O Brasil foi ontem surpreendido com uma repentina guinada
processual no calvário imposto ao Presidente Lula por conta da quimera do
Guarujá. Estava, o tribunal regional federal da 4.ª Região, há mais de
cinquenta dias, a atrasar o juízo de admissibilidade sobre os recursos especial
e extraordinário, interpostos ao STJ e ao STF, respectivamente, do julgamento
fulminante da apelação em janeiro passado. Só com muita grita, o presidente
daquela corte resolveu, depois de mais de quarenta dias com a papelada
dormitando em seu disco virtual, abri-la ao ministério público para seu óbvio parecer,
pela recusa do seguimento dos recursos, é claro. E, agora, já pautado pedido
cautelar na 2.ª Turma do STF, para antecipar o longevo juízo de
admissibilidade, a vice-presidente do trf resolve acordar de seu longo sono de
bela-adormecida e, ainda bocejante, proferir sumário despacho de não admissão
do recurso extraordinário. O recurso especial, é verdade, foi admitido, pois,
no STJ, ao qual se destina, a mesma cautelar de antecipação do juízo de
admissibilidade havia sido já barrada monocraticamente pelo relator.
Mas aí que está a esperteza, o ardil desleal. Diferentemente
do que ocorreu no STJ, no STF, o relator, ainda que tenha negado a liminar para
conferir efeito suspensivo ao recurso extraordinário, submeteu o pedido à
Turma. O pedido cautelar estava para ser julgado na próxima terça feira, dia 26
de junho. Não há como deixar de constatar que o repentino despertar do tribunal
convenientemente dorminhoco do sul se deveu unicamente ao intento de frustrar o
julgamento da cautelar. É evidente que, para bloquear o caminho do pedido, que
se prendia ao prospectivo julgamento do recurso extraordinário, esse recurso
não foi admitido. Mais uma vez, a defesa do Presidente Lula é obrigada a
segurar na brocha, com a escada fechada em última hora pela matreira jurisdição.
Impressionam essas andanças do trf. Em janeiro, às carreiras,
em pleno recesso das cortes superiores que pudessem exercer alguma ação
disciplinadora, o tribunal resolve pautar a apelação da sentença condenatória,
proferida sem qualquer prova robusta, no já famigerado caso do Tríplex do
Guarujá. Passa o processo à frente de algumas dezenas de outros, sugerindo que
o interesse público demandaria fosse o feito julgado sem delonga. Acertados os
votos dos julgadores na turma – tão ajustados que, no dizer do jornalista Luís
Nassif, pareceriam jogral dos três sobrinhos do Pato Donald – agravou-se a pena
do Presidente Lula. Houve embargos. Houve pedidos às cortes superiores para
impedir a quase certa prisão. Houve ouvidos moucos. Ninguém queria ou ousava impedir
essa prisão, calcada numa agressão evidente à Constituição, que determina a
presunção de inocência até o esgotamento de todos os recursos. E, como era
prevista, a prisão se deu a toque de caixa, tão logo rejeitados os embargos e
antes mesmo de sua publicação. No melhor estilo bá-buf!
Depois… ah, depois! Depois veio o longo inverno. O Presidente
Lula, preso já há mais de sessenta dias, indicado candidato à Presidência da
República por seu partido e na “pole position” em todas as pesquisas
eleitorais, é impedido de se articular, dar entrevistas, participar de debates
com seus concorrentes, submetido à desvantagem compulsória por juízes
caprichosos. Atrás do palco, ouvem-se vozes jurisdicionais a ameaçarem-no com
inusitado indeferimento liminar do registro de sua candidatura se ousar querer
concorrer. E ninguém tem pressa agora. Não querem adentrar o mérito da
condenação engendrada antes das eleições. Sabem-no inocente, sabem que a
quimera do Guarujá não se sustenta à luz do quadro probatório, sabem que foi
julgado por um juiz tagarela, parcialíssimo, mas mantêm-no preso para não
participar das eleições.
