sexta-feira, 2 de junho de 2017

Ministro do STF e Presidente do TSE Gilmar Mendes critica PGR sobre foro privilegiado, mas omite o Senado

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, aproveitou a sessão de julgamento do foro privilegiado para criticar o Ministério Público Federal (MPF) e disse que a Corte é alvo de "picaretagem". Mas nada falou sobre a aprovação pelo Senado Federal do projeto de mesmo tema, em um texto que, por outro lado, blinda congressistas de prisões.

A Casa Legislativa aprovou em segundo turno a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que coloca o fim à exclusividade de parlamentares e membros do Executivo de serem julgados diretamente pela última instância, imediatamente após o STF dar início ao julgamento de mesmo tema.

A medida estava paralisada no Senado há quase um mês para a simples votação do segundo turno, antes de ser encaminhada à Câmara dos Deputados. Mas os senadores decidiram submeter à análise apenas nesta quarta-feira (30), quando a Suprema Corte também decidiu começar a julgar o caso.

De autoria do senador Alvaro Dias (PV-PR), o texto enfrentava resistência entre as principais lideranças da Casa sobre o trecho que extingue por completo o foro para as infrações penais comuns, como corrupção, homicidios, furtos, e lesão corporal, por exemplo. Por isso, a PEC recebeu diversas emendas de senadores, visando modificar o texto original, no início de abril.

O texto foi aprovado em primeiro turno no dia 26 de abril. A intenção dos senadores era adiar a votação, mais uma vez. Mas após o STF dar início ao julgamento do mesmo tema, ameaçando colocar abaixo os itens de interesse dos parlamentares, o cenário mudou na Casa Legislativa.

Manifestando seu posicionamento logo após o pedido de vista na segunda sessão plenária, nesta quinta, Gilmar Mendes defendeu a atuação da última instância nos processos que envolvem políticos com foro privilegiado, mas aproveitou para criticar o Ministério Público, sem sequer mencionar o texto liberado pelo Senado.


A Procuradoria-Geral da República decidiu pedir uma outra visão do STF, a aplicação de foro privilegiado apenas quando os crimes são cometidos durante o mandato e relacionados ao cargo que ocupa o réu e/ou investigado. Para o ministro, Rodrigo Janot teve uma mudança de postura.

"Se o Ministério Público pediu um inquérito e depois pediu o arquivamento, e nós fazemos assim, agora ele está dizendo que nós decidimos favoravelmente porque não foram transformados em denúncia. Quando na verdade deveria ter dito é que o Ministério Público talvez pediu irresponsavelmente a abertura de inquérito. Veja a que picaretagem o Supremo está submetido", disse.

Gilmar disse que o chamado "foro privilegiado" é tratado como se "fosse o responsável pelas mazelas nacionais" e que, a seu ver, há um "populismo constitucional" para se tratar o tema. "E tem uma concepção autoritária e nazista, porque acha que tribunal bom é tribunal que condena. Irresponsáveis", criticou.

Entenda o caso no STF

O tema está sendo discutido pelo Supremo Tribunal Federal porque está em julgamento o processo contra o ex-deputado federal Marcos da Rocha Mendes, que responde pela prática de crime de compra de votos. O suposto delito teria ocorrido em 2008, durante as eleições municipais. Marcos Mendes foi eleito prefeito e o caso começou a ser julgado em 2013 pelo Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro.

Mas, após o fim do mandato de Rocha Mendes, a mesma ação voltou à Justiça Eleitoral. No ano seguinte, em 2015, o ex-prefeito era suplente de seu partido para a Câmara dos Deputados e, com o afastamento de titulares, passou a exercer de novo a função política, como deputado. Seu processo, então, foi levado ao Supremo. Em 2016, ele foi eleito novamente prefeito de Cabo Frio, e renunciou ao mandato de deputado.

As mudanças de foro que prejudicaram o julgamento do processo contra Marcos da Rocha Mendes, provocando o risco de prescrição da pena, levaram Barroso a remeter uma questão de ordem ao Plenário para a possibilidade de restringir a adoção de foro privilegiado aos crimes cometidos no cargo e durante o exercício da função política. 

Do GGN

Aécio Neves acaba de ser denunciado pelo PGR Rodrigo Janot por corrupção e obstrução judicial


O senador afastado Aécio Neves (PSDB-MG), responsável pelo golpe que arruinou a economia e a imagem do Brasil, acaba de ser denunciado pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, por corrupção e obstrução judicial.

De acordo com as delações da JBS, Aécio recebeu propinas de R$ 2 milhões, em troca de benefícios no governo de Michel Temer.

A irmã de Aécio, Andrea Neves, o primo Frederico Pacheco e o advogado Mendherson Souza Lima também foram denunciados, mas apenas por corrupção passiva. Os três foram presos na Operação Patmos, deflagrada em 18 de maio.

A denúncia fortalece pedido de prisão que poderá ser julgado já na próxima semana.

Leia mais na reportagem da Agência Brasil:

Janot denuncia Aécio Neves ao STF por corrupção e obstrução da Justiça

André Richter - O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, apresentou hoje (2) denúncia ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra o senador afastado Aécio Neves (PSDB) pelos crimes de corrupção e obstrução da Justiça. Na denúncia, a PGR acusa Aécio Neves de solicitar R$ 2 milhões ao empresário Joesley Batista, um dos delatores da JBS.

A irmã do parlamentar, Andrea Neves, o primo de Aécio, Frederico Pacheco, e Mendherson Souza Lima, ex-assessor do senador Zezé Perrela (PMDB-MG), também foram denunciados. Todos foram citados na delação premiada da JBS. De acordo com o procurador, o recebimento do valor teria sido intermediado por Frederico e Mendherson, que teria entregue parte dos recursos em uma empresa ligada ao filho de Perrella. A denúncia está baseada em gravações feitas pela Polícia Federal, durante uma ação controlada.

A denúncia será analisada pelo ministro Marco Aurélio e julgada pela Primeira Turma do Supremo, composta pelos ministros Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux. A data ainda não foi definida.

Sobre a acusação de obstrução da Justiça, Janot sustenta na denúncia que o senador afastado tentou embaraçar as investigações da Operação Lava Jato, na qual também é investigado, ao "empreender esforços" para interferir na distribuição dos inquéritos dentro da Polícia Federal. Ao fim, o procurador solicitou ao STF que Aécio e sua irmã sejam condenados ao pagamento de R$ 6 milhões por danos decorrentes dos casos citados de corrupção.

A defesa do senador afastado têm alegado que o pedido de dinheiro a Joesley Batista, feito em conversa gravada pelo delator, foi um empréstimo. Em vídeo divulgado recentemente, Aécio disse que o valor se referia à venda de um apartamento da família dele a Joesley. Segundo Aécio, a partir de então, Joesley armou uma situação na qual o empréstimo de R$ 2 milhões pareceria um ato ilegal. O senador nega que tenha havido qualquer contrapartida pelo empréstimo, descaracterizando atos de corrupção.

247

Grampeados Aécio e Moreira Franco negociavam entrevista para Temer na TV Record em troca de patrocínio da CAIXA

Foto: Beto Barata/PR 
Diálogos interceptadas entre o senador afastado Aécio Neves (PSDB-MG), o ministro Moreira Franco e Douglas Tavolaro, vice-presidente de jornalismo da TV Record, indicam a negociação de uma entrevista com o presidente Michel Temer em troca do atendimento de demandas da emissora pela Caixa Econômica Federal.

Em umas das conversas, Aécio cobra Moreira Franco para “entrar no circuito com o cara da Caixa”, ao que o ministro diz que já havia encaminhado a demanda da emissora.

