Frei Betto
Em entrevista ao
jornalista Alex Solnik, do Brasil 247, o escritor best-seller Frei Betto afirma que, com a
decisão de aceitar o pedido de impeachment, "Eduardo Cunha tentou
chantagear o PT e quebrou a cara"; para ele, o processo de impedimento da
presidente Dilma "não tem futuro"; apesar de tecer críticas aos
governos petistas, de um dos quais participou diretamente, o religioso acredita
que na mesa da Santa Ceia, "Lula é o Messias", "Dilma é a
discípula que deveria ouvir mais o Mestre" e "Cunha é o Judas";
Frei Betto também disse que, apesar de o impeachment ser uma página virada,
enquanto Cunha não for afastado da presidência da Câmara "a turbulência
não cessará"
Por Alex Solnik, para o
247 - Escritor best-seller – "Fidel e a religião" vendeu mais de
3 milhões de exemplares em todo o mundo e foi o presente de Fidel ao Papa
Francisco na visita a Cuba – Frei Betto poderia ter sido diretor de teatro ou
político, mas preferiu, ao contrário de seus conterrâneos Betinho e Henfil que
também como ele ingressaram na JEC –Juventude de Esquerda Católica – continuar
cumprindo os votos de pobreza e de castidade exigidos por sua Ordem, a dos
Dominicanos. Nunca se arrependeu, ao contrário, como revela nessa entrevista
exclusiva a 247. Apesar de tecer críticas aos governos petistas, de um dos
quais participou diretamente, ele acredita que na mesa da Santa Ceia,
"Lula é o Messias", "Dilma é a discípula que deveria ouvir mais
o Mestre" e "Cunha é o Judas". Ele também disse que, apesar de o
impeachment ser uma página virada, enquanto Cunha não for afastado da
presidência da Câmara dos Deputados "a turbulência não cessará". Frei
Betto afirmou também que tanto o Papa Francisco quanto Jesus "são de
esquerda".
O
que achou da decisão de Cunha de deflagrar o impeachment?
Eduardo Cunha tentou
chantagear o PT e quebrou a cara. Acredito que o processo de impeachment a
Dilma não tem futuro. Impeachment é mero revanchismo de quem não assume a
derrota.
O
que diz a tua bola de cristal sobre os próximos dias?
Acho que haverá
manifestações pró e contra o impeachment. Já o Eduardo Cunha, que só tem apoio
de quem tem rabo preso com ele, vai dançar. Mas enquanto ele não for afastado
da presidência da Câmara dos Deputados haverá turbulência.
Na
Santa Ceia, quem seriam Dilma, Lula, Michel Temer, Cunha, Renan Calheiros?
Lula ainda é o Messias
que, na esperança de muitos, poderia salvar o Brasil do retrocesso, e promover
a partilha do pão e do vinho, da comida e da bebida. Dilma, a discípula que
deveria dar ouvidos ao Mestre. Temer, o apóstolo que aguarda pacientemente a
oportunidade de ocupar o lugar do Mestre. Renan, o discípulo que ora fica ao
lado do Mestre, ora de Caifás. E Cunha, o Judas, que se vendeu por 30
dinheiros...
Por
que e como Cunha se aguenta no poder apesar de ser o Judas?
Porque muitos deputados e
senadores têm o rabo preso nas mãos dele.
Havia
luta pelo poder entre os discípulos de Cristo?
Basta ler a Carta dos
Gálatas, do apóstolo Paulo, para constatar a disputa pelo poder entre ele e
Pedro. Onde há poder sempre haverá disputa.
Como
era a disputa entre Pedro e Paulo?
Paulo acusou Pedro, na
Carta aos Gálatas, de ser cínico, comportar-se como judeu, embora fosse
discípulo de Jesus, e ainda discriminar os pagãos. Para Paulo, judeu que
passara a ser cristão não tinha mais que observar os preceitos judaicos.
Que
analogia pode ser feita entre o momento político brasileiro e o Natal?
Natal significa
nascimento e o momento político brasileiro é fúnebre, de morte de um modelo
desenvolvimentista-consumista que chegou ao seu limite.
Então
é o caso de trocar o ministro da Fazenda?
