunciado só é verdadeiro, a partir do neopositivismo lógico, se passar pelo filtro da sintaxe e da semântica. Se eu digo “chove lá fora”, esse enunciado pode ser testado. Sintaticamente, correto. E semanticamente? Fácil. Basta olhar para fora. Se estiver chovendo, beleza. Se estiver tempo seco, basta colocar um “não” no enunciado. Bingo. Enunciado verdadeiro. Parcela considerável do que está dito nas três centenas de laudas não passa pela CSS (condição semântica de sentido). Coloque a palavra “não” nos enunciados (frases) e constate. No Dicionário, uso o exemplo da decisão em que uma juíza do Rio de Janeiro nega ao detento o direito de não cortar o cabelo, enquanto que para as mulheres era dado esse direito. Argumento: as mulheres são mais higiênicas que os homens. Bingo: se eu colocar um “não”, que diferença fará? Não há qualquer possibilidade empírica de verificar a veracidade do enunciado.

Aliás, qualquer coisa que você quiser demonstrar é possível com as duas “modernas” teorias (sim, são modernas..., mas não para o Direito e/ou teoria da prova). Aliás, abdução ou dedução ou coisa que o valha só é possível — na filosofia — se estivermos em face de um enunciado auto evidente. Caso contrário, como nunca falamos de um grau zero de sentido, colocamos a premissa que quisermos, para dali deduzir o que queremos. Sherlock mesmo tem várias passagens em que brinca com esse tipo de raciocínio. Isso também está explicado no diálogo entre Adso de Melk e Guilherme de Baskerville, no romance O Nome da Rosa. É a passagem da subida em direção à Abadia... Deduções que parecem deduções...

Trazer isso para o Direito e tentar, de forma malabarística, dizer que uma coisa é porque não é mas poderia ter sido por inferência ou abdução, cá para nós, se isso for ensinado nas salas de aula dos cursos de direito... Bom, depois da teoria da graxa, dos testículos partidos, da exceção da nódoa removida, do dolo colorido, do estado vampiro, da teoria régua lésbica aristotélica (sim, isso é ensinado em alguns cursinhos), porque não incluir duas novas — bayesianismo, e o explanacionismo?

Aproveito para sugerir uma nova: a TPP — Teoria da Prova de Procusto. Inventei agora: Procusto era um sujeito que tinha um castelo no deserto. Quem por ali passava recebia toda mordomia. Só tinha um preço: dormir no seu leito. Procusto tinha um metro e sessenta. Se o visitante medisse mais, cortava um pedaço; se medisse menos, espichava o vivente. Pronto. Se os fatos não comprovam alguma coisa, adapte-se os às teorias. Ou se crie uma teoria para construir narrativas.

Numa palavra: não coloco em dúvida o valor do teorema de Bayes e o esplanaciosimo. Mas um processo penal é uma coisa séria demais para experimentalismos. Ou jogos de palavras. O que consta da peça processual, se verdadeiras as adaptações que se quer/quis fazer para a teoria da prova no Direito, jogará por terra dois mil anos de filosofia e todas as teorias sobre a verdade. Mas tem uma explicação para essas teses ou “teorias”: na verdade, são teses que se enquadram, no plano da metaética, no não cognitivismo moral, como bem explica Arthur Ferreira Neto no seu belo livro Metaética e a fundamentação do Direito. São não-cognitivistas todas as teorias emotivistas, niilistas, realistas (no sentido jurídico da palavra) e subjetivistas.

E por que? Porque são posturas céticas (ceticismo externo, diria Dworkin). Por elas, não é possível exercer controle racional de decisões. Direito, por exemplo, será aquilo que a decisão judicial disser que é. E isso resultará de um ato de verificação empírica. Um ato de poder. E de vontade. Prova será aquilo que o intérprete quer que seja. Para essa postura, decisões jurídicas sempre podem ser variadas. Uma postura não-cognitivista não concebe a possibilidade de existir nenhuma forma de realidade moral objetiva; relativismo na veia; não é possível, por elas, dizer que uma coisa é ruim em qualquer lugar; somente a dimensão empírica é capaz de influenciar a formação do direito. O decisionismo é uma forma não-cognitivista. Niilismo, do mesmo modo é uma forma não-cognitivista, assim como uma corrente chamada emotivista. O uso das teses em testilha e seu signatário podem ser enquadrados como um não-cognivismo moral, seguindo os conceitos das teorias mais modernas sobre a diferença entre cognitivismo e não-cognitivismo ético (aqui, moral e ética são utilizadas, na linha de Arthur Ferreira Neto, como sinônimas). De minha parte, sou confessadamente um cognitivista.

Por que estou dizendo tudo isso? Porque quem sai na chuva é para se molhar. Ou corre o risco de se molhar (isso seria uma inferência? Ou uma abdução? Ou dedução?). Estamos falando de um agente do Estado que possui responsabilidade política (no sentido de que fala Dworkin). O agente do MPF nos deve accountability. Deve ser imparcial. Não pode dizer o que quer. Há uma estrutura externa que deve constranger a sua subjetividade. Essa estrutura é formada pela Constituição, as leis, as teorias da prova, as teorias sobre a verdade, enfim, há uma tradição acerca do que são garantias processuais. E do(s) agentes(s) estatais podemos questionar o uso de “teorias” sobre a prova que o próprio CNMP poderia — se indagadas em concurso público — chumbá-las, porque exóticas. Comparando com a medicina, é como se alguém defendesse a tese de que é possível fazer operação a partir da força da mente. Ou algo exótico desse jaez.

Por fim, poder-se-á dizer que há provas nos autos etc., coisa que aqui não me interessa. Não sou advogado da causa. Não quero e nem posso discutir o mérito do processo. Discuto as teorias de base utilizadas por um agente público. Poder-se-á dizer que o uso das duas “teorias” citadas nem são (ou foram) importantes para o deslinde da controvérsia (embora o próprio procurador signatário diga que fará a análise das provas a partir dessas duas “teorias”). Mas que estão aí, estão. O juiz da causa poderá até acatá-las. Mas, com certeza, se perguntadas em concurso público, haverá a anulação das questões. Pelo menos é o que se lê na liminar do CNMP  (atenção - até porque no Brasil as metáforas têm de ser anunciadas e explicadas - a alusão ao CNMP tem apenas o condão de comparar a dimensão do sentido do uso de "teorias exóticas").

Se alguém ficou em dúvida em relação ao teorema de Bayes, retorne no texto e veja de novo a fórmula. Não entendeu? Ora, é fácil.

Do GGN