Segundo reportagem do BuzzFeed, a Caixa confirmou que Moreira Franco pediu um avalição sobre a possibilidade de patrocínio para a Record, “que não foi atendido  por não se enquadrar na política de patrocínio do banco”.
Os grampos foram feitos no dia 19 de abril, no mesmo mês que o presidente Michel Temer fez uma série de entrevista para diversas redes de televisão. Entretanto, a Record não entrevistou o peemedebista.

A emissora nega que tenha condicionado a entrevista a um patrocínio da Caixa e diz que ela não ocorreu porque Temer não aceitou falar antes com a Record. Já o Palácio do Planalto diz que não houve pedido de entrevista e também afirma desconhecer que Moreira Franco tratou de demandas da Record no banco.

Aécio Neves, por sua vez, repetiu a resposta que deu em relação a outros grampos, afirmando que são conversas particulares que não tem “qualquer relação com fatos investigados”.

Leia mais e ouça as gravações abaixo:

Do BuzzFeed

Grampos indicam que TV Record negociou entrevista com Temer em troca de patrocínio na Caixa

Ouça o diálogo de Aécio Neves com Douglas Tavolaro, executivo da Record: 19 de abril de 2017, 19h57.

Tavolaro - O Moreira me ligou no celular duas vezes. Eu já deduzo qual seja o assunto. Antes de falar com ele, eu queria alinhar com você para entender. Ele ligou para o nosso presidente também e pediu para gente tentar colocar nosso número 1 numas entrevistas. Eles estão agora com essa estratégia de comunicação, de colocá-lo para falar. Eu acho que ele me ligou para me pedir isso. E eu estou muito sem graça de falar com ele. Eu vou ter que passar isso para cima e a situação está parada. Eu não sei você quer ajudar a intermediar isso, ligar para ele..

Aécio - Eu até te mandei uma mensagem ontem.

Tavolaro - Que você ia chamar o pessoal lá

Aécio - É, falei com ele próprio, que isso era um absurdo. Ele até esculhambou o cara, falou que era um idiota, que ia chamar ele aqui hoje ainda para dar o comando. Eu como tinha esse evento aqui, eu acabei não indo a Brasília. Você não tem como empurrar um pouquinho ou pelo menos ouvir o que ele tem para dizer...

Tavolaro - Eu só não dou retorno porque se eu retornar, ele vai pedir.

Aécio - Vai ficar chato para você

Tavolaro – O presidente não vai conseguir fazer. Eu já tenho o retorno, já. Entendeu? O nosso presidente [da Record] aqui não vai conseguir fazer. Só tem um jeito de sair. Se tiver uma coisa, entendeu? Eu acho inteligente a estratégia deles, diminui o impacto.

Aécio - Deixa eu tentar mesmo por telefone intermediar novamente isso e te ligo.

Tavolaro – Se você quiser, na minha opinião, fala como desentendido para saber.

Aécio - Com o próprio Moreira, ne?

Tavolaro - É, como uma intermediação. Eu nunca falei com ele até agora.

Aécio - Eu acho até que nos fortalece realmente mutuamente. Eles ficam sabendo que o canal é aqui e me dá mais força para resolver. Pode ser uma boa estratégia nossa.

O senador mineiro não demora em fazer a “intermediação”. Após oito minutos, ele liga para Moreira Franco.

É nesse momento que fica claro que havia um interesse da Record dentro da Caixa Econômica. Aécio menciona, também, a anuência de Temer.

Ouça o diálogo de Aécio com Moreira Franco sobre Record: 19 de abril de 2017, 20h05.
Aécio - Deixa eu te falar, Moreira. É uma questão que corre no paralelo das questões que você está cuidando. Eu cheguei a falar com o presidente algumas vezes do assunto da Record. Você está a par disso? Do assunto do... número 1 lá.

Moreira - Tratei disso hoje. Já liguei para o Douglas e não consegui falar ainda. Liguei três vezes. Você que é amigo dele…

Aécio - É aquelas coisas que não precisa falar por telefone. Mas você entrou nesse circuito com o cara da Caixa?

Moreira - Já entrei. Entrei hoje. Peça para ele me ligar.

Aécio - Isso vale a pena.

O senador em seguida retorna para Douglas Tavolaro. Aécio diz que Moreira Franco já havia encaminhado o interesse da Record na Caixa e reproduz, para o executivo da emissora, a conversa que teve minutos antes com o ministro.

Esse áudio, mais uma vez, indica que havia a ordem dos chefes do executivo da Record em negar o pedido do ministro, embora Douglas repita que a estratégia do Planalto, numa referência às entrevistas de Temer, era importante.

Ouça o diálogo de Aécio Neves com Douglas Tavolaro, executivo da Record: 19 de abril de 2017, 20h07.

Aécio - Liguei para ele (Moreira) direto e falei que eu to num constrangimento enorme. Aí eu inverti e falei “liguei para o pessoal lá, até para pedir uma gentileza… dos jornalistas e ele (Douglas Tavolaro) me cobrou com todas as letras, não teve nenhuma resposta ainda de um assunto que eu tratei direto com o presidente e eu imagino que o presidente tenha tratado com você (Moreira) lá na Caixa e não tiveram uma resposta. Aí ele (Moreira) falou 'é sobre esse assunto que eu quero falar com ele também'. Isso andou? Aí ele (Moreira): andou, tentei falar com ele hoje duas ou três vezes e não consegui. Peça para ele (Douglas Tavolaro) me ligar. E brincou, “vi que ele (Douglas Tavolaro) é seu amigo”. E é mesmo, e está constrangido de ligar para você (Moreira), você pedir outra coisa e ele (Douglas Tavolaro) ia ter que te dizer não. Ele (Douglas Tavolaro) recebe ordens. Tem toda a boa vontade, mas não é o dono. Eu estou com esse compromisso, estou constrangido com eles. Aí ele (Moreira) falou, 'peça por favor para ele (Douglas Tavolaro) me ligar'. Deixa passar hoje para não parecer tanta ansiedade. E ai você (Douglas Tavolaro) liga amanha de manhã, fala que recebeu o recado. E aí me liga em seguida para ver se é mais uma embromação e se eles realmente entraram no circuito. Eu disse a ele (Moreira Franco) o seguinte: é o assunto Caixa, o assunto paralelo, que nada tem a ver com o que você está tratando.

Tavolaro - Ele tá juntando num pacote. Não tem problema. Se ele juntar o pacote e sair, eu agito o nosso cá, entendeu? Porque eu acho importante a estratégia dele.

Aécio - Eu acho bom que a gente faça esse canal porque eu fico com mais autoridade, inclusive do número 1. E ele vai saber que as coisas só vão andar se for por aqui. Porque ele não vai cobrar, ele vai ficar naquela de que está fazendo para todo mundo. E eu só tenho esse compromisso com você, tenho como priorizar com mais rigor.

Tanto o Palácio do Planalto quanto a TV Record apresentaram versões contraditórias sobre o episódio.

A emissora negou que tenha condicionado entrevistar Temer em rede nacional a qualquer benefício na Caixa Econômica Federal, "um cliente histórico". Segundo a emissora, a entrevista não aconteceu porque o Planalto não aceitou que o presidente falasse antes com a Record.

O Planalto contou uma história diferente. A assessoria de Temer diz que não houve entrevista do presidente à Record porque nunca houve pedido da emissora.

Ao contrário do que diz a Caixa Econômica Federal, que afirma que o pedido de patrocínio da emissora chegou por meio de Moreira Franco, a Presidência também alegou "desconhecer" que o ministro da Secretaria de Governo tenha tratado de demandas da Record no banco.