Não adianta mudar o
ministro da Fazenda se não for modificado o projeto político rentista, mais
voltado ao mercado externo do que ao interno, dependente de investimentos
externos. O Brasil só renascerá, e viverá seu novo Natal, se promover reformas
estruturais profundas, como a agrária e a tributária, priorizando o mercado
interno e a redução das desigualdades sociais.
Que
presente o Papai Noel deveria dar para Dilma?
A ousadia de fazer o que
Evo Morales fez na Bolívia: priorizar, em seu arco de alianças, os movimentos
sociais – raiz e razão de ser do PT.
De
que forma o governo Dilma poderá chegar a 2018?
Como
um carro atolado em suas próprias contradições. Quais são as contradições do
governo Dilma? Como ela é vista nos movimentos populares?
Dilma não mantém diálogo
permanente com nenhum setor da sociedade brasileira, nem com os movimentos
sociais, nem com o Congresso. Parece ter terceirizado a política para o PMDB e
a economia em mãos de Joaquim Levy. Os movimentos sociais são críticos ao
governo dela, sobretudo devido ao ajuste fiscal que penaliza principalmente os
mais pobres.
Você
vê semelhança entre o momento atual e algum outro da história recente do
Brasil?
Sim, após o fracassado
governo Sarney, quando o país entrou em crise aguda, com recessão e inflação
altíssima, e o poder foi disputado por Collor, Lula e Brizola.
Lula
é o novo Getúlio ou o novo Fidel?
Ele tem, dos dois, o
talento oratório, a capacidade de argumentar, o carisma de empatia com o povão,
e a opção preferencial por políticas sociais.
Você continua próximo a Lula, conversa com ele ou está afastado?
Continuamos amigos.
Tivemos uma boa e longa conversa no Instituto Lula dia 23 de julho. E sobre
isso não falo.
Acredita
que Lula fez tudo certo no governo e sofre campanha moralista ou tem alguma
culpa no cartório?
Os governos Lula foram os
melhores de nossa história republicana. Os que mais tiraram pessoas da miséria
e da fome. No entanto, cometeram muitos equívocos que aponto em dois livros
sobre o período, ambos da editora Rocco: "A mosca azul - reflexão sobre o
poder" e "Calendário do poder", meu diário de dois anos de
Planalto (2003-2004).
Quais
foram os equívocos dos governos Lula?
Entre muitos acertos, os
governos Lula cometeram os equívocos de facilitar à população acesso aos bens
pessoais (linha branca, carro, crédito etc) e não aos bens sociais (educação,
saúde, segurança, transporte, saneamento etc); não complementaram a inclusão
econômica com a política; não fortaleceram o protagonismo dos movimentos
sociais e da imprensa alternativa.
O
fato de ele ter ganho muito dinheiro o desqualifica como interlocutor do povo
brasileiro ou não muda nada?
Ganhou honestamente, e
isso não é ilegal nem é pecado. Os acusadores que apresentem o ônus das provas.
Muita
gente acha que Lula e FHC deveriam fumar o cachimbo da paz para pacificar
petistas e tucanos pois a agitação política provoca a instabilidade econômica.
Você concorda?
Não. A crise brasileira
não se resolve com diálogo entre caciques. O diálogo deve ser entre Dilma e
movimentos sociais, que estão na origem do PT e garantiram a vitória dela em
2014. Mas ela prefere dialogar com o Congresso, aquela casa na qual Lula
denunciou "300 picaretas"...
Você
conversou muito com Fidel, o que ele pensa sobre o Brasil, sobre Lula, sobre
Fernando Henrique?
Ele é um gênio da
política. Por isso, apenas faz perguntas. E nunca manifesta o que pensa quando
há o risco de afetar suas relações políticas.
Que
perguntas ele te fez?
Não trato publicamente de
conversas pessoais.
Você
conhece bem Fidel e Lula. Quais são as semelhanças entre os dois?
Eu acho que os dois são
pessoas carismáticas. Os dois têm uma relação cordial com as pessoas. Não são
racionalistas, raciocinam mais com o coração que com a cabeça. São pessoas
afetuosas no contato pessoal, é isso que cativa muita gente. Fidel é uma pessoa
que sabe escutar. Ele jamais encontra alguém para conversar por dez minutos.
