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sábado, 22 de julho de 2017

Os crimes de Moro contra Lula, por Márcio Sotelo

Foto: Evaristo Sá/AFP

Concluído em primeira instância o “processo do tríplex”, de fato constata-se que crimes foram cometidos. Os do juiz. Sobre os imputados ao réu nada se pode dizer.

Trata-se de lawfare. A aniquilação de um personagem político pela via de mecanismos judiciais. A série de episódios grotescos que caracterizou a jurisdição nesse caso não deixa qualquer dúvida a respeito. Só o fato de o processo entrar para o imaginário social como um combate “Moro vs. Lula” evidencia o caráter teratológico da atuação do magistrado. Moro cometeu crimes, violou deveres funcionais triviais, atingiu direitos e garantias constitucionais do réu, feriu o sigilo de suas comunicações, quis expô-lo e humilhá-lo publicamente, manteve-o detido sem causa por horas, revelou conversas íntimas de seus familiares.

Vejamos, nessa perspectiva, algumas das arbitrariedades cometidas pelo juiz e aspectos da decisão. O reconhecimento da validade dessa sentença pelos Tribunais superiores será a mais contundente evidência de que vivemos um estado de exceção e a Constituição é hoje um inútil pedaço de papel.
                
Violação do sigilo telefônico
A Constituição de 1988 estabelece o sigilo das comunicações como direito e garantia fundamental no artigo 5º., inciso XII:  “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. ”

Há duas condições para que se possa violar uma comunicação telefônica: (i) ordem judicial; (ii) para investigação criminal ou instrução criminal penal. A ressalva está regulamentada na Lei 9.296, de 24 de julho de 1996, que, em seu artigo 10, dispõe que “constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”. A pena prevista é de dois a quatro anos de reclusão e multa.

Moro havia determinado escutas telefônicas de linhas utilizadas pelo ex-presidente Lula. No dia 16 de março de 2016, às 11h13, suspendeu a medida e comunicou à Polícia Federal. O diálogo entre Lula e Dilma foi captado às 13:32hs, quando já não estava em vigor a medida. Moro recebeu a gravação e às 16:21hs é registrado o despacho em que levantou o sigilo e tornou pública a conversa entre a presidenta e o ex-presidente, em seguida divulgada pela Rede Globo.

A conduta enquadra-se rigorosamente no que prevê como crime a Lei 9.296/96. A gravação já não estava mais coberta pela autorização judicial e não havia objetivo autorizado por lei. O dolo foi específico e completamente impregnado de interesse político. Lula havia sido nomeado ministro e tomaria posse no dia seguinte. A divulgação do áudio, naquele dia, por intermédio da Rede Globo, visou criar clima político para inviabilizar a investidura do ex-presidente. Moro utilizou-se criminosa e indignamente da toga para impor a Lula um revés político, tumultuar o país e criar clima para o impeachment da presidenta.

O ministro Teori Zavaski considerou patente a ilegalidade da divulgação da escuta. Neste caso a ilegalidade era evidentemente crime. O ministro, no entanto, absteve-se da conclusão, não só nesse momento, mas também, como seus pares, quando o assunto foi ao plenário do STF.

Abuso de autoridade
As hipóteses de condução coercitiva são taxativas no Código de Processo Penal. Pode ser determinada em dois casos, previstos nos artigos 218 e 260. Neste, quando o acusado não atender à intimação para o interrogatório. Naquele, quando a testemunha não atender à intimação.

Lula foi arrancado de sua casa ao alvorecer e levado ao aeroporto de Congonhas. O ex-presidente não era naquele momento (4 de março de 2016) réu e não havia sido intimado. Nunca houve uma explicação aceitável para ser conduzido ao aeroporto, dada a existência de múltiplas instalações da União na cidade de São Paulo em que poderia ser tomado o seu depoimento “sem tumulto” (explicação dada por Moro).

Pesa a suspeita de que a ideia era conduzi-lo a Curitiba. Pretendia-se um espetáculo midiático (a imprensa fora avisada) com o perverso conteúdo de uma humilhação pública do ex-presidente. Lula foi privado por seis horas de sua liberdade. Tanto se tratou de violação à garantia constitucional da liberdade individual quanto de abuso de autoridade, como previsto no art. 4º, letra “a”, da Lei 4.898, de 9 de dezembro de 1965: ‘constitui também abuso de autoridade (…) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder. ”

Grampo no escritório dos advogados de Lula
Todos os telefones do escritório de Advocacia Teixeira Martins foram grampeados. Roberto Teixeira, notório advogado de Lula, é o titular do escritório. A operadora Telefônica comunicou a Moro que se tratava de escritório de advocacia. A prerrogativa de sigilo na comunicação advogado – cliente é inerente ao direito de defesa. Moro escusou-se de forma que beirou a zombaria: não havia atentado para os ofícios da operadora em face do volume de serviços de sua Vara, dos inúmeros processos que lá correm. Ocorre que Moro tem designação exclusiva e cuida apenas dos processos da Lava Jato. Desse modo, ou confessou grave negligência ou mentiu. Negligência que nunca se viu quando se tratava de matéria da acusação.

A corrupção passiva
O fato pelo qual Lula foi condenado pode ser assim sintetizado. Segundo a acusação, a OAS, responsável por obras em duas refinarias da Petrobrás, distribuía propinas a diretores da estatal e agentes políticos. Teria cabido a Lula vantagem auferida basicamente por meio da diferença de preço entre um apartamento simples e um tríplex em um edifício situado no Guarujá, diferença que somaria R$ 2.429.921,00. Por isso Lula teria incorrido no crime de corrupção passiva, que consiste, de acordo com o artigo 317 do Código Penal, em “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”.

A condenação somente se justificaria se demonstrado que Lula tinha o domínio do que ocorria na Petrobrás. Que consentiu, aderiu, participou e que houve prática de ato de ofício recompensado pelo apartamento do Guarujá. Recorde-se que Collor foi absolvido exatamente porque não demonstrada a prática do ato de ofício no crime de corrupção passiva.

Nada foi provado. Não há o mais remoto indício de prática de ato de ofício ou do domínio do que acontecia no âmbito da estatal. Essa fragilidade Moro tentou, em vão, compensar com confissões informais (não houve o acordo formal de delação premiada) dos corréus da OAS, particularmente Leo Pinheiro. Após negar, em uma primeira delação, a participação de Lula no esquema das propinas, Pinheiro mudou seu depoimento quando foi preso por Moro. Viu a oportunidade de conseguir benefícios dizendo para Moro o que todo mundo sabia que Moro queria ouvir. Embora condenado a mais de trinta anos também em outro processo, teve suas penas unificadas para dois anos e seis meses de reclusão.

Lavagem de dinheiro
Está tipificada no artigo 1º. da Lei 9.613/98: “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”. O fato de o apartamento constar em nome da OAS, sendo supostamente Lula o “proprietário de fato” – a alegada vantagem pelo ato de ofício jamais praticado – ensejou a condenação por lavagem de dinheiro.

O entendimento de que o próprio autor do crime antecedente pode ser sujeito ativo da lavagem de dinheiro, embora tenha adeptos, é insustentável. É parte da sanha punitivista que nos assola. Destaca-se parte do “iter criminis” para torná-lo outro crime.