Leia a íntegra das respostas enviadas ao BuzzFeed Brasil:

Record:

“Houve uma solicitação de entrevista com o presidente Michel Temer e a Record TV queria ter a exclusividade e prioridade, naquele momento, e não foi atendida. O Vice-Presidente de jornalismo, Douglas Tavolaro, trabalhava com suas fontes para conseguir as informações e a primazia. O Planalto estava decidindo, através de outra estratégia, de colocar o Presidente para falar, quase simultaneamente, com todos os veículos, como de fato aconteceu com várias emissoras de TV, rádio, jornais e sites. Por mais que o vice-presidente de jornalismo da Record TV tenha elogiado a estratégia, ele defendeu, junto a suas fontes, o desejo de falar primeiro e exclusivamente com o Presidente. Como o Palácio do Planalto optou por outro formato, a Record TV decidiu não fazer a entrevista. Com relação a Caixa Econômica Federal, é um cliente histórico da emissora e o Departamento Comercial da Record TV trata diretamente com a Instituição e seus representantes publicitários, como acontece em qualquer outro veículo de comunicação. O sigilo das relações entre um jornalista e sua fonte são resguardadas pela Constituição Brasileira. O artigo 5º inciso XIV da Constituição diz que “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”.
Comunicação Record TV
Palácio do Planalto:

Em e-mail ao BuzzFeed Brasil, Presidência da República informou que não tem conhecimento de Aécio ter pedido ao presidente Michel Temer em favor da Record na Caixa Econômica, assim como sobre a atuação do ministro Moreira Franco para defender os interesses da emissora no banco estatal.
Questionado sobre por que o presidente Michel Temer não deu entrevista à Record em abril, o Palácio do Planalto respondeu apenas: "Não houve pedido."
Aécio Neves:

"São conversas particulares, descartadas pelas autoridades exatamente por não terem qualquer relação com fatos investigados. Os mais de 1 mil diálogos privados equivocadamente distribuídos a jornalistas tiveram seu sigilo novamente determinado pelo ministro Fachin, em razão das garantias constitucionais dadas a todos os não investigados. Não cabe, portanto, comentários sobre os mesmos."
Assessoria do senador Aécio Neves
Caixa Econômica Federal:

"O ministro Moreira Franco solicitou à CAIXA uma avaliação a respeito da possibilidade de patrocínio ao Grupo Record, que não foi atendido por não se enquadrar na política de patrocínio do banco."

Do GGN

Urariano Mota, O amor antes do ponto

Há quem pense que a carência de tudo era a causa “determinante”, para usar uma palavra das discussões da época, a causa fundamental para o que amávamos então. Assim como a economia determinava a história, a política, a sociedade, enfim, todo o universo material e espiritual, porque assim nos teria ensinado Marx – e sempre conforme o jargão simplificador das nossas encarniçadas discussões -, assim também a nossa carência de afeto seria a essência do que amávamos. Quando ouvíamos Tenderly com Ella Fitzgerald, ou os agudos do pistom de Louis Armstrong, quando ali nos encantávamos com a música, que nos deixava como almas penadas de carinho a flutuar, isso devia ser consequência do determinante, o coração que era só fome. Escapava de nós, digamos, a dialética do subjetivo e do objeto, para usar uma categoria mais filosófica. Mas não. Penso que o surgimento de Eva estava além dos argumentos da simplificação e do sofisticado. Stars fell on Alabama, penso, cantava na surdina. Desde a primeira noite, quando não foi possível tê-la plena, naquela agonia em pé, encostado à parede de tabique. Amor apressado, veloz, porque lá fora me esperava para ter uma dormida Olavo Carijó. Maldito. Por que sempre haverá um dever na hora da mais sublime felicidade? É como uma punição, um freio ou uma interdição dos poderes ocultos do sagrado evangelho, de Deus, não se poder abandonar ao prazer, ao amor livre e liberado. É como se não pudesse haver um justo e honrado momento em nossas vidas para um Summertime. Numa manhã, acordar cantando e abrir as asas, voar pelo céu, mas até essa manhã não há nada que possa nos ferir, será? Ainda assim, naqueles minutos concedidos pela carência, guardo a sua delicadeza e graça ao tocar a porta do quarto onde eu ainda estava sozinho. Tocou a porta, que cedeu. Não julgava que ela viesse, não acreditava que o convite feito numa voz cheia da coragem dos bêbados, falada entredentes na pia do corredor, “deixo a porta encostada”, numa ousadia que não sei onde fui buscar, mas sei, foi a ousadia da necessidade, eu duvidava que ela aceitasse o convite feito sem as flores da corte cavalheiresca. Gutural, com a falta de educação dos brutos: “deixo a porta encostada”. Apesar disso, ela acedeu, acendeu e ascendeu para mim.

Quando a porta se abriu, Eva apareceu com a camisola rósea. Uma camisola rósea, eu vi, que me pareceu ter o melhor gosto da noite, e nela estava a mulher de rosto redondo, suave, cabelos claros, e um sorriso entre quem se desculpa e se doa. Se eu fosse um homem livre, teria coberto o seu rosto e pescoço com uma torrente de beijos, como primeira bem-vinda. Na segunda, num espaço de minutos, teria descido para os seios, para o ventre, para o seu sexo úmido, que me prendia na mais feroz indecisão. Devia ir à sua boca de lábios superiores, no alto, ou saudá-la nos superiores da vulva? Se eu não fosse o escolhido para abrigar um companheiro perseguido, se eu fosse apenas um jovem livre e solto no mundo, sem referências, como um astronauta longe da Terra, no espaço das trevas, eu levaria a estrela para a minha cama, o ninho sobre o capim, e lá seríamos o melhor encontro de um jovem sozinho com o carinho da fêmea surgido.

É ocioso, além de triste, falar do que poderia ter sido ou feito na primeira noite. Chega a ser mórbido, de sabor meio amargo, falar das possibilidades que não se cumpriram. Então me dirijo ao próprio instante que foi e se foi, apesar do compromisso abaixo da escada, lá fora. Abstraio num esforço os impedimentos que pesavam sobre aqueles minutos. Tento abstrair, porque nos abraçamos em pé, nos abrasamos sem um instante de descanso, penetrei-a enquanto era penetrado pelo calor dos seios, da sua face, das suas coxas, que se levantavam para mim num esforço de operação acrobática. Aquela cena escandalosa do cinema em que um casal urra e resfolega alto, como se o amor precisasse de sonoplastia, não se deu. Houve uma devoração em silêncio. Com gestos sufocados, ou espasmos de pernas sem voz, numa compreensão mútua de que o instante único fosse o mais íntimo segredo. Naqueles minutos em pé, sentidos numa eternidade do tempo do incêndio, penso que tivemos a intuição de que a experiência era irrepetível. Penso também que o reflexo do raio, da luz de flash que ilumina o artilheiro no futebol na pequena área, e que ele não perde, nos tomou naquela noite. Diferente de quando tantas vezes somos acometidos por reflexos falhos, retardados, que para serem reflexos, por se deterem no exame do visto, perdem a sua oportunidade. Do gênero da moça que nos envia de repente um beijo antes de fechar o portão da sua casa, e de tanta surpresa, ao tentarmos responder já será tarde, porque ela fugiu, arrependida do impulso generoso. Assim como tantos carinhos súbitos, entrevistos na forma de bens repentinos, que nos alcançam, mas atentos à conveniência, aos reparos dos burros e malditos costumes, deles não tomamos posse. De tão fugazes, nem os detemos, porque não realizamos o breve na ocasião da brevidade, como um poema que não foi possível porque seria uma haicai, ali não. Aquela primeira noite com Eva, ao contrário de toda experiência, possuiu a felicidade, em sonho, do que nunca mais seria repetido. Creio ter ficado com cabelos seus em meu corpo e na boca. É claro, disso não tenho a consciência. No máximo, a intuição. No mínimo, a obediência à necessidade. E aqui a memória se confunde com outros encontros em seu caminho. Teriam sido os cabelos de Eva que perduraram em outras mulheres, como uma pista que nos acompanha, ou terão sido os seus que resistem na lembrança? 

