O Judiciário e o
Ministério Público não barraram as ofensas contra a democracia porque eram
parte da conspiração.
Foto de Anderson Riedel/
VPR
A estratégia do golpe
institucional, com papel ativo do baixo clero do Legislativo e de instâncias
judiciárias (o juiz de primeira instância Sérgio Moro e o Supremo
Tribunal Federal), e ação publicitária dos meios de comunicação tradicionais
(TV Globo e a chamada grande imprensa) começou a ser desenhada no chamado
Escândalo do Mensalão. Um ano antes das eleições presidenciais que dariam mais
um mandato ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o país foi sacudido por
revelações de que o PT usara dinheiro de caixa dois de empresas para
pagar as dívidas das campanhas das eleições municipais do ano anterior, suas e
de partidos aliados. O tesoureiro do partido, Delúbio Soares, era o agente do
partido junto a empresários e a uma lavanderia que até então operava com o PSDB
de Minas, a agência de publicidade DNA, de Marcos Valério. Delúbio tornou-se
réu confesso. Outro dirigente do partido, Sílvio Pereira, foi condenado por
receber um Land Rover de presente de um empresário.
Em torno do episódio –
crime de captação de caixa dois pelo partido que está no governo e recebimento
de presentes em troca de favores – se iniciaria a maior ofensiva institucional
contra um partido político jamais ocorrida em períodos democráticos do país.
Toda a máquina midiática tradicional foi colocada a serviço de provar – com
fatos amplificados, versões ou falsificações – que o governo de Lula estava
corroído pela corrupção, que o PT aparelhara a máquina pública para auferir
ganhos desonestos para o partido ou para os seus aliados, que o governo
corrompera os aliados – ironia das ironias, os “corrompidos”, os partidos da
base aliada, eram o PMDB, o PTB, o PP, o PR.... – com mesadas para os
parlamentares, destinadas a garantir as maiorias em plenário necessárias para
aprovar matérias de interesse do Executivo.
O termo “mensalão” foi
criado nessa jogada de marketing, destinada a transformar um escândalo de caixa
dois, no qual todos os partidos estavam envolvidos (a lavanderia de Marcos
Valério não tinha restrições ideológicas à adesão de qualquer um deles), em um
modo peculiar de corrupção do PT, a compra direta do parlamentar, sem que em
nenhum momento houvesse sido provado o pagamento regular a deputados e
senadores da base aliada. Afinal, o dinheiro da lavanderia de Marcos Valério
foi direto para o caixa dois de outros partidos políticos, no período
pós-eleições municipais – e o “denunciador” do mensalão, o presidente do PTB,
Roberto Jefferson, chegou a confessar, quando se viu em tribunal, que
dinheiro era para pagamento de dívidas de campanha.
Para ser corrupção, todavia, era preciso que se caracterizasse o dinheiro do caixa dois como originário dos cofres públicos.
O Ministério Público,
então presidido pelo procurador Antônio Fernando de Souza, hoje advogado do
deputado tardiamente afastado da presidência da Câmara, Eduardo Cunha,
inventaria a ficção de um dinheiro desviado da empresa Visanet pelo diretor de
Marketing do Banco do Brasil, Henrique Pizzolatto. A Visanet era uma empresa
privada, do grupo internacional Visa, e esse dinheiro foi tratado indevidamente
como produto de desvios do Banco do Brasil, estatal, num julgamento na maior
instância judiciária do país, que não poderia se dar ao luxo de um erro deste
tamanho. Pizzolatto não tinha autonomia para assinar uma única ação de marketing
sozinho. A “prova” que Souza apresentaria contra ele, aceita pelo relator
Joaquim Barbosa, do STF, foi assinada por outras três pessoas e submetida a um
comitê, e depois à diretoria de um banco – a ação publicitária, ao final, fora
autorizada por mais de uma dezena de pessoas. Não existia possibilidade de que
Pizzolatto tivesse desviado o dinheiro: para isso, teria que ter mais de
dez cúmplices, e ainda assim atuaria sobre dinheiro privado, que não era do
Banco do Brasil.