O trf esticou a corda ao máximo. Segurou o juízo de
admissibilidade pelo tempo que pôde e só soltou a rapadura quando se abriu a
perspectiva de o STF tomar a si a competência. Aí, novamente, como menino
travesso, o tribunal a quo aumentou o ritmo para não levar bronca do
professor.
Enquanto isso, o dito professor tem se portado com espantosa
leniência. A presidente do STF não se fez de rogada e declarou, em convescote
empresarial, que não se podia dar ao Presidente Lula tratamento diferenciado.
Logo, não haveria qualquer consideração urgente de seu caso. Ora, ora!
Tratamento diferenciado é o que sempre lhe deram, com a imprensa no pescoço. O
interlúdio da pressa oportunista e do vagar maroto para impedir qualquer
atuação eficiente da defesa, as declarações públicas de juízes e procuradores
sobre seu caso, os pré-julgamentos lançados na mídia por alguns que ainda
poderão dizer sobre sua situação jurídica, tudo isso denota, sim, um tratamento
completamente fora do padrão. Mais ainda: a própria presidente do STF
esmerou-se à vista de todos em não pautar ações declaratórias de
constitucionalidade que pudessem reestabelecer o primado do princípio da
presunção de inocência. E o fez claramente para que o Presidente Lula não
pudesse se beneficiar de eventual reposicionamento jurisprudencial.
Quando anunciaram que a 2.ª Turma do STF poderia vir a
reexaminar a prisão do Presidente Lula ao julgar o pedido cautelar de antecipação
do efeito suspensivo do recurso extraordinário interposto, a maioria de
brasileiras e brasileiros com discernimento, leigos ou não, reagiram com muito
cuidado, com medo de demonstrar esperança, pois, num quadro em que o judiciário
se porta de forma tão tortuosa, a decepção era quase certa. E foi: em pouco
mais de quarenta minutos depois de vir a público o despacho da vice-presidente
do trf, negando admissão ao recurso extraordinário, solta-se despacho do
relator do pedido cautelar, julgando-o prejudicado e frustrando seu
conhecimento pela 2.ª Turma do STF, já pautado para terça feira próxima. Como
conseguem ser tão previsíveis nas suas manigâncias!
O timing do despacho que extingue o pedido cautelar
sugere que o jogo foi combinado. Afastaram dos ministros do STF um amargo
cálice. Na undécima hora, preservaram-nos de terem que decidir se soltassem o
Presidente Lula ou não. Ninguém disfarça. E, no entanto, a extinção do pedido
cautelar não é um corolário necessário da decisão que deixou de admitir o recurso
extraordinário. O próprio STF tem decidido que, proferido o juízo de
admissibilidade, positivo ou negativo, instaura-se a instância ad quem.
Diante da evidente manobra do trf, deveria o STF reagir e manter a pauta, pois
magistrados finórios não merecem ser homenageados com a retração da instância
que lhes pode colocar freios. E, para manter a pauta, bastava se socorrer do
princípio da fungibilidade dos meios recursais, prevalente em nosso processo
penal, e receber o pedido cautelar já como agravo de instrumento, para forçar a
subida do recurso extraordinário. Poderia dar prazo de até vinte e quatro horas
para a defesa se manifestar e garantir o julgamento na terça feira. É o mínimo
que se esperaria de um Tribunal Supremo a quem incumbe zelar pelo respeito aos
direitos fundamentais, notadamente o do devido processo legal, o do julgamento
justo e o da duração razoável do processo, pois, do contrário, ao se frustrar a
pauta, qualquer nova decisão sobre a admissibilidade ficará para agosto, depois
do recesso judicial. Até lá, prolongar-se-á o calvário do Presidente Lula,
preso em afronta à Constituição.
Ainda é tempo. Pode e deve a defesa pedir reconsideração para
manter a pauta, mas a pergunta que não quer calar é: o STF se dobrará à chicana
ou colocará ordem no processo para devolver a respeitabilidade à tão abalada
justiça brasileira? As próximas horas o dirão.
x.x.x.
EUGÊNIO JOSÉ GUILHERME DE ARAGÃO, ex-ministro da Justiça.
Do DCM