O fato é que mais sobrevive e marca a gente o abrasar, os beijos, o seu rosto e cabelos, os seus lábios, o pescoço, os seios, a camisola que era só a cortina bela, transparente do palco. Aquela cor rosa, na luz frágil da lâmpada incandescente que deveria ser de 40 watts, dá a cor do ambiente do quarto, como se as paredes se cobrissem por ela. Eva, a sua camisola, em pé, com os olhos que choravam, descia para a melhor posição do coito. Naquela hora, não havia ainda a intimidade para que ela pegasse o meu sexo e melhor o dirigisse para dentro de si. Era como se ela o evitasse, santa entre as santas da delicadeza, ainda que o buscasse para melhor acomodação no seu íntimo. As suas bochechas eram um quadro ainda não pintado da madona. E se a memória filtra para o seu rosto, seios e pescoço, como se fosse anfíbia, sereia, é porque seleciona o mais agradável, que não era no instante o mais buscado, o fogo do vai e vem da penetração.  Por quê? Atento à hora do ponto com o companheiro lá embaixo, mas sem perder o momento tão raro, não houve a felicidade do que seria e deveria ser o clímax. O clímax foi antes, em mais de um sentido. Nos momentos que antecederam o chamado gozo seminal é que se deteve a felicidade. Depois, porque depois seria o cumprimento do dever, e se não o cumprisse não seria um homem, fugiu a alegria. Para ser homem no sentido moral, deixei de ser um, no sentido restrito de macho.

No entanto, o desastre que me dirigiu para o ponto com Olavo Carijó não destruiu a relação com Eva. Tanto no significado dos dias que se seguiram na pensão, quanto no da recordação. Aquilo foi bom, aquela primeira noite foi maravilhosa, eu a teria repetido, se pudesse, mesmo com o cumprimento do dever lá fora. Houve um encanto, um prazer que não cessa, que tem crescido porque ali houve uma ação que jamais seria repetida, ou seja, o encontro da necessidade com o seu impedimento. O limite, no limite do tempo mais precioso em que o jogador lampeja o gol e não o perde. O flash repentino em que se vislumbra o amor. E dele nos penetramos, numa ação rara de força e ousadia. Como negá-lo pela frustração do seu clímax? O ponto mais alto foi antes, como uma vida invertida em que o gozo da maturidade foi o choro do bebê. E por obediência ao gênero do que houve, fecho o capítulo antes do seu fim.  

*Do romance “A mais longa duração da juventude”. Link , AQUI.

Do GGN/Vermelho

Jeferson Miola: Aécio Neves debocha do Supremo

Aécio Neves exibiu-se no facebook com a fotografia da “reunião” que manteve com senadores tucanos na sua residência em Brasília.

Ele assim descreveu o evento: “Reuni-me na noite desta terça-feira, 30/05, com os senadores Tasso Jereissati, Antonio Anastasia, Cássio Cunha Lima e José Serra. Na pauta, votações no Congresso e a agenda política”.

A reunião teve claríssimos propósitos parlamentares e partidários – segundo o próprio Aécio, “Na pauta, votações no Congresso e a agenda política”. O evento caracteriza a desobediência da ordem do STF, que no dia 17/5/2017 suspendeu seu mandato de senador.

No despacho que suspendeu o mandato do presidente do PSDB, o juiz Edson Fachin explicou que só não decretou a prisão preventiva no próprio dia 17 de maio por motivos puramente formais, embora considerasse “imprescindível” decretá-la:

“Quanto ao parlamentar, todavia, embora considere, como mencionado, imprescindível a decretação de sua prisão preventiva para a garantia da ordem pública e preservação da instrução criminal, reconheço que o disposto no art. 53, § 2o , da Constituição da República, ao dispor que 'desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável'...”.

Fachin decidiu suspender o exercício do mandato para impedir “sua utilização para a prática de infrações penais”:

“o que se tem em mesa é medida cautelar que não implica a restrição de liberdade, mas a suspensão do exercício das funções do mandato parlamentar, nos termos do art. 319, VI, do Código de Processo Penal, que prevê a 'suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais'”.

Em várias passagens do despacho, Fachin sublinha o poder de influência do Aécio para prejudicar as investigações e para continuar as práticas delituosas:

“Ademais, tratando-se o Senador Aécio Neves de político proeminente no cenário nacional, presidente de importante partido político da base de sustentação do governo, com notória influência no âmbito das importantes decisões do Poder Legislativo e Executivo, revelam-se insuficientes para a neutralização de suas ações [criminosas], bem como das pessoas das quais se serve para a prática das condutas acima explicitadas, medidas diversas da prisão.

Percebe-se, a partir dos elementos probatórios acima mencionados, que o Senador Aécio Neves demonstra, em tese, muita preocupação e empenho na adoção de medidas que de alguma forma possam interromper ou embaraçar as apurações das práticas de diversos crimes, o que além de ser fato típico, revela risco à instrução criminal”.

Nos áudios com Joesley Batista, Zezé Perrella e outros interlocutores, fica claro que Aécio usava o mandato parlamentar como um passaporte para a ação criminosa. O cardápio de ilícitos, muito variado: legalização do caixa 2, negociação de propinas, interferência na PF e no governo para abafar investigações, combinações mafiosas etc.

Mesmo com o mandato suspenso, Aécio continua agindo. Ele debocha da decisão do STF. A influência e o poder dele, aparentemente, estão preservados – é o que transparece da reunião com seus companheiros tucanos.

Parafraseando o juiz Edson Fachin, é realista o “receio de sua utilização [do mandato de senador] para a prática de infrações penais”.

O destino esperável para o presidente do PSDB é o da condenação à prisão pela justiça e o da cassação do mandato pelo Senado.

Do GGN

Ségio Guedes Reis: Corrupção não se combate com moralismo

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Corrupção se combate com redução da desigualdade e não com moralismo

Talvez seja possível afirmar que o debate sobre corrupção no Brasil jamais tenha ganho tanta repercussão como agora. A Operação Lava Jato parece ter feito emergir um latente sentimento punitivista em parte da sociedade brasileira, o qual se conecta, de forma inexorável, à noção de que a corrupção se apresenta como um problema de índole comportamental ou postural, a ser corrigido a partir de sanções rígidas, capazes de reprimirem a prática desse crime a partir do “exemplo”. Não é por acaso que, na página das chamadas “Dez Medidas Contra a Corrupção”, encampada por agentes do Ministério Público que compõem a Força Tarefa dessa operação, diagnostica-se que é a “impunidade” a causa fundamental desse mal.

Quando observamos outras manifestações recentes sobre como lidar com a corrupção, vemos que essa interpretação punitivista tem força e histórico: se olharmos para o chamado “pacote anticorrupção” lançado pela então Presidenta Dilma Rousseff quando ainda parecia ter alguma margem de manobra, observaremos a predominância de medidas voltadas a tipificar novos crimes relacionados à corrupção ou a ampliar a punição para práticas ilícitas já tipificadas.

