De algoz inclemente, Moro caminha para ser o bode
expiatório do sistema. Será usado pela mídia para purgar seus pecados, de apoio
à desestruturação do país.
Nosso Xadrez ganhou uma
complexidade à altura do caos que se instalou no país.
Há quatro personagens
diretamente envolvidos com a Lava Jato e, seguramente, fazendo parte do dossiê
Intercept: a Lava Jato, o Supremo Tribunal Federal (STF), Mídia e Milícias
(entendido aí, o grupo diretamente ligado à eleição de Bolsonaro).
Todos eles tiveram
papel central na era da ignomínia da democracia brasileira, uma mancha na
história de cada um, com exceção obviamente das milícias, as vitoriosas.
Em outros tempos, a
revisão histórica se daria após o fim do período de exceção, com justiça de
transição, obras desnudando os personagens. E, em geral, cobrindo de vergonha
apenas os descendentes dos principais personagens.
No entanto, na era da
Internet e das redes sociais, o tempo político acelera-se enormemente. A
trágica resultante do jogo – a ascensão de Jair Bolsonaro, ameaçando jogar o
país na era das trevas – acelerou enormemente o revisionismo. Jornalistas,
celebridades, alguns veículos que foram peça central na desmoralização da
democracia, trabalham, hoje em dia, em um aggiornamento a jato, menos
de dois anos após delatarem adversários, estimularem o ódio, defenderem as
ações de exceção da Lava Jato.
Especialmente porque
emergiu dessa zona um Brasil do baixo clero, com a opinião se fazendo ao largo
da mídia, das análises técnicas e da Bastilha dos poderes constitucionais.
Abriram a jaula, liberaram os bárbaros. A recuperação da influência dependerá,
portanto, da retomada da legitimidade perdida.
Por outro lado, a
recuperação dos princípios democráticos poderia trazer Lula de volta à arena
política. Como se equilibrar nesse dilema, entre a cruz e a caldeirinha?
Especialmente porque o dossiê do Intercept, se divulgado na integra, revelará:
Pecados específicos da
operação.
Acertos com jornalistas
e veículos.
Conversas mencionando
acertos nas instâncias superiores, podendo chegar até o STF.
É nessa arena que se
dará os próximos embates entre os quatro Ms.
Vamos conferir como
deverão se comportar, a partir da estratégia elaborada por Glenn Greenwald, da
Intercept.
Protagonista
1 – Glenn Greenwald e o Intercept
Glenn se tornou um
jornalista premiado internacionalmente não apenas por ser receptador de dossiês
explosivos, mas, principalmente, por sua capacidade de viabilizar sua
divulgação. No caso Snowden, houve a parceria com The Guardian e outros grandes
veículos internacionais, conseguindo contornar até a enorme influência da CIA e
do governo norte-americano.
Agora, monta uma tacada
de mestre, com a parceria com a Folha de S. Paulo. Com a aliança, blinda-se contra
eventuais tentativas de Sérgio Moro, de criminalizar a cobertura, ganha um
alto-falante potente, junto a uma bolha extra-Internet.
Definiu claramente o
alvo – Sérgio Moro e a Lava Jato -, enfrentou valentemente os grandões,
inclusive a Globo, quando tentou criminalizar sua conduta, e os bolsominions
que o ameaçaram
Há informações de que
apenas 2% do dossiê Snowden foi divulgado, devido a alianças políticas de
Greenwald. Não se condene. Fez o que era possível para viabilizar a divulgação
de parte dos documentos, que se tornou um clássico do jornalismo contemporâneo.
Mas pode explicar eventuais desdobramentos na divulgação do dossiê Intercept,
como se analisará a seguir.
Protagonista
2 – mídia
A eleição de Bolsonaro
consagrou definitivamente o novo ator das comunicações, as redes sociais, os
“influenciadores”, com sua comunicação horizontal, os fake news e o trabalho
absolutamente profissional de apoio a Bolsonaro. A única maneira da mídia mainstream
recuperar o espaço é retomando os valores imemoriais do jornalismo.
Mas como apagar tantos
anos de infâmia, o uso abusivo de fakenews até perder o controle
sobre o produto?
Este ano, tem havido um
esforço ingente para recuperação da legitimidade. Jornalistas que se lambuzaram
até o pescoço atendendo à sede de ódio do período anterior, a legitimação das
ilegalidades, a delação dos inimigos, de repente se tornam campeões do lado
certo, na grande batalha civilização x selvageria. Sejam bem vindos.
Ao mesmo tempo, na
classe média mais moderna, dos jovens de boa cabeça, há um movimento
irresistível de adesão às críticas contra Moro, Dallagnoll e operação. Ora, se
investir contra o poder constituído engrossou a campanha do impeachment, hoje
em dia o poder constituído atende pelo nome de Sérgio Moro, e Lava Jato.
É um movimento que
conquistou programas de humor, na própria Globo, corações e mentes da parte
mais saudável dos jovens jornalistas – ainda que contidos pelas amarras da
redação. E, especialmente, a classe média mais informada, blindada contra
os fakenews das redes sociais.
Está em formação a
tentativa de criar um pensamento progressista, tipo classe média
intelectualizada, em substituição à esquerda tradicional.
Por outro lado, a
divulgação de diálogos de procuradores com jornalistas poderá explicitar o
óbvio, o fato de a mídia ter endossado todos os arbítrios da Lava Jato.