Os verbos que são o núcleo do tipo, ocultar ou dissimular, são inerentes ao crime antecedente. Ninguém comete algum crime sem cuidar de não expor o seu produto para que possa obter a vantagem que o moveu. Ninguém furta, por exemplo, um automóvel para desfilar ostensivamente com ele pelas ruas da cidade. A ocultação ou dissimulação é meio para o exaurimento do crime, apropriação final da vantagem. Portanto, punir o próprio autor do crime por meramente ocultar ou dissimular é punir duas vezes pelo mesmo fato, o chamado “bis in idem”.

Mesmo que se admita que o próprio sujeito ativo do crime antecedente possa ser sujeito ativo do crime de lavagem de dinheiro, seria necessária uma segunda conduta para tornar aproveitável o fruto do crime. No julgamento da AP 470, o mensalão, vários ministros se pronunciaram nesse sentido. Pela síntese e clareza tomo uma passagem do ministro Barroso:

“O recebimento por modo clandestino e capaz de ocultar o destinatário da propina, além de esperado, integra a própria materialidade da corrupção passiva, não constituindo, portanto, ação distinta e autônoma da lavagem de dinheiro. Para caracterizar esse crime autônomo seria necessário identificar atos posteriores, destinados a recolocar na economia formal a vantagem indevidamente recebida” [1]

Indeterminação da data dos fatos e prescrição
Moro em nenhum momento estabelece em que data exata teriam se dado os fatos. Isso é indispensável para verificar a consumação e a consumação é o marco inicial da prescrição. Lula tem hoje mais de 70 anos, o que reduz à metade os prazos prescricionais. Como aferir a prescrição?

Tudo isto é típico lawfare. A destruição do inimigo político por meio de um processo aparentemente legal.

Moro não é um juiz solitário e temerário perseguindo um personagem político. O lawfare somente chegou a esse ponto porque ele tem endosso, cobertura e cumplicidade por parte dos Tribunais superiores, inclusive do STF, que, entre outras coisas, se omitiu diante do crime de violação do sigilo da comunicação telefônica (Teori não se deteve sobre o assunto quando o tema foi a plenário, assim como seus pares). Com isso recebeu “licença para matar”.

No TRF-4, o relator da representação contra Moro pela violação do sigilo telefônico socorreu-se de Carl Schmitt, o príncipe dos juristas nazistas, para abrigar o fundamento de que se tratava de uma situação excepcional, negando assim eficácia aos direitos e garantias constitucionais do ex-presidente.

Moro tem a cobertura favorável da grande mídia, que fez dele no imaginário popular o santo guerreiro combatendo o dragão da maldade.

Moro participou, consciente, deliberadamente, do golpe do impeachment. A divulgação do áudio da conversa entre Lula e Dilma ilegalmente, entregue para a Rede Globo no dia imediatamente anterior à posse de Lula como ministro, não podia ter outro objetivo.

Importa, sobretudo, concluir que não estamos mais em uma democracia. O que temos, com os preparativos e a consumação do impeachment, é uma ditadura de novo tipo, que preserva enganosamente as instituições políticas e jurídicas clássicas do Estado liberal e democrático, mas esvazia-as do real conteúdo democrático (o que o jurista e magistrado Rubens Casara vem denominando pós-democracia). Nesta ditadura de novo tipo, o que antes se fazia pela força das armas e pela violência para destruir o adversário político agora se faz pelo lawfare. Nisto, o Judiciário, que nas antigas ditaduras tinha um papel acessório, de coadjuvante, torna-se o protagonista da violência estatal ilegítima. Antes era um soldado ou policial que na calada da noite destruía o cidadão. Agora é uma sentença à luz do dia.

Márcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.



 Do Justificando

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Joaquim de Carvalho: Ao condenar Lula sem prova, Moro escreve o último capítulo de uma farsa

Lula quando prestou depoimento a Moro: o senhor tem que achar um jeito de me condenar. Se não, será execrado. Moro preferiu agradar a seus seguidores a respeitar a Constituição. A execração dele será no meio jurídico.

A condenação de Lula por Sérgio Moro parece uma notícia velha.

Ou a antinotícia.

Na definição clássica, notícia é quando o homem morde o cachorro. Quando o cachorro morde o homem, não é notícia.

Moro condenar Lula é algo equivalente ao cachorro morder o homem – é o normal.

Surpreendente seria a absolvição do ex-presidente na Vara de Curitiba.

É que Moro se colocou como parte nesse processo e foi visto assim por seguidores, por adversários e pela mídia.

Formalmente, era juiz. Mas, na prática, se comportou como acusador.

Portanto, ao condenar Lula, Moro só entrega o último capítulo de um roteiro que começou a ser escrito em 2006, quando, por manobra judicial, ele se vinculou a um inquérito que investigava o doleiro Alberto Youssef.

A sentença tem 216 páginas e, em muitos pontos, pode ser vista como uma peça de defesa do próprio juiz.

Logo nas primeiras páginas, ele tenta convencer de que é isento para julgar o ex-presidente, condição em que nem o seu mais radical defensor acredita.

Não é à toa que a revista Veja, ao tratar do depoimento de Lula a Sérgio Moro, no dia 10 de maio deste ano, fez uma capa em que os dois eram apresentados com máscara de atletas de luta livre.

O processo em que Lula acaba de ser condenado teve, portanto, um julgamento sem juiz.

Moro escreveu sobre essa suspeita em sua sentença:

“Então, ao contrário do que persiste alegando a Defesa de Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo em suas alegações finais, a decisões judiciais deste Juízo, conforme já apreciado nos foros próprios da Justiça, não foram criminosas e constituíram atos regulares no exercício da jurisdição.”

Atos regulares no exercício da jurisdição…

Em sua defesa, Moro argumenta que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região rejeitou as ações dos advogados de Lula sobre a sua parcialidade.

É fato.

Num dos julgamentos, o tribunal considerou que Moro conduz um processo excepcional.

“É sabido que os processos e investigações criminais decorrentes da chamada operação ‘lava jato’, sob a direção do magistrado representado, constituem caso inédito (único, excepcional) no Direito brasileiro. Em tais condições, neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns”, afirmou o relator de um processo em que 19 advogados pediam o afastamento de Moro por ter violado a Constituição ao interceptar e divulgar conversas da então presidente da República, Dilma Rousseff.

Uau.

A considerar válido esse entendimento, a Vara de Moro seria um tribunal de exceção.

Nos últimos julgamentos, agora que a popularidade de Moro está em queda, o Tribunal já começou a barrar os abusos do juiz.

Um desses abusos, ainda não julgados nas instâncias superiores, é a autorização que ele deu para grampear o telefone dos advogados de Lula.

É muito grave, pois indica que ele, o Ministério Público e a Polícia Federal poderiam ter acesso a conversas sobre a estratégia de defesa de Lula.

Na sentença, Moro também gasta algumas páginas tentando se defender dessa acusação, que, em países civilizados, resultaria no afastamento imediato do juiz e na abertura de um processo.

Moro confessa que, de fato, a empresa de telefonia alertou que uma das linhas interceptadas por ele pertencia a um escritório de advocacia, que é, pela Constituição, inviolável.

Moro diz que, com a atenção tomada por “centenas de processos complexos”, não percebeu.