Segmentos da sociedade civil organizada parecem corroborar esse entendimento: se formos analisar as propostas vencedoras no âmbito da primeira Conferência Nacional sobre Controle Social (a CONSOCIAL, realizada em 2012), notaremos a presença de várias diretivas voltadas a tornar mais duros os crimes relacionados a corrupção. Há ideias no sentido de se transformá-los em crimes hediondos, ou mesmo de aumentar a pena máxima possível para o limite de 50 anos (acima, portanto, dos limites máximos previstos em lei para quaisquer crimes). A força da rejeição social à corrupção também aparece em pesquisas de opinião recentes, que apontam para essa questão como o principal problema do Brasil. Como entender esse aparente paradoxo entre a ojeriza à corrupção e a sua persistência como questão e como prático? Esse é um dos debates clássicos sobre a condição brasileira. Pretendo apresentar algumas proposições para apoiar o debate, a partir de uma leitura que se quer progressista.

A hipótese básica que apresento é a de que a República é um projeto nacional bastante incompleto, na melhor das hipóteses

Seu melhor momento também foi aquele em que sua fraqueza constitutiva se tornou mais explícita: a Constituição de 1988, hoje sob risco de implosão. No mesmo documento em que se inserem algumas das mais ousadas tentativas de instituição de um Estado de Bem-Estar Social no Brasil estão manifestações e pontos de partida para a consolidação de corporativismos decisivos para explicar o nosso tempo – e a resiliência da corrupção.

Um componente intrínseco a uma República é a ideia da igualdade entre os sujeitos. Em uma cultura política republicana, não só a igualdade existe, mas ela é desejada pelos atores sociais. Nesse sentido, os espaços públicos – institucionais ou não – são aí marcados por uma pretensão de eticidade na qual os cidadãos avaliam suas pretensões com relação ao público a partir de apreensões individualizadas sobre o universal: o certo e o errado, o justo e o injusto, o tolerado e o não-tolerado. A ação política (em sentido amplo) é balizada nessa experiência (por vezes conflituosa) de como realizar o público a partir das sensibilidades particulares sobre esse público.

Entendo que esse tipo de encaminhamento sobre o público no Brasil se constitui como algo extremamente limitado. No lugar de uma eticidade produzida a partir das tensões concretas que encerram o processo de construção de uma sociedade igualitária (que depende de condições materiais e simbólicas de reconhecimento da alteridade para tanto), aqui vige outra lógica: a moralidade é um substituto pobre da ética, com suas máximas e seus juízos particulares. Por meio dela (ancorada em dogmatismos religiosos, mas também em sintagmas laicos, mas imateriais, como adágios e aforismos), o indivíduo julga os outros a partir de elementos absolutos e metafísicos. Como o “público” é pobre – mera negatividade do “meu” particular – eu não me insiro nesse juízo.

Nesse mecanismo, que separa a potência do ato, eu cindo a minha prática ilegal do meu próprio juízo, mas não faço a mesma operação com outras pessoas. Abre-se espaço para a incoerência, para a indignação seletiva – ou, se quiserem, para a hipocrisia. Não é difícil perceber como o punitivismo encontra guarida no interior desse raciocínio: é impossível a partir dele tratar o problema de forma sistêmica – o desvio é individual, comportamental, postural, de natureza humana, e precisa ser reprimido como tal.

No bojo desse processo está o que mais importa nesta hipótese: a aceitação popular da injustiça. Se no espaço público ético a justiça se consubstancia no desejo (e na busca pela produção de) igualdade, no espaço moral não há um universal concreto contra o qual a minha ação particular possa ser cotejada, a não ser o meu próprio juízo metafísico. Se cada um faz o mesmo, então temos infinitos juízos particulares os quais, ao fim, realizam um público sem métrica de equidade (ainda que haja leis). A desigualdade se torna modus operandi de realização do público. E a justiça possível nesse cenário é o justiçamento, que nada mais significa do que a introjeção ao juízo público dos valores morais de ocasião como critérios de deliberação.

Fundamentalmente, a desigualdade (em sentido amplo) é causa basilar da corrupção

E esse é, provavelmente, o fator mais negligenciado no debate sobre a questão, seja normativamente, seja como prática de política pública. Esse lapso é surpreendente se levarmos em conta que a desigualdade é, provavelmente, a preocupação normativa mais relevante em qualquer questão pública abordada por um prisma progressista. Lamentavelmente, em face de toda a crise política nacional montada a partir da publicização de escândalos de propina envolvendo a Petrobrás – fundamentais para derrubar Dilma Rousseff, ainda que formalmente sua queda tenha ocorrido a partir do sofrível argumento das “pedaladas” – há pensadores importantes que ainda concebem que a corrupção seja mero “discurso da direita” para enfraquecer a esquerda, sendo a desigualdade um fator muito mais relevante a ser considerado no debate público. Aqui, no entanto, consideramos que a conexão entre ambos é intrínseca – e é fundamental que a esquerda seja capaz de apresentar uma interpretação própria sobre a corrupção, sob pena de emular soluções conservadoras se estiver no governo, ou de não ser levada a sério por se abster de debater criticamente a questão.

Como causa explicativa, a desigualdade naturalizada (não apenas de classe, mas étnica, de gênero, religiosa, de poder, entre tantas outras clivagens) cria o caldo para a aceitação da injustiça e, portanto, para a estruturação de práticas sociais que adotem a ilegalidade ou para compensar a desigualdade, ou para reforçá-la – daí a ambiguidade, por exemplo, do chamado “jeitinho”, por tantas vezes compreendido como a razão da corrupção (e aqui admitido como possível sintoma dele). Se as instituições reproduzem essa falta de tratamento equânime, então não há porque acreditar na equidade como um caminho, e no público como um espaço desejável. Pelo contrário, o privado é aí o porto seguro das virtudes – repete-se aí o mesmo mecanismo de julgamento moral comentado antes: o público não é também “meu” ou de todos, mas simplesmente de “ninguém”. Na literatura internacional, são reiterados os estudos que apontam para o quanto a desigualdade impacta severamente a descrença social no governo e, mais amplamente, nas instituições, e o quanto ela estimula a racionalização da corrupção como uma prática legítima. O ímpeto que a desigualdade causa para a corrupção extravasa classes sociais: como cita Gunnar Stetler, ex-diretor da agência anticorrupção sueca em entrevista para a jornalista Claudia Wallin, “chega um momento em que o cidadão não se contenta com um Volvo e deseja um Porsche”.

Uma hipótese a ser testada é a de que a desigualdade no Brasil adquiriu força considerável o bastante para se constituir como uma espécie de valor ou direito, algo a ser desejado. Em sendo o caso, estaríamos no exato caminho contrário daquele a ser perseguido para a constituição de uma República, como mencionado no início deste ensaio. A pesquisa “Perigos da Percepção”, feita pela Ipsos Mori (2015) com cidadãos de 33 países traz dados que podem jogar luz sobre a questão, conotando a ela a devida complexidade: os brasileiros, integrantes da quarta nação mais desigual do grupo, foram um dos seis conjuntos de cidadãos que subestimaram o nível de desigualdade existente no país. Ao mesmo tempo, nossos nacionais foram aqueles que defenderam que o 1% mais rico deveria concentrar o maior percentual da riqueza nacional dentre todos os segmentos consultados: 33%. Por curiosidade, em países como Israel, Noruega e Holanda, esse range variou entre 14 e 16%. E mesmo em países mais desiguais do que o Brasil, como Índia, Turquia e Rússia, as opiniões sobre o quanto deveria ser essa fatia oscilaram entre 21 e 30%.

Se a desigualdade é questão profunda na narrativa brasileira, o privilégio é a representação mais eloquente de sua articulação com a corrupção. Como ponto de partida para repensarmos como lidar com esse problema, por sinal, precisaríamos efetivamente redefinir a noção de corrupção, para fazer com que ela comporte em si o privilégio.