Por isso ele não dá audiência para ninguém. Ele é que escolhe com quem vai
conversar e no mínimo ele fica uma hora com a pessoa. E Lula é um pouco assim
também. É alguém que, você conversando com ele, fica amigo de infância dele em
cinco minutos. Tem essa coisa afetuosa sem prepotência, sem achar que é o dono
da verdade.
O
que acha da participação cada vez maior dos evangélicos na política? É
legítima?
Qualquer participação é
legítima, desde que não queira impor ao conjunto da sociedade valores e
preceitos que são próprios de um determinado segmento religioso. Isso é
fundamentalismo. Evangélicos e católicos, entre os quais me incluo, precisam
passar da fé em Jesus para a fé de Jesus!
Me
explica uma coisa como é possível haver tantas demonstrações de ódio entre
petistas e não-petistas como vemos principalmente na internet se o Brasil é um
país muito religioso e as religiões pregam o amor e não o ódio?
Uma coisa é crer, outra,
viver o que se crê. Não esqueça que as maiores atrocidades da história foram
cometidas por países predominantemente cristãos - Inquisição, nazismo,
colonialismo, bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, duas grandes guerras
etc. E essa gente "religiosa" não presta atenção no que Shakespeare
disse magistralmente: "O ódio é um veneno que você toma esperando que o
outro morra."
Durante
a ditadura os artistas e a sociedade civil estavam unidos na luta por eleições
diretas. Por que agora os artistas estão desunidos? Ou silenciosos em relação
às tentativas de derrubar a presidente?
Em geral, os artistas são
inteligentes. E sabem que Dilma não vai cair.
Por
que você nunca quis ser deputado ou senador?
Porque não tenho vocação
para funções políticas institucionais. Sou um feliz ING - Indivíduo Não
Governamental.
Você
recebeu algum retorno do papa depois que ele ganhou do Fidel um exemplar de
"Fidel e a religião"?
Não. Uma nova edição
brasileira do livro sairá em 2016 pela Companhia das Letras.
Há
papas "de direita" e "de esquerda"? O atual é de direita ou
de esquerda?
Se ser de esquerda é
indignar-se com a desigualdade social, Francisco é de esquerda. Graças a Deus!
Numa
licença poética poderíamos dizer que Deus é de esquerda?
Jesus sim, sem dúvida. E
por isso morreu como prisioneiro político: preso, torturado, julgado por dois
poderes políticos e condenado à pena de morte dos romanos, a cruz.
O principal problema da Igreja Católica é a pedofilia como diz a mídia?
Não, embora seja um grave
problema, que deve ser rigorosamente coibido e punido. O principal problema é o
clericalismo, padres e bispos convencidos de que suas funções os promovem acima
do comum dos mortais, e não terem a mesma sensibilidade de Jesus diante da
miséria e da opressão.
Você
é um padre?
Não, eu sou um religioso.
Veja bem: nos dominicanos você tem os frades que se ordenam sacerdotes e
continuam sendo chamados de frei e tem os frades que são só religiosos, que têm
os votos, mas não são ordenados. Eu não posso celebrar missa. Por opção. Mas eu
sou um pregador, um evangelizador, um homem da palavra. Eu tenho voto de
pobreza e voto de castidade.
É
melhor viver sem mulher?
Olha, é difícil dizer
isso, mas partindo da minha experiência, eu te falo sinceramente: eu não tenho
saudade da família que não constituí... Eu não generalizo isso, nem quero
estabelecer comparações, mas, a vida religiosa, a minha vida celibatária me dá
uma liberdade muito grande! E eu me sinto muito amado. Sabe, na vida, a questão
é afeto. Então, isso realmente me dá uma saúde e uma felicidade muito grande.
Além do que, eu não vivo mergulhado numa cultura nem de pornografia nem de
erotismo, então, essa questão, também, eu acho que tem muito a ver com qual é o
meu alimento interior. E uma das coisas que além de escrever... as duas coisas
que eu mais gosto de fazer são: escrever e orar. Não posso passar um dia sem
pelo menos meia hora de meditação. Porque é como se eu pulasse o almoço,
pulasse o café da manhã, deixasse de tomar banho naquele dia.