Na sentença contra Lula, Moro escreveu:

“É fato que, antes, a operadora de telefonia havia encaminhado ao Juízo ofícios informando que as interceptações haviam sido implantadas e nos quais havia referência, entre outros terminais, ao aludido terminal como titularizado pelo escritório de advocacia, mas esses ofícios, no quais (sic) o fato não é objeto de qualquer destaque e que não veiculam qualquer requerimento, não foram de fato percebidos pelo Juízo, com atenção tomada por centenas de processos complexos perante ele tramitando”.

Moro ainda tem em suas mãos um segundo processo contra Lula, o do sítio de Atibaia.

Mas foi no processo do tríplex que ele deu o seu canto de cisne.

Ele tomou a sua decisão com rapidez, de forma que o TRF tenha tempo de julgar Lula ainda antes da eleição de 2018.

Se Lula for condenado em segunda instância, a lei da ficha limpa proíbe sua candidatura.

Não há, no processo no tríplex, prova de que o imóvel pertença a Lula.
Os documentos provam que o imóvel pertence à OAS.

Nem Lula ou alguém da sua família passou uma noite sequer no imóvel.

Portanto, se não tem a propriedade legal e se não desfruta do bem, que tipo de dono é esse?

Condenar sem prova é um ato político.

Para quem conhece o processo, isso já está claro.

Aos poucos, apesar do massacre da Globo, isso também ficará claro perante o público em geral.

Moro, ao tentar tirar Lula da vida pública, pode ter dado a ele mais um trunfo para sua eleição a presidente em 2018.

DCM

sábado, 8 de julho de 2017

#SomosTodosJuízes ou a “pátria de toga”, por Rubens Casara

Linchamento ocorrido no Brasil em 2015 que vitimou Cleidenilson Pereira Silva. Foto: Biné Morais

 1 – Apresentação do Problema
Era uma vez, um tempo em que o brasileiro se orgulhava de conhecer como ninguém a beleza, as estratégias e os segredos do futebol. Esse tempo passou, talvez em razão da transformação dos campeonatos brasileiros em mercadoria (e de qualidade ruim), talvez diante da ferida narcísica provocada pela derrota para a Alemanha na última Copa do Mundo. Hoje, abandonada a sensação de que todo brasileiro entende de futebol, o Brasil tornou-se a pátria dos juízes. Os duzentos milhões de técnicos de futebol tornaram-se duzentos milhões de especialistas em direito, duzentos milhões de juízes prontos para julgar com celeridade fatos e pessoas. Todos se sentem habilitados a julgar e, enquanto isso, os juízes profissionais, aqueles concursados ou indicados para exercer a jurisdição estatal, tornaram-se protagonistas da vida política brasileira (alguns falam em efeito colateral do ativismo judicial, outros em hegemonia do “partido da justiça”).

O que interessa neste texto é analisar a “pátria de toga” à luz da formação cultural desses milhões de julgadores. Em uma sociedade de “juízes” forjados em uma tradição autoritária, os julgamentos serão sempre marcados pelo autoritarismo. E o Brasil, até agora, fracassou na missão de construir uma cultura democrática e isso repercute no teor dos julgamentos.

Os brasileiros, de um modo geral, acreditam no uso da violência para resolver os mais variados problemas sociais e, em consequência, apostam e apresentam respostas violentas como a solução para qualquer situação problemática. Não há que se estranhar, pois, o aumento do número de agressões a pretexto de fazer “justiça”, com especial destaque para os linchamentos tanto físicos quanto virtuais, tanto nas ruas das cidades quanto nas redes sociais. Em uma sociedade de milhões de juízes que foram levados a acreditar que os direitos e garantias fundamentais são obstáculos transponíveis à eficiência repressiva do Estado ou aos lucros dos empreendedores (e até os explorados, hoje, acreditam ser empreendedores), os julgamentos tendem a desconsiderar os limites civilizatórios.

Em apertada síntese, pode-se afirmar que uma cultura autoritária produz julgamentos autoritários, nos quais se verifica não só forte aderência aos valores da classe média (valores produzidos – vale frisar – em favor da elite econômica), mesmo quando esses valores estão em oposição à normatividade constitucional, como também o recurso à simplificação da realidade e ao pensamento estereotipado. Nos julgamentos do dia-a-dia cresce a tendência a explicações hipersimplistas de eventos humanos hipercomplexos; a reflexão é demonizada em tempo de anti-intelectualismo, típico de momentos autoritários. No país de duzentos e oito milhões de juízes verifica-se uma preocupação em afirmar desproporcionalmente os valores “força” e “dureza”, em manifestações de hostilidade generalizada, com muito cinismo e a desconsideração dos valores atrelados à dignidade da pessoa humana.

Mas, para além da tradição autoritária que condiciona os julgamentos do dia-a-dia, o problema é ainda mais grave. Basta lembrar que, não raro, esses julgamentos que se dão nas ruas, sem informação suficiente e por pessoas sem formação jurídica ou mesmo democrática, passaram a influenciar os julgamentos dos juízes profissionais (dos funcionários públicos a que se reserva o exercício da jurisdição estatal), inclusive nos tribunais superiores. Muitos juízes passaram a justificar suas decisões a partir da necessidade de “ouvir as ruas”, de ouvir a opinião dos milhões de juízes sem toga em seus sofás. Com isso, progressivamente o caráter contramajoritário da função jurisdicional, necessário ao modelo de democracia constitucional, passou a ser abandonado.

Nas democracias constitucionais, marcadas por limites rígidos ao exercício do poder, a “voz das ruas”, a “opinião pública” e as “maiorias de ocasião” não são suficientes para afastar os diretos e garantias fundamentais de qualquer pessoa concreta, culpado ou inocente, amado ou odiado. Em outras palavras, na democracia constitucional o principio da maioria (ou a percepção do juiz acerca da “voz das ruas” ou do “clamor popular”) não se sobrepõe à normatividade extraída da Constituição da República, dos tratados e das convenções internacionais que reconhecem direitos humanos.

Neste pequeno artigo, a proposta é analisar a mudança que parece ocorrer na atuação do juiz brasileiro, que estaria a abandonar o modelo racional e eticamente regrado de apuração dos fatos para aderir à lógica de uma espécie de “cognição mística radicada nas vísceras comunitárias” (Cordero). A hipótese assumida aqui é a de que o recurso às “vísceras comunitárias” estaria a serviço de justificar decisões a partir das convicções dos atores jurídicos (muitas vezes, certezas delirantes do julgador), ainda que essa convicção se revele afastada do acervo probatório ou em desatenção aos limites constitucionais, éticos ou epistêmicos.

2 – Dos Ordálios à “voz do povo”
Com as invasões bárbaras, tornou-se comum no Ocidente um instrumento usado para resolver controvérsias de todo o tipo: o ordálio. Pode-se, em certo sentido, afirmar que os ordálios constituíram uma espécie de sistema probatório composto de uma variedade de técnicas (duelo judicial, prova d`água, caldeirão fervente, etc.) que poderiam ser utilizadas em cada situação, a depender das tradições locais e, em alguns casos, da vontade das partes ou mesmo do juiz.

Alguns afirmam que os ordálios eram meios de prova irracionais. Isso não parece estar correto, como percebeu Taruffo. Os ordálios obedeciam a uma lógica racional, funcional e amplamente aceita no contexto (dominado pelo enchantment) em que eles eram utilizados: o divino podia e diria a verdade para solucionar um conflito. Na realidade, pode-se afirmar que o ordálio era tido como a liturgie d`um miracle judiciaire (Jacob).