Hoje, boa parte dos privilégios são assegurados legalmente, inclusive por alguns dos atores que são responsáveis por dizer o Direito, garantir a justiça e proteger o patrimônio público. Em meio a uma sociedade que ainda luta para lidar com a miséria, a presença de salários astronômicos (muito acima do teto constitucional, já extremamente elevado), a percepção de dezenas de penduricalhos (auxílio-moradia, auxílio-creche, adicional por tempo de serviço, adicional de comarca, auxílio-educação e tantos outros) e o acesso a mordomias (no Judiciário, 60 dias de recesso, motoristas particulares, automóveis públicos luxuosos, imóveis funcionais de primeira linha, pensões para filhas solteiras, etc) constituiriam nada menos do que um insulto à dignidade. São vistos por vários de seus beneficiários e por parte da sociedade, contudo, como expressões do mérito e como medidas necessárias “para se evitar a corrupção”.

No mundo privado, por óbvio, a situação não é diferente. Ela pode ser particularmente percebida a partir do sistema tributário: lucros e dividendos, que compõem a maioria da renda dos mais ricos, são pouco ou nada taxados; iates, helicópteros e aviões não sofrem incidência do IPVA; o percentual do PIB recolhido a partir de tributações ao patrimônio é cerca de dez vezes inferior ao observado em países desenvolvidos; o imposto sobre grandes fortunas ainda é uma ficção, e aquele cobrado sobre heranças possui uma das menores tarifas do mundo. Na mesma linha, vale citar o financiamento altamente subsidiado feito pelo BNDES ao empresariado – estratégia problemática não em si mesma, mas sim diante da escolha dos beneficiários em aplicar o dinheiro no mercado financeiro em vez de torná-lo produtivo. Não seria essa prática uma forma de corrupção? 

O grande ponto é que as gestões consideradas progressistas no Brasil atuaram, na melhor das hipóteses, de modo extremamente tímido no enfrentamento da desigualdade. Parece claro hoje que Dilma – e, principalmente, Lula – encararam como desafio nacional a eliminação da pobreza, jamais a mitigação da olímpica desigualdade. Se dados mais recentes (como as pesquisas de Marcelo Medeiros) apontam que a disparidade de renda no Brasil tem sido consideravelmente subestimada (e em patamar “estável”, e não em queda), há estudos (como os de Gubetti e Orair) que mostram como o Estado brasileiro tem contribuído para o aumento da desigualdade, dada a manutenção da distinção entre a previdência pública e a privada e, principalmente, a política de salários desenvolvida nos últimos anos a médios e altos funcionários do governo (não apenas os percebidos pela Magistratura e pela própria classe política, mas também para a assim chamada elite burocrática do Poder Executivo).

Para se ter uma ideia, enquanto a inflação acumulada entre 2002 e 2016 foi da ordem de 162%, a remuneração de carreiras como a de Especialista em Políticas Públicas e Auditor de Finanças e Controle subiu 393% (inicial de R$ 17 mil); a de Delegado da Polícia Federal, 187% (inicial de R$ 21,7 mil); a de Auditor da Receita Federal, de 547% (inicial de R$ 19,2 mil mais “bônus de produtividade” estimado em R$ 5 mil mensais, aprovado em Dezembro/2016). Há diversos outros exemplos. Os dados levantados pelos autores supracitados mostram que essa política salarial acaba por mais do que compensar o redistributivismo contido nas políticas assistenciais (Programa Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, etc). Em outras palavras, o Estado tem acentuado a já rampante desigualdade, e isso a partir de uma consciente política de valorização salarial de segmentos do funcionalismo – justamente em um dos únicos momentos da história política brasileira em que fomos governados por forças progressistas. 

Se houve algum caminho preventivo à corrupção que foi adotado como solução de política pública pelos governos progressistas no Brasil, pode-se defini-lo como o da promoção da transparência e do controle social 

Há que se dizer que essas medidas corresponderam ao estado da arte internacional no enfrentamento a esse problema – em boa medida Lula e Dilma implementaram parte substancial das convenções internacionais de combate à corrupção. Não há dúvida de que tais aspectos contribuem para que contornemos um pesado histórico autoritário por meio de medidas que aproximem Estado e Sociedade e, com isso, potencializem a geração de um “público”. Mas como tornar esse processo efetivamente sistêmico – capaz, portanto, de gerar mudança cultural – em vista da precariedade monumental de serviços públicos e de infraestrutura (inclusive Internet) que nos assola, apesar dos avanços institucionais das últimas décadas? Como também comenta Gunnar Stetler, “Se uma pessoa tem que lutar diariamente por sua sobrevivência para ter acesso à alimentação, à escola e a hospitais, a questão do combate à corrupção na sociedade certamente não estará entre seus principais interesses. Mas quando uma pessoa se sente parte da sociedade à qual pertence, passa a não aceitar os abusos do poder”. Por evidente, não se defende aqui que os hackatons, a Lei de Acesso a Informação ou os Conselhos de Políticas Públicas sejam “perfumarias”, apenas que são suportes – e não razões de ser – para uma política efetivamente sistêmica de combate à corrupção.

Há, no entanto, alguns cânones os quais, por intocados, obstaculizam o avanço do debate, particularmente a partir de uma perspectiva progressista. Um deles é o de que um caminho fundamental para o combate à corrupção no Brasil passa pela autonomização dos órgãos e agentes que praticam a justiça e defendem o patrimônio público. Qualquer questionamento que ataque esse lugar comum é naturalmente visto como uma defesa do patrimonialismo, do clientelismo ou de outras gramáticas políticas as quais, historicamente, foram empregadas para interpretar o país.

A questão é que esse caminho da meritocracia, da profissionalização do burocrata e da sua defesa como ator neutro no processo político (um dever ser ao longo do tempo convertido em análise factual) nem sempre foi o único concebível. Por um bom tempo, particularmente nos Estados Unidos, a chamada burocracia representativa vigeu como método para a ocupação dos cargos públicos do governo. Por trás desse paradigma se encontravam pressupostos como a ideia de que os postos deveriam ser preenchidos por cidadãos comuns, e que a composição da máquina pública com base nos diferentes interesses sociais que representavam a agenda do governante eleito exprimiria uma tecnologia gerencial ao mesmo tempo justa e coerente. Essa prática não era sinônima do “toma lá, dá cá”, simplesmente porque não se tratavam de negociatas ou de interesses divergentes a serem pactuados a partir de um cargo: o político e o funcionário não eram partes contrárias, mas agentes vetorizados à realização de um mesmo fim público. Por evidente, esse princípio operativo não afastava a corrupção, mas não era visto como sinônimo dela. Na verdade, esse sistema de espólio se inseria como o mecanismo de convergência possível entre burocracia e democracia à época, em meados do século XIX.

Foi principalmente com Woodrow Wilson que esses entendimentos foram transformados em nome da ideia de que política e burocracia precisam ser separados – questão que ensejou uma importante reforma administrativa nos EUA do século XIX e em praticamente todo o mundo desde então. Em vez de representação, o que informava esse novo modelo burocrático era a superioridade técnica, a meritocracia. Em paralelo, na medida em que não representavam interesses populares – pois não eram cidadãos comuns, mas sim experts – esses novos burocratas seriam neutros. Ao longo do tempo, essa neutralidade foi sendo associada ao republicanismo, sem se questionar a viabilidade em si de uma ação axiologicamente neutra, nem a real identidade entre um comportamento apolítico e uma práxis republicana. Por sinal, como comenta Cecília Olivieri em artigo sobre os controles políticos sobre a burocracia, no Brasil a relação entre política e burocracia sempre foi abordada pela literatura como sendo conflitante – nesse sentido, a autonomia dos burocratas aparece como um devir, uma estratégia a ser perseguida para se evitar a captura do Estado por interesses econômicos (ou políticos).