O Supremo Tribunal Federal, nas vésperas da eleição de 2014, julgou midiaticamente o caso e perpetrou barbaridades jurídicas nunca antes vistas na história desse país. O relatório do ministro Joaquim Barbosa transformou um crime de captação de caixa dois em desvio de dinheiro público, e jogou as provas de que o dinheiro definitivamente não havia sido desviado do Banco do Brasil para um inquérito paralelo. Por fim, decretou segredo de Justiça. Sequer os advogados de defesa tiveram acesso a elas. Também não tiveram acesso a provas da origem do dinheiro lavado por Marcos Valério: a transferência de fartos recursos do caixa de um empresário interessado em decisões de governo (que não foram tomadas, inclusive por oposição do ministro José Dirceu, condenado sem provas), repassados aos partidos da base aliada. O empresário em questão chegou a aparecer no início do escândalo na mídia e sumiu como um fantasma das páginas dos jornais e dos inquéritos policiais e judiciais.
O Supremo Tribunal Federal, nas vésperas da eleição de 2014, julgou midiaticamente o caso e perpetrou barbaridades jurídicas nunca antes vistas na história desse país. O relatório do ministro Joaquim Barbosa transformou um crime de captação de caixa dois em desvio de dinheiro público, e jogou as provas de que o dinheiro definitivamente não havia sido desviado do Banco do Brasil para um inquérito paralelo. Por fim, decretou segredo de Justiça. Sequer os advogados de defesa tiveram acesso a elas. Também não tiveram acesso a provas da origem do dinheiro lavado por Marcos Valério: a transferência de fartos recursos do caixa de um empresário interessado em decisões de governo (que não foram tomadas, inclusive por oposição do ministro José Dirceu, condenado sem provas), repassados aos partidos da base aliada. O empresário em questão chegou a aparecer no início do escândalo na mídia e sumiu como um fantasma das páginas dos jornais e dos inquéritos policiais e judiciais.
Com a opinião pública
dominada por uma campanha diária de nove anos, o STF legitimou sua decisão de
avalizar as conclusões de Barbosa, acatou o estranho instrumento do “domínio do
fato” e, a partir disso, a pretexto de ouvir a voz das ruas, aceitou as
barbaridades que seriam praticadas pelo Ministério Público e pela justiça de
primeira instância na Operação Lava Jato, nos últimos três anos.
O STF transformou um
crime de caixa dois em crime de corrupção, de formação de quadrilha, etc. etc.
sem provas. Dos réus que foram condenados, alguns cometeram crimes, mas não os
que os levaram para a prisão; outros eram inocentes de quaisquer crimes e foram
condenados assim mesmo. Poucos foram condenados por crimes que efetivamente
cometeram.
A Agência DNA foi punida
por atuar como lavanderia do PT e dos partidos aliados, mas tardiamente responsabilizada
pelo Mensalão do PSDB (que vai deixar todos os implicados soltos até a
prescrição do crime, o mesmo que levou o PT e seus aliados à cadeia). O
deputado José Genoíno, então presidente do PT, foi preso por um empréstimo
efetivamente feito pelo partido e quitado no prazo estipulado em contrato.
Dirceu foi eleito o vilão
nacional e encarcerado – e de novo encarcerado no Lava Jato – sem nenhuma prova
contra si. E Pizzolatto, depois de uma fuga sensacional, amarga cadeia porque,
junto com um comitê de dezenas de pessoas, autorizou uma campanha publicitária
do Banco do Brasil paga pela Visa Internacional. Alguns membros do mesmo comitê
respondem a um processo na primeira instância que está esquecido na gaveta de
um juiz da capital federal.