Em um contexto de profunda fé religiosa, os ordálios eram a prova de que Deus estava presente nas disputas judiciais, sempre que outros meios se revelavam insuficientes para por fim à controvérsia. O ordálio caracterizava-se por ser decisivo e o seu resultado, as consequências positivas ou negativas da prova (então, mais um desafio do que um elemento de cognição), sempre claro e incontrastável (como duvidar da resposta fornecida por Deus?). Após o órdálio, não havia mais dúvida possível, Deus definia a parte vencedora.

O declínio do recurso aos ordálios, ao que parece, coincide com profundas mudanças na sociedade, e em especial nas práticas judiciárias. Passou-se a acreditar que a verdade dos fatos, a solução justa para uma determinada controvérsia, podia e devia ser apresentada a partir de condutas humanas e não mais por revelações divinas. Do ponto de vista teológico, aderiu-se à tese, já presente em São Tomás de Aquino, de que não se deveria desafiar Deus a resolver matérias que a razão humana poderia dar conta.

Michele Taruffo aponta o surgimento de “caminhos divergentes” após o declínio dos ordálios. Na Inglaterra e no Continente Europeu, o fim dos ordálios produziu consequências diferentes. Na Inglaterra, esse declínio guarda conexão com a consolidação do jury trial. Enquanto isso, na Europa Continental, a probatio substituiu a divinatio, com o aparecimento de novos meios de prova (apresentados como “racionais”), voltados a descoberta da verdade dos fatos (a principal técnica era a inquisitio), que passaram a ser geridos, no mais das vezes, por juízes profissionais.

Na Inglaterra (e de lá para o mundo anglo-saxão), o Júri se consolidou como o principal método à resolução dos conflitos postos à apreciação judicial. Os jurados, antes “testemunhas dos fatos” e depois “juízes do fato”, tornam-se autores de um veredicto imperscrutável (e nesse particular, se assemelha à solução alcançada pela via dos ordálios). É importante lembrar que o juramento solene dos jurados, que ainda hoje se faz presente, invoca a intervenção de Deus no julgamento. Pode-se afirmar que o jury trial, construído como uma garantia individual contra a opressão do poder, busca nas “vísceras comunitárias” a legitimidade dos julgamentos (o que no sistema dos ordálios era obtido mediante a evocação divina).

No modelo originado na Europa Continental, e em princípio adotado no Brasil, procurou-se abandonar os ordálios em uma tentativa de “racionalizar” a busca pela verdade como condição para a realização do valor justiça. O “mito de Deus” acabou substituído pelos mitos da “razão” e da “ciência”. Nesse modelo, os julgamentos têm por base a reconstrução dos fatos através de meios probatórios admitidos na legislação, razão pela qual tanto a “divindade” quanto a “voz das ruas” ou as “vísceras comunitárias” mostram-se estranhas à solução justa dos casos postos à apreciação do Sistema de Justiça. A “verdade” é elevada à condição de legitimidade dos julgamentos e, ao mesmo tempo, as garantias processuais e demais direitos fundamentais, limites jurídicos e éticos ao exercício do poder, passam a funcionar como condições de legitimidade da busca da verdade.

Em apertada síntese: enquanto no modelo europeu-continental (civil law) a verdade dos fatos é tida como um dos principais escopos do processo, no modelo de common law a confiança na correção e na justiça do veredito dos jurados baseia-se no fato dele ser formulado por pessoas que retratam a vox populi (nesse sentido, por todos, Taruffo).

Costuma-se aproximar a “voz do povo” do princípio majoritário. Este, por sua vez, costuma ser apontado com uma manifestação necessariamente democrática. Trata-se de uma concepção que identifica a vontade da maioria (ou, ao menos, a “voz do povo”) com a democracia. Não faltam exemplos históricos de que essa visão é equivocada. Basta pensar na maioria alemã que levou Hitler ao poder e apoiou o projeto nazista ou na maioria dos estadunidenses que apoiava a segregação racial. A democracia e a justiça, coo se percebe, não guardam relação com a opinião das maiorias.

Em princípio, decisões que buscam legitimidade a partir da “voz do povo”, isso é, a partir da opinião (algo da ordem da doxa) dos milhões que se consideram aptos a fazer julgamentos no Brasil, não se mostram sensíveis a limites, sempre que os limites se revelem incompatíveis com o princípio majoritário. Em outras palavras: levar em consideração a “voz do povo” nas decisões judiciais, muitas vezes, vai significar a violação dos limites jurídicos, éticos e epistêmicos (e aqui não se esta problematizando a questão do significado da expressão “voz do povo”). Nada assegura que a “voz do povo” retrate a verdade ou produza justiça.

Registre-se que nos Estados Unidos da América, o trial by jury, pensado como uma garantia contra o poder (a voz Populi em defesa das garantias individuais), vem sendo substituído por técnicas da chamada “justiça negocial” (bargain), adequadas à razão neoliberal, que faz com que todos os valores (verdade, liberdade, etc.) sejam tratados como meras mercadorias (negociáveis, portanto).

III – O Brasil da voz autoritária
No Brasil, apesar da adesão inicial ao modelo europeu-continental, verifica-se, nos últimos anos, a incorporação de institutos, práticas e modos de ver o Sistema de Justiça cunhados para o modelo anglo-saxão. Esse fenômeno, todavia, ocorreu sem a incorporação dos correlatos limites à atividade das partes, à produção e à valoração das provas. Com isso, a vox populi foi elevada a fator decisório, mas sem a dimensão de garantia que existia no modelo do Júri. Mas, qual é a “voz das ruas” que passou a justificar as decisões no Brasil? Uma vox populi selvagem, sem limites, desconstituinte e autoritária.

No Brasil, para satisfazer “as vísceras comunitárias” e atender à “voz das ruas”, atores jurídicos passaram a desconsiderar direitos e garantias fundamentais, vistos não como conquistas civilizatórias, mas como obstáculos à eficiência do Estado. No lugar da busca pela verdade (respeitados os limites jurídicos e éticos), surgem construções narrativas adequadas ao que o julgador afirma ser a “voz das ruas”, mas que muitas vezes não passa de uma estratégia discursiva para decidir contra a lei ou a doutrina.

Muitas sentenças passaram a assumir como “verdade” o que é uma mera possibilidade. São acolhidas as versões que vão ao encontro das convicções dos atores jurídicos (e dos milhões de julgadores), mesmo que os fatos afirmados não encontrem respaldo nas provas produzidas ao longo do processo. Aliás, se verifica uma mutação na valoração da prova: a prova vista como positividade (a “boa prova”, a informação útil, etc.) é apenas aquela que confirma a hipótese já assumida como verdadeira pelo julgador ou pela “voz das ruas”. A verdade judicial passa a ser aquilo que o juiz afirma ser “verdade” a partir de “convicções” prévias (leia-se: preconceitos e pré-compreensões), mesmo que inexista prova nesse sentido (ressuscitou-se a máxima de viés autoritário: auctoritas facit veritas).