Foi justamente esse o encaminhamento dado pelas gestões Lula e Dilma aos setores burocráticos críticos do Estado brasileiro, notadamente aqueles voltados a combater a corrupção: prestígio e autonomização. Vimos anteriormente a extensão da política de valorização salarial adotada nos últimos anos; vale mencionar a realização de diversos concursos públicos – em oposição ao período FHC.

Outras marcas de valorização, como a nomeação de técnicos para postos-chave de Direção e Assessoramento Superior (até mesmo com a instituição de cotas mínimas de cargos a serem ocupados por servidores efetivos), a aprovação de denominações específicas como símbolos de distinção (“autoridade tributária” para Auditores Fiscais, “excelências” para Delegados da Polícia Federal, etc), também foram sancionadas nesse período. A autonomização, demanda constante dessas carreiras de Estado, também veio a cabo: listas tríplices para a seleção de Procuradores-Gerais do Ministério Público, de Diretores Gerais da Polícia Federal, entre outros cargos importantes; a desvinculação institucional da Defensoria Pública da estrutura do Poder Executivo Federal; a alocação prioritária de recursos para o desempenho de Operações Especiais, etc.

Por outro lado, essas medidas jamais foram acompanhadas por um eventual incremento do controle social sobre a burocracia. Ainda que nos governos do Partido dos Trabalhadores tenham sido desenvolvidas mais de uma centena de conferências e tenham sido criados dezenas de conselhos de políticas públicas, há que se observar que os esforços jamais estiveram direcionados para realizar accountability sobre os agentes públicos, especificamente. A alta burocracia permaneceu francamente autônoma e crescentemente empoderada. Por sinal, a disfunção entre as expectativas da literatura nacional e a realidade material atingiu seu auge quando o próprio Ministério Público, por meio de seus agentes, passou a liderar uma campanha nacional pela aprovação das supracitadas “10 medidas contra a corrupção”. O lobby pela aprovação de uma agenda que restringia direitos individuais em nome do aumento da capacidade discricionária dos próprios burocratas (uma forma de autonomização) converteu-se em “advocacy” legítimo aos olhos da mídia e de parte da sociedade.

De forma mais concreta, vimos na Operação Lava Jato o Judiciário, o Ministério Público e agentes da Polícia Federal, dentre outros, atuarem à margem da lei e em rechaço à Constituição – a qual os alçou, em sua origem, como alguns dos segmentos mais importantes a defendê-la (o que percebemos agora como um ímpeto corporativista, em face das prerrogativas e exclusividades a eles conferidas). Como razão para esses arbítrios, o “bem maior” do combate à corrupção. Sem respostas proativas, a esquerda apenas reforçou sua defesa da autonomia dos órgãos de defesa do Estado, do “apure-se o que tiver de ser apurado”, da integridade pessoal e moral da Presidenta da República (até hoje incontestável, frise-se). Ou seja, apenas seguiu adiante no caminho que acabou por levá-la à derrocada diante de uma direita muito mais articulada em evocar na esfera pública a moralidade particular como juízo.

Hoje, o Presidente da República, citado nominalmente em delações de executivos da Odebrecht, nomeia seu próprio Ministro como Ministro do STF – a julgar casos em que o próprio Chefe de Governo constará como réu –, e simplesmente não há freios e contrapesos institucionais ou “morais” para barrar essa agenda.

Talvez essa seja uma das marcas da fragilidade do legado das administrações petistas no combate à corrupção, justamente em virtude das crenças e das escolhas feitas: não reformar nevralgicamente as institucionalidades e as formas de produção dos espaços públicos, mas sim levar “ao limite” a agenda wilsoniana de profissionalização de certa burocracia.

Até encontrar, dada a inação na frente das reformas eleitorais e na frente da governabilidade, o paroxismo essencial: desenvolver e insular uma burocracia não-responsabilizável e corporativista para fiscalizar agentes políticos tão fundamentais à sustentação da base de apoio quanto versados na operacionalização da máquina “à moda antiga”. Não há legado possível aí porque nem a burocracia é neutra, nem qualquer administração mais “realista” virá a conceder o mesmo nível de independência funcional.

Quando se leva em conta a hipótese da fragilidade do republicanismo e da força constitutiva da desigualdade na formação da nossa sociedade, compreende-se quão perniciosa para o combate à corrupção é a ideia de se fortalecer e insular agentes e instituições. Se dar autonomia e salários astronômicos constituem formas de privilégio social, se os privilégios expressam o casamento entre desigualdade e corrupção, se a desigualdade brasileira é fator crucial para explicar a fragilidade dos espaços públicos, e se essa fragilidade cria obstáculos fundamentais para a produção de um desejo mínimo de equidade entre cidadãos, então transformar certos segmentos em “castas meritocráticas” parece ser a solução mais inadequada possível.

Pensar o combate à corrupção a partir de um ataque transversal à desigualdade e à injustiça tem o potencial de se constituir como um programa de governo e uma agenda de Estado possíveis para que os progressistas disputem a política institucional no contexto mais conservador das últimas décadas. Para tanto, a esquerda precisa de fato disputar o significado da corrupção, da ética e da justiça na realidade brasileira. Ela tem muito a dizer e a propor, mas precisa revisar seus conceitos e sua abordagem.

No fundo, o PT dos anos 80 e o PSOL de hoje, dentre outras forças relevantes, contiveram em seu ideário alguns elementos que dialogam com o proposto aqui. A declamação ética de agentes políticos desses partidos, contudo, é pontual, sem constituir uma agenda sistêmica: tratam de posturas individuais, de mandamentos, de comportamentos idealizados. Estão presas, na verdade, às moralidades mencionadas no início desse ensaio, ainda que eventualmente virtuosas.

É preciso ir além, propondo sistêmica e institucionalmente formas de transformação dos espaços públicos, nos domínios mais localizados (vizinhanças, parques, praças, igrejas, ônibus/metrôs, etc) e mais amplos (a grande política, as decisões judiciais, as políticas públicas, a produção da cidadania ativa etc). Trata-se de reverter com força o processo de abandono do público promovido pelo Estado ao longo dos últimos 30 anos – que deu vazão, como comentou Christian Dunker em entrevista recente para a BBC, a vazios ocupados pelo privatismo – favelas, condomínios fechados, prisões – ou meras zonas de passagem, marcadas por experiências vazias de sentido. É preciso, para isso, acreditar que a gestão pública um campo privilegiado para a produção, viabilização e potencialização de experiências de dignidade, de realização das capacidades humanas, de civismo. Algo que, lamentavelmente, boa parte da esquerda também se furtou de elaborar, preservando as velhas crenças positivistas sobre a neutralidade da técnica.

Não há como não desempenhar tais tarefas históricas sem disputar profundamente o significado da corrupção no Brasil, sem deixar de afirmar e comprovar que a corrupção é uma manifestação da desigualdade, e que a desigualdade é, sim, uma manifestação da corrupção – e isso não é uma tautologia, mas sim um círculo vicioso, que nos aponta para a profundidade do nó górdio em questão. Acreditar nessa conexão é permitir ao campo progressista ir além na crítica à meritocracia como um fim em si mesmo – ninguém pode ser bom o bastante para ser socialmente tão mais prestigiado do que os demais – e na compreensão de que o compromisso com a equidade e com a isonomia devem ser inegociáveis – meia-justiça, afinal de contas, nunca significou menos do que uma injustiça em dobro.

Sérgio Roberto Guedes Reis é mestre em Políticas públicas pela FGV e bacharel em Relações Internacionais pela USP. Atua no serviço público federal brasileiro desde 2012, como Auditor de Finanças e Controle.