Nesse sentido, é
interessante analisar o comportamento da Globo.
Começou pretendendo
criar um Russiagate, para desmoralizar as denúncias. Recebeu reações à altura
de Greenwald, valendo-se das redes sociais. Depois, se acalmou, a ponto de
produzir uma matéria longa e isenta sobre o tema no último Fantástico, depois
de anunciado a parceria Intercept-Folha.
O que a fez mudar de
opinião? A constatação de que, indo contra o dossiê, comprometeria ainda mais
sua imagem? A garantia de que apenas parte do dossiê seria revelado?
Lembrem-se das contas
do HSBC. Quando o jornalista Fernando Rodrigues se viu com os dados na mão,
incluindo contas de donos de empresas jornalísticas, amarelou e pediu ajuda à
Globo. O jornal alocou bons repórteres, que levantaram alguns casos, para dar
alguma satisfação ao distinto público, mas esconderam o restante do material.
Até hoje é mantido nas sombras.
Greenwald informou
estar fechando aliança com outros veículos. Ainda é cedo para avaliar a
profundidade da cobertura do dossiê. Qualquer que seja o nível de concessão, já
prestou um serviço inestimável à democracia brasileira.
Protagonista
3 – os milicianos
Jair Bolsonaro está se
esbaldando com a agonia de Sérgio Moro. É só comparar sua desenvoltura, depois
que se iniciou a descida de Moro aos infernos, com a postura anterior. O
aclamado herói nacional, agora, come na sua mão, endossa todos seus esbirros e,
a cada dia que passa, reduz seu próprio potencial eleitoral – embora ainda seja
bastante popular.
Por outro lado, as
tentativas da mídia de limpar as marcas do passado recente, o aumento da grita
pela libertação de Lula, fortalecem Bolsonaro junto às suas milícias.
A cada dia que passa,
seu governo mais se isola, mais nítidos ficam os sinais de descontrole sobre a
economia e o isolamento do país no cenário global. Salva-se apenas pelo
antilulismo.
Mas isso é tema para
outro xadrez.
Protagonista
4 – os Ministros do Supremo
Hoje confirmou-se a
regra suprema, que explicitei em artigo recente (aqui).
Todo movimento do Supremo é ensaiado. A banda legalista vota, mas sempre com a
garantia de que será minoritária na votação.
Mesmo assim, hoje em
dia, o pouco que o dossiê Intercept revelou até agora escancara os desmandos da
operação. Seguramente há material muito mais explosivo a caminho, explicitando
de forma indelével o caráter político da operação.
Por outro lado, a
maioria do Supremo continua firmemente alinhada à tese do sistema, de uma
reconstituição da democracia, mas sem Lula. Qual o óbolo a ser pago?
Provavelmente o pescoço de Sérgio Moro, depois de garantido que sua condenação
não viabilizará politicamente Lula.
Protagonista
5 – Moro
Encerrou sua carreira
de Ministro. No cargo, sua reputação será destruída dia a dia por três
fenômenos:
O vazamento continuado
do dossiê Intercept.
A blindagem ao no. 1
Flávio Bolsonaro e do lugar-tenente Queiroz. Ligado a isso, a impossibilidade
de resolver o episódio da morte de Marielle.
Sua total incapacidade
de articular qualquer política pública consistente.
Ficando no cargo,
gastará toda sua reserva de imagem e se arriscará a ser abandonado por seus
seguidores, do MBL às alianças empresariais. Principalmente porque estará
permanentemente subordinado a Jair Bolsonaro.
No momento, ainda goza
de popularidade, ainda que descendente. Sua visita aos principais departamentos
de segurança dos Estados Unidos mostram o desespero e a necessidade de apoio
dos padrinhos.
Conclusão
O sistema – entendido
como o conjunto de forças que influi nas decisões de poder – já rifou Sérgio
Moro.
Confira-se o
inexpressivo senador David Alcolumbre, alçado à presidência do Senado por uma
articulação de anti-PMDB e partidos bolsonarianos, afirmando que, fosse
político, Moro estaria sem cargo e preso. Usou Moro de escada para levantar sua
reputação. Na Câmara, a cada dia que passa Rodrigo Maia atua mais e mais como
freio às pirações de Bolsonaro. A própria Câmara, valendo-se das revelações do
Intercept, ressuscitou a lei anti-abuso das autoridades, uma lei que, ao pé da
letra, poderá comprometer até a parte saudável da atuação do Ministério Público
Federal.
Ou seja, as duas casas
legislativas recuperam seu protagonismo. Enquanto isto, as Forças Armadas dão
um sinal forte de impedir a contaminação de sua imagem por Bolsonaro, recusando
a promoção de um dos militares da ativa que foi servir o governo.
De algoz inclemente,
Moro caminha para ser o bode expiatório do sistema. Será usado pela mídia para
purgar seus pecados, de apoio à desestruturação do país. Pelo Congresso, como
forma de recuperar seu protagonismo. Pelo Supremo, para mostrar-se defensor das
leis e do direito, desde criancinha. Será mantido em formol por Bolsonaro, para
mostrar-se solidário com os soldados caídos no campo de batalha.
Daí, começará uma
segunda revisão desses tempos bicudos, demonstrando que Moro, Dallagnol, Janot
e companheiros eram apenas instrumentos, pessoas sem dimensão intelectual e
social, provincianos deslumbrados, brinquedos de um poder maior, daqueles que
se usa e se joga fora.
Do GGN