Em nome da “voz das ruas”, a natureza contramajoritária da função jurisdicional acaba por desaparecer, o que representa risco concreto aos direitos das minorias e facilita a opressão estatal. Como já se disse no início deste texto: sociedades autoritárias, produzem decisões autoritárias. Escutar a vox populi em um contexto autoritário equivale a abandonar não só o modelo de democracia constitucional como também qualquer pretensão de verdade e justiça.
     
Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ e escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.

GGN

sábado, 1 de julho de 2017

Cesare Beccaria, Lula e a presunção da inocência, por Eduardo José Santos Borges para o GGN

Os historiadores do período Moderno (entre os quais eu me incluo), fase tradicionalmente intercalada entre os séculos XVI e XVIII, tendem a caracterizar esse período histórico como o formador do pensamento contemporâneo. Homens como Voltaire, Maquiavel, Rousseau, Montesquieu, Montaigne, Hume, Hobbes e Cesare Beccaria, nos ajudaram cada um à sua maneira, entender as dinâmicas das sociedades e os passos dados pela humanidade na construção de um mundo melhor para se conviver. Esses homens nos ofereceram o Estado e algumas de suas principais instituições e formas de organização, mas também nos alertaram sobre as possíveis consequências decorrentes do mau uso destes instrumentos de poder.

Fiz essa introdução básica, apenas para criar um ambiente em torno do que pretendo escrever nos parágrafos que se seguem. A temática é o tão decantado processo contra o ex-presidente Lula e, mais recentemente, as alegações finais produzidas pelo ministério público. Diante da peça acusatória, emerge um tema que se impõe de maneira natural, a presunção de inocência. Na produção dos argumentos que se seguem irei recorrer, em determinados momentos, à companhia de um grande mestre do período moderno, o italiano Cesare Beccaria.

Para quem não conhece Cesare Bonesana, depois marquês de Beccaria, tratou-se de um grande pensador do Direito do século XVIII. Sua obra Dos Delitos e das Penas é uma interpretação filosófica da prática do Direito. O texto de Beccaria é um libelo pela liberdade, contra a acusação injusta, contra as penas infamantes e, principalmente, pelo uso da razão e da consciência na interpretação das leis.

De volta ao tema, o processo do Ministério Público contra Lula é por demais conhecido e dispensa maiores detalhes. Desde que foi feito a denúncia contra Lula, em 2016, o processo vem se arrastando e ganhando contornos kafkianos. No decorrer do processo os polos foram sendo definidos, de um lado, o ex-presidente e sua banca de advogados, e do outro, o doutor Deltan Dallagnol, os outros membros da força tarefa da Lava Jato e o juiz Sergio Moro. À primeira vista, se alguém estiver chegando recentemente de Marte, deve estar confuso diante da informação de que o Juiz está ao lado de um dos litigantes, afinal, pressupõe-se que cabe ao juiz o lugar de arbitro, ou seja, de quem esteja acima do conflito e sem envolvimento com um dos lados.

Se esse mesmo turista, que chegou recentemente de uma longa viagem por Marte, estiver achando que estamos sendo leviano com o magistrado vip de Curitiba, vamos a alguns fatos que falam por eles mesmos. Em um levantamento básico na imprensa via site de busca, encontramos os seguintes exemplos da “magistratura morana” vamos a eles acompanhados de pequenos adendos analíticos: “prisão provisória de 3 anos”, acho que nesse caso existe um erro de semântica com a palavra provisório. “Condução coercitiva de investigado sob a alegação de que estava protegendo o investigado”, justificativa mais esdruxula, contraditória e inverossímil, impossível. 

“Televisionamento ao vivo de audiência sob sigilo legal”, enquadramento perfeito no demagogo discurso de prestação de conta à opinião pública. “Vazamentos de conversas sigilosas para redes de televisão”, repete-se a explicação anterior, com a ressalva da seletividade de vazamentos ou, indo no popular: para os amigos tudo, para os inimigos a lei. “Manifestação via redes sociais solicitando apoio da população à sua cruzada moralista”, eu sou do tempo em que discrição era o outro nome que se dava a um Juiz. E, finalmente, o mais absurdo de todos eles: “O próprio juiz se posiciona como chefe de força tarefa e de operação policial, ocupando o mesmo lado do acusador”, já não seria isso um clássico caso de antecipação de sentença?

Retornando ao processo kafkiano, digo, de Lula, vamos refletir um pouco sobre a grande peça teatral que ele se tornou. Já identificamos os atores envolvidos e a temática central da trama, falta, portanto, o desenrolar do roteiro. Desde a denúncia, um personagem tem se sobressaído ao buscar para si, insistentemente, os holofotes, refiro-me ao procurador Deltan Dallagnol. O que se espera do Ministério Público em um processo penal? Recorro a quem mais conhece, o promotor Marcio Berclaz apontou os caminhos. Dele se espera a abertura de uma acusação a partir de “critérios de tradição, coerência e integridade, e, ainda assim, paradoxal e contraditoriamente sempre aberto a revisar ou desconstruir a própria pretensão acusatória”¹. Mais à frente, diz o doutor Berclaz que cabe ao órgão e seus representantes, promover “justiça e não condenações estatísticas ou matemáticas”. Por mais que possamos entender que o Ministério Público, de certa forma, será sempre uma das partes de um processo, dele se espera o cumprimento do dever de maneira equilibrada, visando se aproximar ao máximo do que podemos entender como uma atuação neutra e baseado pelas evidências, de preferência irrefutáveis, que saiam sempre, em última instância,  exclusivamente das provas.

Como, entretanto, se comportou e se comporta o Ministério Público no processo contra o ex-presidente Lula? Vamos aos fatos. Acelerando os ponteiros do processo, pulando fase inicial de investigação, acusação e defesa, vamos ao famoso Power Point do doutor Dallagnol e sua pirotecnia escatológica. Sobre a apresentação, muito já se falou, e sobrou apenas a conclusão, já transformada em “clássico do Direito”, de que se não temos prova, temos convicção.

O Power Point do doutor Dallagnol é daqueles espetáculos que entram para a história como exemplos de como a democracia e o Estado de Direito podem ser manipulados a depender da motivação de quem o manipula. Em tempos de clichês, inevitavelmente temos que recorrer a um deles, o citado procurador empreendeu uma vigorosa “construção de narrativa”. Costumo dizer aos meus alunos que com um pouco de esforço consigo vincular em uma trajetória linear o romano Júlio Cesar ao inefável Donald Trump. Com um bom encadeamento de fatos é possível construir uma narrativa que até consiga a condenação do Papa Francisco.

Ao fazer uso do Power Point como instrumento argumentativo, o doutor Dallagnol adaptou-se perfeitamente ao que tem sido chamado criticamente de “cultura do Power Point”. Uma profusão de slides e de montagens de palavras chaves encobre a incapacidade do apresentador de ser detalhista nos argumentos, e cria a sensação, no espectador, de estar diante de algo cientificamente rigoroso e irrefutável. No fundo, são só jogos de palavras e imagens, que podem fazer sucesso nas orquestradas e previsíveis apresentações de auto ajuda, mas que é uma grande irresponsabilidade ética, quando utilizada em uma peça acusatória do campo jurídico.