Você
nunca teve mulher?
Não, eu namorei quando
era adolescente...
Antes
dos votos? Com quantos anos você fez voto de castidade?
Eu fiz com 20 anos...
Quer dizer: não é que
você não tenha tido experiência sexual... você teve, antes dos votos...
Ah, tive namoradas...
como adolescente comum que viveu em Belo Horizonte, depois no Rio...
Mas
você nunca namorou pensando em se casar?
Não.
Por
que? Não te atraía o sexo?
Aos 16 anos já começou a
me inquietar essa coisa da vocação. Eu achava que Deus queria isso, que meu
projeto no mundo era esse, por causa do contato que a gente tinha com os
dominicanos. Eu era da JEC-Juventude de Esquerda Católica. Betinho também... o
Henriquinho, que depois virou o Henfil. Muitos entraram para o convento. Muitos
saíram depois. Mas toda uma geração da JEC resolveu ser frade dominicano
empolgado pelo estilo de vida, pela cabeça. Eu entrei para sair, não entrei
para ficar. Eu não queria chegar aos 40 anos falando: pô, acho que Deus queria
que eu fosse padre, mas eu não tive coragem. Falei: então vou entrar, porque aí
eu tiro a limpo. E me empolguei, me encontrei, sou feliz. A única crise de
vocação que eu tive foi quando eu trabalhei no Teatro Oficina – fui assistente
de direção do Zé Celso no Rei da Vela... Disso sim, tenho saudades. Foi um
período de muita efervescência cultural e criatividade. Não sei como conseguia
dormir em 1967: aulas de filosofia pela manhã, repórter da Folha da Tarde no
período vespertino, Teatro Oficina em seguida e, em meio a tudo isso, subversão
via ALN de Marighella... O "Rei da Vela" é um marco histórico no
teatro brasileiro e criou o tropicalismo. Foi um privilégio viver a empolgação
pelo espetáculo. E fiquei muito tentado em me tornar diretor de teatro.
Mas
aquilo era uma esbórnia! Por isso você saiu...
Não, não foi pela
esbórnia. O pessoal até brincava muito comigo. Mas era muito mais sadio do que
aparentava. Mas o que aconteceu é que eu descobri que tinha vocação para
diretor de teatro. E aí eu vi que era incompatível. Os dominicanos procuram ao
máximo viver do seu trabalho. Não temos fazenda, gráfica, prédios alugados.
Outras congregações e ordens têm, nós não temos. Por opção. Vivemos do próprio
trabalho. E eu sempre vivi do jornalismo e da literatura. Isso é compatível.
Mas o teatro não é: o teatro é um sacerdócio...
Ahhh....
A dedicação é total.
Durante cinco meses, é dia e noite...naquilo... você não pode pensar em outra
coisa. Zé Celso foi meu mestre, mas muitas vezes ele deixava nas minhas mãos o
trabalho com os atores. E eu descobri que tinha muita facilidade para aquilo.
No teatro certamente você
não iria cumprir o voto de castidade...
Eu não sei...
O apelo seria muito
forte...
Eu não sei... mas não é
uma questão relevante, realmente não é. Eu me lembro que o Narciso Kalili, da
Realidade veio fazer uma matéria aqui. Ele era completamente agnóstico.
"Vou ficar 15 dias aqui dentro junto com vocês vivendo como vocês".
No terceiro dia, ele andava para um lado e para o outro. Eu perguntei: o que
que está havendo? "Ô, cara, eu estou pirado! Não tenho dormido. Porque não
é possível que vocês vivam felizes! Eu pensei que ia encontrar gente pulando o
muro de madrugada, mulheres... vocês conseguem ser felizes assim?!" Foi
preciso Roberto Freire, que também era da Realidade e psicanalista, dar um apoio
clínico para o Narciso porque ele estava pirado, literalmente pirado.
Mas
você não sente atração sexual?
Claro que sinto, é
normal, como qualquer ser humano. Padre não é assexuado.
E
o que você faz nessa hora?
Eu canalizo para Deus...
Tem mulheres que assediam
você?
Isso tem, é comum.
