sábado, 22 de junho de 2019

O JAZIGO VIVO DO BRASIL, POR FERNANDO BRITO

Não surpreendem a ninguém os números publicados pela Folha, com base em levantamento da prefeitura paulistana, que reveram ter quase dobrado a população de rua no centro de São Paulo.
Mais de 100 mil, ou muito mais, porque os próprios recenseadores admitem que não há como chegar a cada vão de viaduto.
“O número de indivíduos abordados não representa a quantidade de pessoas que vive de fato nas ruas. (…) há, por exemplo, moradores da periferia que passam dias e noites vivendo nas calçadas da região central em busca de doações, mas em parte do mês retornam a suas casas, pessoas que estão de passagem pela cidade, entre outras situações”.
Não é diferente no Rio e nem deve ser na maioria das grandes cidades brasileiras.
Qualquer um que passe pelas calçadas da Zona Sul carioca percebe que explodiu o número de pessoas deitadas sobre caixas de papelão e cobertas com trapos.
Mães com crianças, implorando aos passantes que lhes comprem um pacote de balas, homens pedindo que se lhes ajude a comprar uma refeição.
Não é novidade, não mesmo, mas era uma imensa e feia ferida deste país que vinha cicatrizando lentamente, como sempre é com as grandes chagas.
De alguma forma, timidamente, a sociedade, através do Estado – e, mesmo eu não sendo seu fã, admito, das ONGs – dava-lhes o remédio do trabalho e da consciência de que, sim, imundos, maltrapilhos, miseráveis, e, ainda que, como escreveu Drummond, estejam “vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem”,  continuam sendo seres humanos.
Desde o inverno da selvageria, já não são. São, oficialmente, va-ga-bun-dos, suspeitos da droga e do furto, quando não apenas incômodos a nos pedir um cigarro ou uma moeda.
Para prová-lo, dizem que só querem dinheiro, comida, sexo e bebida. Tudo o que nós, os “normais”, afinal, queremos, é o seu pecado.
Inclinam-se em ângulos as soleiras, para impedir que se sentem junto as vitrines do comércio, espetam-se com pedras ou tapam-se com blocos as pontes, para que não se deitem. Nem isso, o descanso precário e duro do cimento, podem ter.
Inútil, eles estão por aí, e por aí mais numerosos estarão a cada dia em que continuarem a dizer que este país precisa empobrecer para crescer, precisa viver pior para poder, num imaginário dia distante, viver melhor, precisa ser selvagem para ser seguro.
Assim como não os matarão, não matarão o sentimento que nos civiliza, o da solidariedade e o de sermos capazes de sofrer com o sofrimento alheio, como sofreu o adolescente que tirou o agasalho que usava num junho como este, há mais de 40 anos, para dar a um homem velho que tiritava de frio tendo apenas um muro frio proteger-lhe as costas. Perdeu a única vaidade de roupa que já teve, mas ganhou o que lhe aqueceria o peito por toda a vida.
Olhem a foto da Folha, que reproduzo.  São como corpos jazidos de uma guerra, de uma chacina.
Para muitos, com o defeito de estarem vivos, pois mortos atrapalhariam menos o  sossego público.
Mas não estão.
Um dia, deixaremos de ser maus e brutos, e meu país dará, de novo, a mão para que seus filhos se levantem.
Do Tijolaço

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