Não satisfeito com o frágil e débil Power Point o doutor Dallagnol nos apresentou, em suas alegações finais, uma narrativa que seria cômica, não fosse tão trágica. Suas alegações finais contra o ex-presidente Lula, trataram-se, simplesmente, da tradução em texto, da frágil estrutura argumentativa do Power Point. Contudo, diferente da linguagem do Power Point, o texto escrito exige um pouco mais em termos de detalhamento argumentativo, o procurador manteve a essência da “temos convicção, ainda que as provas sejam frágeis”, mas teve que fazer um esforço hercúleo para justificar suas mais de trezentas páginas. Vejamos o que nos diz o citado documento produzido pelo Ministério Público.

No capítulo identificado como “Pressupostos Teóricos”, o doutor Dallagnol pretendeu embasar teoricamente sua tese. Pareceu querer demonstrar que ele é muito mais do que um simples calouro que disfarça seu nervosismo e pouco domínio do assunto, se escondendo atrás de um Power Point. Mas o digníssimo procurador, não vai além dos argumentos de um quase formando que precisa impressionar a banca. Principia com um profundo desconhecimento de como funciona o presidencialismo de coalizão no Brasil, vejamos: “Nesse contexto, a distribuição, por LULA, de cargos para políticos e agremiações estava, em várias situações, associada a um esquema de desvio de dinheiro público e pagamento de vantagens indevidas. Trata-se de um complexo esquema criminoso praticado em variadas etapas e que envolveu diversas estruturas de poder, público e privado.”

Com esse argumento, o procurador condena não só Lula, mas todos os que estão exercendo cargo de executivo no país. A distribuição de cargos para aliados é prática comum em um sistema político que funciona sem construção de maiorias prévias e sem fidelidade programática. Não concordo com essa prática, acho que devemos mudar o sistema, mas vai uma grande distancia transformá-lo em argumento jurídico sem a devida prova do fato. Entretanto, Dallagnol não tem dúvida a atribuir essa prática no governo Lula como um “complexo esquema criminoso”. Nos governos municipais e estaduais, cuja prática também é realizada, imagino que o procurador acredite que todas aconteçam dentro do mais perfeito republicanismo.

Não satisfeito, diz o autor através do documento: “A análise dos fatos engloba a existência de um cartel que se relacionava de forma espúria com diretorias da maior estatal do país por mecanismo de corrupção que era praticado com elevado grau de sofisticação” Não adianta o procurador saber que os diversos delatores da Lava-Jato afirmaram que a corrupção da Petrobras antecede em muito o governo Lula. Não adianta o procurador saber que uma auditoria, feita pela KPMG, não identificou participação do ex-presidente Lula na corrupção da Petrobras. Isso pode até ser uma prova, mas não suficiente para abalar a convicção de Dallagnol.

Em outra página, o trecho mais perturbador, por ser o mais perigoso: “Se é extremamente importante a repressão aos chamados delitos de poder e se, simultaneamente, constituem crimes de difícil prova, o que se deve fazer? A solução mais razoável é reconhecer a dificuldade probatória e, tendo ela como pano de fundo, medir adequadamente o ônus da acusação, mantendo simultaneamente todas as garantias da defesa”. Veja a parte grifada, percebeu o perigo, Dallagnol admite a dificuldade das provas, não me restando alternativa que não seja recorrer ao maior jurista da história deste país, meu conterrâneo Rui Barbosa: “A acusação é sempre um infortúnio enquanto não verificada pela prova.” Portanto, na métrica do doutor Dallagnol, o  ônus da prova não é de quem acusa, pelo contrário, quem acusa, pode se dar ao luxo de acusar justamente pela dificuldade de se adquirir as provas. Acho que agora, aquele turista que esteve em Marte, está começando a entender as coisas.

Ainda sobre provas - é estranho, mas nesta peça acusatória do Ministério Público, provas é o que menos interessa – vamos ao século XVIII dar voz ao mestre Cesare Beccaria: “quando a força de várias provas depende da verdade de uma só, o número dessas provas nada acrescenta nem subtrai à probabilidade do fato: merecem pouca consideração, porque, destruindo a única prova que parece certa, derrubais todas as outras. Mas, quando as provas são independentes, isto é quando cada indício se prova à parte, quanto mais numerosos forem esses indícios, tanto mais provável será o delito, porque a falsidade de uma prova em nada influi sobre a certeza das restantes”². Traduzindo Beccaria, diríamos que o Ministério Público, não só não tem várias provas independentes contra Lula, como sua única “prova” - que se destruída derruba todas as outras – é simplesmente a admissão de ausência de provas.

Nas páginas que se seguem do documento, o procurador, para demonstrar conhecimento teórico e embasar suas teses, passa a citar uma série de autores e de exemplos em que todos tendem a  reconhecer que não há diferença de natureza entre prova direta e indireta. Esquece ele de que prova, é prova aqui e em qualquer lugar do mundo. É a vida de um ser humano que está em jogo, e, como acontece em um jogo de futebol, quando um pênalti precisa ser visto várias vezes para termos certeza de que foi pênalti, o olhar de condenação tem que ser condescendente com o árbitro.

No capítulo intitulado: “Modernas técnicas de análise de evidências”, o documento do Ministério Público recorre ao probabilismo, na vertente do bayesianismo, e o explanacionismo. Não tenho as credenciais intelectuais para analisar tais técnicas, mas indico o excelente e didático artigo do professor Lênio Streck, sobre o tema³. Antecipo uma precisa e lapidar assertiva de Lênio Streck sobre o tema em questão: “O agente do MPF nos deve accountability. Deve ser imparcial. Não pode dizer o que quer. Há uma estrutura externa que deve constranger a sua subjetividade. Essa estrutura é formada pela Constituição, as leis, as teorias da prova, as teorias sobre a verdade, enfim, há uma tradição acerca do que são garantias processuais.” O doutor Dallagnol e sua trupe desconhecem o que significa “constranger a sua subjetividade”, em outras palavras, falta-lhe a grandeza de perceber e submeter-se à outra frase mestra do Direito: o juiz é apenas aquele que erra por último.
  
Diante desse impasse metodológico e da completa falta de capacidade de se constranger, por parte do procurador, não podemos nos esquecer de que existe o outro polo do processo sofrendo, diretamente, o fundamentalismo moralista e cruzadista de alguns membros do Ministério Público. Ao outro polo, no caso o ex-presidente Lula, resta-lhe apegar-se à essência básica do Direito de que todos são inocentes até que se prove em contrário e apostar na objetividade da presunção de inocência.

Filha da Revolução Francesa, a presunção da inocência foi um avanço fundamental em termos de direitos humanos. De acordo com o artigo 9º da Declaração dos Direitos do Homem e dos Cidadãos, de 1789, “Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa, deverá ser severamente reprimido pela Lei”. Essa passou a ser a premissa básica que forjou as relações humanas nas sociedades contemporâneas. O cidadão é o centro do poder e para seu bem estar deve convergir as leis e os governos. Vejamos o que escreveu Beccaria sobre questão semelhante: “Sejam públicos os julgamentos; sejam-no também as provas do crime: e a opinião, que é talvez o único laço das sociedades, porá freio à violência e às paixões. O povo dirá: Não somos escravos, mas protegidos pelas leis.” Esse é o sentimento que deve permear um processo conduzido por um órgão como o Ministério Público, o réu deve sentir-se protegido pela lei, mas o que vemos é a lei sendo usada pelo agente público para constranger o réu.