Aconteceu uma vez mais forte, mas não foi tão difícil escapar porque ela era
muito feia.
Mas teve alguma mulher
que literalmente atacou você sexualmente?
Não, assim também não. O
que é mais comum, o que tem mais são mulheres que tentam se aproximar para
tomar conta de mim. Mas eu prezo muito a minha liberdade.
Você
concorda com o celibato na igreja?
A minha posição é muito
clara: eu acho que o celibato deve acabar na igreja como medida obrigatória.
Então você terá aqueles que têm vocação, continuarão celibatários, como na
igreja primitiva e aqueles que são casados, e são ordenados sacerdotes, como os
pastores da igreja evangélica. Além do que, eu também defendo a ordenação de
mulheres. Solteiras e casadas. Eu acho que não há nenhum fundamento teológico,
bíblico, que impeça isso. Se Jesus não teve uma apóstola, foi pela mesma razão
que ele não condenou a energia nuclear. Seria uma extrapolação total da cultura
em que ele vivia. Mas Pedro era casado. Tanto que Jesus curou a sogra de Pedro.
Se Pedro gostou ou não, não sei, não vou entrar nesses detalhes da intimidade
dele. Mas se Jesus curou a sogra de Pedro é porque Pedro era casado. E Jesus
não só o escolheu como apóstolo como o escolheu como líder do grupo. Ou seja:
preconceito em relação ao sacerdócio do homem casado Jesus certamente não
tinha.
Se
houvesse essa opção, você se casaria?
Não, eu continuaria na
minha. Continuaria porque a essa altura da vida...
Mas pode namorar. Não
precisa casar...
Não... não...Já esquento
a cabeça com muita coisa. A gente se mete muito - no bom sentido - a gente se
envolve muito na vida das pessoas... família... amigos... separações...Eu falo
para o meu irmão, que é psicanalista: a diferença entre nós dois é que você
marca hora e eu não; você cobra, e eu não. Você não sabe os dramas que eu ouço
aqui nessa sala.
De
tanto ouvir esses dramas, você preferiu o celibato...
É a minha opção. Tem uma
coisa muito clara para mim: a minha luta, hoje, é por ter mais tempo para me
dedicar à literatura. E a literatura é um ato solitário. Eu me sinto muito
feliz quando chegam aqueles dias que eu tiro só para escrever. Então, vou para o
sítio de um amigo, fico rezando, faço minha ginástica, leio, escrevo, sou dono
do horário, eu mesmo cozinho, eu não sou um gourmet, sou um
"gourmãe"...Minha mãe, Maria Stella Libânio Christo é a maior
especialista em culinária mineira. E eu herdei essa vocação, tenho um livro de
culinária – Comer como frade, divinas receitas para quem sabe porque temos o
céu na boca... O que eu queria da vida, a vida me deu...
Você
nunca quis ter filho?
Não, nunca quis ter
filho, nunca quis ter poder, nunca quis ter mandato, nunca quis ter dinheiro. A
maior tentação não é a tentação do sexo, nem do dinheiro; é a tentação do
poder. Realmente, não quis, porque tive várias oportunidades de ter tudo isso,
mas não tenho a menor veleidade...
E
não se arrepende?
Nem me arrependo. Pelo
contrário: me regozijo por ter dito não a situações que me teriam levado a
poder, a dinheiro, não sei o que. Agradeço a Deus por ter dito não a essas
situações.
Você
acha que dinheiro dá confusão?
Não é confusão. Eu vejo
muitos amigos que são escravos dessa coisa de dinheiro. Vira uma bola de neve.
O cara tem dinheiro, aí já quer fazer uma casa na praia, tem que manter a casa
e tem que ter um outro carro, sabe, começa um negócio de que o cara tem que
estar num certo padrão de vida e se reduz ele fica humilhado, se sente mal. Eu
não quero que bens materiais determinem a oscilação do meu estado de humor, meu
temperamento, meu estado psíquico. Eu tenho o meu Golzinho que ao mesmo tempo
serve à comunidade, eu estou muito feliz, preciso de muito pouco para viver, às
vezes com o dinheiro que eu ganho de palestras e direitos autorais eu ajudo os
movimentos pastorais que eu acompanho...