Desde então, o Ministério
Público Federal e o Supremo Tribunal Federal se constituem em peças
fundamentais nas articulações contra os governos petistas, iniciadas em 2005 e
que tiveram desfecho no golpe institucional deste 2016. Eduardo Cunha e Michel
Temer não existiriam sem a cumplicidade das duas instituições e a inexplicável
ingenuidade do PT: o mesmo partido que em determinado momento se dispôs a jogar
com as armas da política tradicional, indo à cata de dinheiro de caixa dois das
empresas para financiar campanhas eleitorais, não entendeu a natureza da elite
que o financiava, nem a impossibilidade de acordo com a política tradicional e
com instituições de vocação conservadora que mantiveram seu perfil conservador
e corporativo, apesar de seus membros terem sido majoritariamente escolhidos
pelos presidentes petistas.
O PT não entendeu que
jogava as suas fichas, a nível institucional, numa política de conciliação de
classes num quadro onde as próprias políticas do governo davam as bases para
uma acirrada luta de classes, que se tornou explícita quando o golpe começou a
mostrar sua cara. Essa foi uma contradição inerente aos governos petistas. Na
campanha eleitoral de 2014, a presidenta Dilma Rousseff venceu no segundo turno
porque rapidamente as forças de esquerda se articularam em torno dela, em
reação à onda de comoção criada pela direita, que se utilizou do clima
proporcionado pelo julgamento político levado a termo pelo Supremo Tribunal
Federal (STF) poucos meses antes do início do processo eleitoral, no chamado
caso do mensalão; e pela entrada em cena do juiz de primeira instância Sérgio
Moro que, aproveitando-se das licenças jurídicas a que se permitiu o STF em
2013, fez o seu próprio tribunal político, fechando o cerco ao PT por um
esquema de corrupção na Petrobras que – basta ler com atenção as delações
premiadas – era enraizado na empresa e mantinha em diretorias protegidos de
partidos que estavam aliados aos governos petistas depois de 2002, mas
igualmente aos governos anteriores, do PSDB e do PMDB e do governo Collor.
Já são 11 anos de
massacre, com armações com grande similaridade. O Ministério Público encontra
um escândalo qualquer e começa a investigar, considerando provas basicamente de
um lado. Sem consistência para pedir um inquérito, vaza os dados para um órgão
de imprensa, que os publica como grande escândalo, desconhecendo o fato de que
as provas não existem. Imediatamente, a matéria do jornal, baseada em
vazamentos do próprio MPF, vira o indício que o MPF usa para pedir ao juiz – a
Moro, ou ao STF, ou a algum outro – para abrir o inquérito. No caso de
Moro, seguem-se prisões sem base legal e coações à delação premiada.
Chovem no Youtube
reproduções de interrogatórios presididos pelo próprio juiz Moro onde ele deixa
claro ao interrogado – normalmente um velho com problemas de saúde -- que será
libertado apenas se delatar; e de advogados protestando contra ele por não
considerar sequer uma prova apresentada pela defesa antes de condenar um
implicado. Nesses vídeos, é claro que Moro está investido da intenção de
condenar antes de ouvir a defesa. Para ele, não existem inocentes em um campo
político. No outro campo político, suas intenções são dóceis. O justiceiro é
bastante permissivo com o campo político da direita.
Nada justifica que um
juiz de um tribunal de exceção sobreviva numa democracia com amplos poderes,
acima daqueles que a Constituição lhe confere, sem a aquiescência da maior
instância judiciária. Moro existe e faz o que quer porque o sistema jurídico
está contaminado pelo partidarismo. Moro não existiria sem um Barbosa que o
precedesse. Moro não existiria sem o ministro Gilmar Mendes, que impunemente
transformou o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) em palanques contra os governos do PT. Não existiria sem o ministro Dias
Toffoli, que se tornou moleque de recados de Mendes; sem a tibieza das duas
ministras mulheres; sem o conservadorismo ideológico de Teori Zavascki (que
contamina o seu discernimento jurídico); sem a falsa objetividade jurídica de
Celso Melo; sem a frouxidão de Edson Fachin; sem a excessiva timidez de Ricardo
Lewandowisk. A Justiça não evitou o golpe porque é parte do golpe. O Ministério
Público não reagiu ao golpe porque era um dos conspiradores.
Do GGN