A forma como vem sendo conduzido o processo do ex-presidente Lula fica evidente o permanente flerte com a politização da justiça. Em tempos de redes sociais com seus “juízes” de plantão sempre prontos a julgar e condenar a partir do mais simplório argumento, o doutor Dallagnol, com seu Power Point, virou a estrela do espetáculo. O ex-ministro da Justiça, Eugênio Aragão, foi de uma felicidade sutil e precisa ao afirmar que “lugar de procurador não é em púlpito de Igreja, palco de show ou em congressos para se vangloriar de seus feitos”.

Utilizar probabilidades e algoritmos para decidir sobre a liberdade de um cidadão é deixar a sociedade a mercê de interpretações jurídicas demasiado abertas. O Direito deve ser exercido no limite entre a liberdade e a pena. Ao agente, operador do Direito, cabe  o bom senso de não se sentir acima do próprio Direito. Vejamos o que podemos aprender com Beccaria sobre as interpretações da lei: “O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não à lei; a consequência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for constrangido a fazer um raciocínio a mais, ou se o fizer por conta própria, tudo se torna incerto e obscuro.”

A forma instrumental e tendenciosa como vem sendo conduzido, pelo Ministério Público, o processo do ex-presidente Lula tem sido eivado de raciocínios incertos e obscuros. Defender maior lisura e neutralidade no julgamento do ex-presidente, não significa fechar os olhos para possíveis erros cometidos por um agente público eleito para governar de maneira correta e honesta.  Defender maior lisura e neutralidade no julgamento do ex-presidente Lula, é defender o respeito ao Estado de Direito e a própria democracia. É defender o avanço civilizatório da sociedade, fruto das lutas populares e das cabeças brilhantes dos grandes pensadores iluministas a exemplo do mestre Cesare Beccaria.

Eduardo José Santos Borges - Doutor em História Social – Professor de História Moderna da UNEB.
¹ http://justificando.cartacapital.com.br/2016/03/28/qual-e-o-lugar-do-ministerio-publico-no-processo-penal/
² http://livros01.livrosgratis.com.br/eb000015.pdf.
³ http://www.conjur.com.br/2017-jun-22/senso-incomum-exoticas-teorias-usadas-mpf-seriam-chumbadas-cnmp2

GGN

segunda-feira, 12 de junho de 2017

O sucesso do ex- presidente Lula nas pesquisas evidencia lava jato como principal oponente

Foto: Andrei Leonardo Pacher/Xinhua/Zuma Press/Fotoarena

O desempenho de Lula nas pesquisas de opinião ressalta que apenas a Lava Jato desponta como seu principal oponente. Isso porque o ex-presidente vence de todos os potenciais candidatos da eleição de 2018. Só na última Vox Populi, ele foi citado por 40% dos entrevistados na sondagem de voto espontâneo. Apesar disso, Lula corre o risco de não poder disputar o Palácio do Planalto por causa da força-tarefa da Curitiba.

Os procuradores liderados por Deltan Dallagnol estão determinados a obter a condenação do petista até em segunda instância. Para isso, chegam a levantar teses de "elasticidade das provas" no caso triplex, que é o mais adiantado. Às vésperas de ser concluído por Sergio Moro, o processo acabou virando, para o Ministério Público Federal, um pleito por reconhecer a dificuldade de provas os crimes imputados a Lula.
 

Carta Capital

A resiliência de Lula impressiona. Alvo preferencial da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, o ex-presidente continua a subir nas pesquisas, ao contrário de seus adversários citados em escândalos.

Encomendada pela Central Única dos Trabalhadores, a mais recente sondagem do instituto Vox Populi, divulgada na terça-feira 6, revela um candidato imbatível tanto no primeiro quanto no segundo turno.

O petista ostenta impressionantes 40% das intenções de voto espontâneo, quando não são apresentados aos entrevistados os nomes dos prováveis postulantes, seguido à larguíssima distância pelo ultradireitista Jair Bolsonaro (8%), pela ex-senadora Marina Silva (2%) e pelo juiz federal Sergio Moro (2%), mais um delírio da casa-grande em busca desesperada por um oponente viável.

Enquanto o petista escala nas preferências do eleitorado, as intenções de voto dos tucanos evaporam dia após dia. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o prefeito da capital paulista, João Doria, figuram, cada um, com míseros 1% das menções espontâneas.

O senador Aécio Neves, afastado do mandato parlamentar por decisão do ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, nem sequer chega a pontuar. Não causa surpresa, portanto, a relutância do PSDB em abandonar o moribundo governo de Michel Temer, assim como a enfática defesa do partido pelas eleições indiretas.

O repentino e cínico apego à norma constitucional, a entregar ao Congresso a tarefa de escolher um substituto em caso de vacância do poder, confunde-se com o pavor das urnas e a ausência de votos.

As respostas estimuladas apenas confirmam o favoritismo de Lula. Com Alckmin como candidato do PSDB, o petista tem 45% dos votos no primeiro turno, ante 29% de seus adversários somados. Bolsonaro (PSC) aparece com 13%, seguido de Marina (Rede), com 8%.

Alckmin e Ciro Gomes (PDT), empatados com 4%. Se o postulante tucano for Doria, o cenário é semelhante: Lula tem 45%, ante 30% de seus rivais. Nesse caso, Bolsonaro tem 12%, Marina, 9%, Ciro, 5%, e Doria, 4%.

O melhor cenário para Lula é, porém, ter Aécio como adversário. O tucano aparece com 1%, atrás de Ciro (5%), Marina (9%) e Bolsonaro (13%). Neste cenário, o petista chega a 46% das intenções de voto no primeiro turno, ante 28% dos rivais.

Em todas as projeções de segundo turno o ex-presidente amealha mais de 50% dos votos, muito à frente de Alckmin (11%), Doria (13%), Aécio (5%) e Marina Silva (15%). Ao todo, foram entrevistados 2.001 brasileiros com mais de 16 anos, em 118 municípios de todos os estados e do Distrito Federal, entre os dias 2 e 4 de junho. A margem de erro da pesquisa é de 2,2 pontos percentuais, para mais ou para menos.

Durante o 6º Congresso Nacional do PT, no domingo 4, quando a senadora Gleisi Hoffmann tornou-se a primeira mulher eleita para presidir o partido em 37 anos de história, as lideranças do partido reforçaram apoio incondicional a Lula na disputa presidencial.

Diante da ameaça de ter a candidatura inviabilizada por uma eventual condenação em segunda instância, a legenda demonstrou a disposição de partir para o enfrentamento político em vez de cogitar um plano B.

Uma das principais resoluções aprovadas pelos delegados foi a “posição inegociável pelas Diretas Já”, enfatizando que os parlamentares petistas não participarão de um eventual colégio eleitoral destinado a escolher, indiretamente, o sucessor de Temer em caso de renúncia, impeachment ou cassação de seu mandato.

Desta vez, Lula demonstra não estar disposto a repetir a estratégia de conciliação com as elites, que marcou os seus dois mandatos, de 2003 a 2010. “Neste momento, o PT tem de radicalizar o que puder na defesa do direito de as pessoas viverem com decência”, discursou na abertura do 6º Congresso do PT. “O ódio não vem de baixo. O ódio vem de cima, porque eles não querem que a gente suba nem um degrau na escala social.”

Segundo colocado na disputa pela presidência do PT, com 38% dos votos válidos, o senador Lindbergh Farias diz estar satisfeito com as teses aprovadas pelo Congresso do PT. “Busquei o confronto com aqueles que acreditam ser possível, hoje, repetir a estratégia de 2003.