Agora,
como é que você, um religioso, amante da paz, um cara preocupado em ajudar, foi
se envolver na luta armada em 1968?
Naquele momento nós
achávamos que não havia outra forma de luta, de resistência, todos os meios
pacíficos estavam esgotados. E há um princípio na teologia, um princípio
medieval nosso do confrade Tomás de Aquino. Chama-se Princípio do Tiranicídio.
São Tomás diz o seguinte: em caso do tirano que oprime o povo causando a morte
de muitas pessoas se a morte desse tirano significar o bem do povo é legitimo
esse combate. Com base nesse princípio, nós colaboramos – nunca pegamos em
armas, mas colaboramos – com a ALN, a VPR, a VAR-Palmares, com uma série de
organizações, com o Partidão, muito, com a Ação Popular. Eles se abrigavam aqui
no convento...
O
convento foi invadido pelo Exército?
Foi invadido na nossa
prisão. Eu fui preso no Rio Grande do Sul, depois de passar pela fronteira 11
militantes ligados ao Marighela, inclusive o braço-direito dele, Joaquim Câmara
Ferreira, que foi quem teve a ideia de sequestrar o embaixador americano. Mas
quando prenderam Ivo e Fernando invadiram o convento aqui e prenderam vários frades.
Então, esse era o princípio de que era um recurso legal e teologicamente aceito
pela igreja até hoje. Mas veja bem: eu sou contra o terrorismo em qualquer
circunstância. Mesmo que seja praticado pela esquerda. Por uma razão simples: o
terrorismo nunca favoreceu a causa dos pobres. Sempre favorece a
extrema-direita. Sempre é um prato cheio para justificar o terrorismo de
extrema-direita.
Você
conheceu bem Marighela? Você acha que ele seria o líder se a luta armada
tivesse vencido?
Prefiro não raciocinar
sobre hipóteses, sobretudo hipóteses "achistas". Sim, conheci
Marighella e o tenho na conta de um dos principais heróis brasileiros, que
entregou sua vida para que tivessem uma nação mais livre e justa. Os detalhes
de minha relação com ele estão em meu livro "Batismo de Sangue"
(Rocco).
Os
superiores de vocês sabiam que vocês estavam escondendo o pessoal da luta
armada? Vocês esconderam só eles ou armas também?
Nunca pegamos em armas.
Sim, conforme descrevo no meu livro "Diário de Fernando - nos cárceres da
ditadura militar brasileira" (Rocco) e em "Batismo de Sangue",
nossos superiores sabiam de nossa participação na resistência à ditadura
militar.
Como
foi a história da morte do Marighela? Ele ia se encontrar com algum frade? É
verdade que quem deu a pista para a polícia foi um dos frades presos?
Todos os detalhes estão
em "Batismo de Sangue" e no livro de biografia de Mario Magalhâes,
"Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo" (Companhia das
Letras). Nenhum frade foi responsável pela cilada na qual Marighella foi
assassinado pela polícia.
Você
estava preparado para ser preso? Para resistir à tortura? Quanto tempo você foi
torturado?
Ninguém está preparado
para ser preso e muito menos torturado. Fui torturado em minha primeira prisao,
no CENIMAR, no Rio, em junho de 1964. Em 1969, ao see preso pela segunda vez
após 7 dias foragido, me livrei da tortura graças à intervenção de um tio
general.
Como
foi o fim do Frei Tito?
Devido às torturas que
sofreu, foi levado ao suicídio em agosto de 1974, quando se encontrava exilado
na França. Os detalhes estão em "Batismo de Sangue" e na biografia
dele, "Um homem torturado - nos passos de frei Tito de Alencar Lima",
de Leneide Duarte (Civilização Brasileira).
O
que vai acontecer com a vitória de Macri na Argentina? Podemos prever
turbulências na América Latina?
Temo ser o começo do fim
da fase de governos progressistas na América Latina. Agora Brasil e Venezuela
estão no alvo dos neoliberais. Os governos progressistas, com todos os avanços,
como a redução da miséria, e conquistas, como integração continental, cometeram
o erro de não complementar a inclusão econômica que propiciaram com a inclusão
política. Formaram consumistas e não protagonistas políticos.
Do Brasil 247