Na verdade, devemos estar preparados para a guerra, para enfrentar esse golpe patrocinado pela burguesia brasileira, que rasgou a Constituição de 1988”, diz o parlamentar, reconduzido à Liderança do PT no Senado na noite da quarta-feira 7. “Precisamos de reforma profunda no sistema tributário, extremamente desigual, e rediscutir o sistema da dívida pública, que transfere 35% do Orçamento para os rentistas.

São pontos centrais, que foram aprovados pelo partido. Outro aspecto positivo foi a censura à política econômica vacilante que tivemos com o ministro Joaquim Levy, no segundo mandato de Dilma.”

Réu em cinco ações penais da Lava Jato, Lula reiterou à militância do partido ser vítima de uma perseguição política, fruto de uma articulação de setores do Judiciário com a mídia. “Já provei minha inocência, agora exijo que provem minha culpa. Cada mentira contada será desmontada”, afirmou. “Um dia o Willian Bonner vai pedir desculpas ao PT por tudo que fizeram.”

De fato, é cada vez mais cristalino o empenho da República de Curitiba em tirar o petista da corrida eleitoral. Na sexta-feira 2, a equipe de procuradores liderada por Deltan Dallagnol apresentou as alegações finais ao juiz Sérgio Moro contra Lula no caso do triplex do Guarujá.

Além de pedir a condenação do ex-presidente em regime fechado, o Ministério Público requer o pagamento pelo petista de uma multa de 87 milhões de reais. Embora Lula seja apontado como beneficiário de 3,7 milhões de reais na forma da aquisição e reforma do imóvel e também do armazenamento de seu acervo pessoal, Dallagnol e sua equipe querem que o ex-presidente pague o vultoso valor, relativo a todos os desvios apurados em contratos da OAS com a Petrobras, a partir da tese de que ele é o suposto “comandante” do esquema de propinas da OAS com a Petrobras.

São ecos da teoria do domínio do fato, entendimento que permitiu a condenação do ex-ministro José Dirceu no caso do “mensalão”. A conexão com o julgamento comandado por Joaquim Barbosa em 2012 é reforçada pelos próprios procuradores da Lava Jato, dispostos a adular Moro com suas próprias teses. Nas alegações finais contra Lula, os procuradores mencionam um dos votos da ministra Rosa Weber no “mensalão”.

Na ocasião, a magistrada defendeu a “maior elasticidade da prova de acusação” e chegou a comparar o crime de corrupção com o de estupro. “No estupro, em regra, é quase impossível uma prova testemunhal, possibilitando-se a condenação do acusado com base na versão da vítima sobre os fatos (...). Nos delitos de poder não pode ser diferente.”

Não é circunstancial a menção ao voto de Rosa Weber: No processo do “mensalão”, Moro foi o assessor jurídico da ministra, e teve grande influência na tese da admissão elástica de provas no caso. A partir da mesma perspectiva, os procuradores pedem 87 milhões de reais como multa para sustentar sua tese de que Lula era o “comandante do esquema”.

Provas cabais? Nenhuma, como os próprios procuradores reconhecem. Nas alegações, eles afirmam que “a solução mais razoável é reconhecer a dificuldade probatória e, tendo ela como pano de fundo, medir adequadamente o ônus da acusação”. Parece um deboche ao Estado de Direito, como se o dever de provar uma acusação pudesse ser relativizado.

A confissão de elementos probatórios frágeis explica a obsessão do Ministério Público em recuperar decisões do “mensalão”, primeiro capítulo no qual o Judiciário decidiu abrir mão de provas substanciais com o intuito de condenar integrantes do PT.

Os argumentos levantados pelos procuradores foram alvo de críticas do advogado Cristiano Zanin Martins, defensor de Lula. De acordo com ele, as acusações seguiram “a absurda lógica do PowerPoint”, uma referência à apresentação da denúncia contra Lula por Dallagnol em 2016.

Na ocasião, o procurador apontou Lula como “comandante máximo” e reforçou sua “convicção” ao expor um slide em que o nome do petista surgia ao centro, circundado por 14 razões pelas quais o procurador o considerava principal beneficiário do esquema.

A má vontade com Lula contrasta com a benevolência com que é tratado seu delator. Léo Pinheiro, da OAS, nem sequer tem um acordo de colaboração premiada com a Justiça, mas foi beneficiado com um pedido do Ministério Público para ter sua pena reduzida pela metade por ter “prestado esclarecimentos” à Justiça.

Por “esclarecimentos” entenda-se a mudança de versão para se beneficiar. Em seus primeiros depoimentos, o empreiteiro afirmou que as obras da OAS no triplex e no sítio de Atibaia foram uma forma de agradar Lula, e não contrapartidas a algum benefício que o grupo tenha recebido.

Em abril deste ano, Pinheiro passou a atribuir a Lula a posse do apartamento e ainda afirmou que o ex-presidente o orientou a destruir provas do pagamento de propinas ao PT. Argumentos sob medida aos inquisidores da Lava Jato.

Ameaçado pelas delações da JBS, Temer mobiliza a sua base para avançar nas reformas prometidas ao mercado. Na terça-feira 6, conseguiu aprovar a reforma trabalhista na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, ainda que por um placar apertado: 14 votos a 11.

Com ou sem a liderança do atual mandatário, o setor patronal não quer perder a oportunidade de aprovar as impopulares medidas, razão pela qual os promotores do impeachment nem querem ouvir falar de eleições diretas caso Temer perca o mandato. Dessa forma, seria possível escolher alguém “confiável” para tocar a agenda de retrocessos.

Aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, uma emenda constitucional prevê a realização de eleições diretas em caso de vacância do poder nos três primeiros anos de mandato.

A atual base de Temer evoca, porém, o artigo 18 da Constituição Federal para impedir que o povo retorne às urnas ainda em 2017. “A lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após sua promulgação”, diz o texto.

Articulador da Frente Parlamentar pelas Diretas Já, lançada na quarta-feira 7, o senador João Capiberibe, do PSB do Amapá, enfatiza que as eleições indiretas não foram regulamentadas pelo Congresso, e a interpretação sobre a aplicação da emenda, imediata ou não, compete ao STF.

“Sinceramente, duvido muito que os ministros da Corte irão retirar do povo o direito de escolher seu representante.” O colega Roberto Requião, do PMDB do Paraná, não é tão otimista, mas observa que os humores da população podem alterar o cenário no Parlamento, já entregue aos conchavos por eleições indiretas.

“Não podemos desconsiderar a constante mutação de fatores. ‘A política é como nuvem. Você olha e ela está de um jeito. Olha de novo e ela já mudou’. Poético, não?”, diz Requião, ao evocar a máxima atribuída a Magalhães Pinto, chanceler do ditador Costa e Silva.

A pesquisa CUT/Vox Populi revela que 89% dos brasileiros desejam escolher sem intermediários o sucessor de Temer, caso ele venha a renunciar ou perder o mandato. No próximo dia 30, as centrais sindicais preparam uma nova greve geral, contra as reformas e pelas Diretas Já.

Se o desejo captado pelas pesquisas refluir para as ruas, será cada vez mais difícil os congressistas ignorarem os apelos da população, aposta Capiberibe.

Do GGN