GGN/Justificando, por Sérgio Guedes Reis

O Procurador pastor e o fim do Direito, Lenio Streck

Foto: Reprodução 
O que o procurador pastor tem a ver com a desmoralização do Direito?

Parece que vivemos o apocalipse zumbi-jurídico (vejam — zumbis sempre estão em busca de cérebros; em alguns lugares do Direito morreriam de fome..., como sugere o brilhante filósofo Marco Casanova). Quando achamos que o estamos no fundo do poço, sempre aparece uma camada a mais para cavar.

Parece que perdemos o pudor. Desrespeitamos as leis e a Constituição e em lugar dela colocamos nossas convicções políticas e/ou morais. Ou simplesmente as convicções religiosas (falarei disso na sequência). Ou “só pessoais”. Assim “tipo eu-acho-que”. Em todos os quadrantes. Ao mesmo tempo em que são liberados grandes corruptos e corruptores, sob o mesmo ordenamento deixamos presos pobres e esgualepados. Dia desses alguém me questionou: “Professor, o senhor quebrou a cara. Dizia que la ley es como la serpiente; solo pica al descalzos (frase de Jesus De la Torre Rangel que o senhor repete há tantos anos) e agora está vendo os grandes irem para a prisão”.

Em resposta, perguntei: será mesmo? Falemos dos indefectíveis irmãos Batista ou dos réus que receberam liberdade no Superior Tribunal de Justiça enquanto esse mesmo tribunal deixou presa uma mulher que furtou peito de frango e outros quejandinhos. Desde quando as delações inverteram a frase que repito há tantos anos? Na verdade, há uma esperta inversão ideológica nisso tudo. O futuro mostrará isso. O episódio dos irmãos Batista é só a ponta do iceberg (veja-se o lúcido texto da professora Érica Gorga, no Estadão). Temos quase um milhão de presos. Destes, não mais que 0,001% são da "lava jato". O resto não tem nem direito à delação. E nem a benesses.

Mas quero falar de outro poço. O do moralismo que fez uma fagocitose do Direito (sem o benefício desta). Em nome da tese moral-utilitarista de que os fins justificam os meios, fizeram delações à revelia da lei (veja-se o texto de JJ Gomes Canotilho — ver aqui). Todos os dias as teses morais fazem predação do Direito. Em vez da boa doutrina, jurisprudência e, enfim, da lei e da Constituição Federal (peço desculpas pode me referir a essa coisa demodê chamada “Direito”), usa-se “justo concreto”, “minha consciência”, “minha convicção”, “meu iluminismo”, “o réu merece” etc. Atenção: até a revista Veja, por arrependimento ou oportunismo, reconhece que houve ilegalidade na interceptação da conversa Lula-Dilma, na sua divulgação (na época, a revista pensava o contrário) e agora no caso Reinaldo Azevedo. Nome da matéria da Veja: Estado Policial! Bem sugestivo!

A última (mais recente) pataquada moral(ista) veio do Mato Grosso do Sul, em que um procurador de Justiça, a partir da convocação feita pela Promotoria da Infância e Juventude aos pais de alunos para comparecimento sob pena de multa e prisão para assistirem a ele, procurador, em estádio com 10 mil pessoas, proferir palestra. Ocorre que a tal palestra esteve eivada de pregações religiosas, além de decretar a cidade de Dourados “capital de Cristo” ou algo assim. Vejam a matéria (ver aqui). Já li, inclusive, a defesa que um colega seu fez, dizendo que a oração foi pequena e apenas ao final. Bom, não é o que a reportagem e as filmagens mostram. Além disso, o promotor (ler aqui) não explica a convocação para o comparecimento ao Estádio sob pena de multa ou prisão. O Ministério Público esticou a corda, pois não?

Despiciendo fazer maiores criticas à atitude do procurador. O Conselho Superior do MP por certo não deverá dar uma medalha ao colega. Espero que não. Moralizar o Direito (isto é, fazê-lo soçobrar diante de raciocínios morais) por vezes é, exatamente, aquilo que desmoraliza, se me entendem a ironia e o jogo de palavras.

Vejam lá. Não discuto aqui os bons propósitos do membro do Ministério Público. A evasão escolar é um problema sério e o crime de abandono intelectual não é inconstitucional. Agora, constranger pais (relapsos que sejam) a, sob vara, acompanhar uma doutrinação religiosa, certamente não é o caminho. “Ah, professor, mas os resultados são bons.” Pois é... o Direito não é exatamente o lugar em que o “argumento do resultado” tem preferência, não é mesmo? Ou bem o poder público tem um poder, ou bem não o tem; ou bem o cidadão tem um direito, ou bem não o tem. O código do Direito é, por assim dizer, binário. Eis o fórum é do princípio. É preciso, portanto, ajustar os bons propósitos do Procurador/pregador às premissas e preceitos de um Estado laico e de um Direito Penal conformado à Constituição (ou alguém entende correto que um pai que não comparecesse ao evento esse — sem “justificativa” (sic — aliás, que “justificativa” seria suficiente para o não comparecimento? Quem sabe a laicidade?) respondesse criminalmente só por esse fato?).

Na verdade, o que devemos discutir não são essas questões pontuais com as quais encheríamos páginas e páginas de bizarrices que estão se tornando “normais”. Isto é mais um sintoma da lambança que se fez do Direito. Como exemplo, lembro que o Brasil arde e o panpenalismo avança até para cima das crianças e dos seus pais. Enquanto isso, alguém lança um livro chamado Direito Penal Superfacilitado. Depois dizem que é implicância minha...

Teoria política do poder substituiu o Direito: só os fortes sobrevivem?
Como chegamos a este estágio? O que fizemos com o Direito? Transformamos o Direito em um jogo de poder. Isso. A questão é saber: a) ou nos dobramos e dizemos “isso é assim mesmo e vamos achar um modo de ser mais esperto que o outro” ou b) voltemos a estudar Direito (e direito) e enfrentemos de frente esse monstro.

Sim, porque se pensarmos que direito é isso que está aí e interpretação é um ato de vontade (como dizia Kelsen no oitavo capitulo da TPD, mostrando todo seu relativismo), então estaremos fazendo uma coisa pior ainda. Sabem qual é? Só os fortes sobreviverão.

Se o Direito se transformou em um estado de natureza, em que quem é mais esperto no seu agir estratégico ganha, então deixemos de lado qualquer pretensão teórica. Ou, ao menos, desistamos da teoria normativa — o que não é um problema menor; venho dizendo há tempos que o principal papel da teoria do Direito é, exatamente, fornecer as condições de possibilidade para tornar concreto o programa constitucional, para concretizar direitos fundamentais. Do contrário, façamos sociologia ou ciência política, disciplinas certamente tão relevantes quanto, apenas que não são... Direito!

O que aconteceu é que institucionalizamos aquilo que hoje se faz nas pobres faculdades de Direito de Pindorama: estudar uma frágil teoria política do poder, pela qual o Direito é só vontade (de poder) e opinião pessoal. E, é claro, só se darão bem os mais fortes. É Behemoth engolindo Leviatã (lembremos que um dos sentidos do Leviatã de Hobbes é o de um Estado garantidor da paz, enquanto o Behemoth quer dizer o contrário).

De minha parte, penso que devemos estudar Direito e — sem fazer provocação ao Procurador pregador de Mato Grosso do Sul — espalhar a palavra “doutrina”. Só ela poderá nos salvar. Só a Constituição salva. Aleluia, irmãos.

Minha reflexão: nestes tempos de grave instabilidade, creio que, como Ulisses aos mastros, estamos, os concidadãos, ao império do Direito. É o apego pelo Direito, é o cuidado com Ele, que pode nos guiar por um bom caminho. Tudo parece cinza e os sólidos, como poucas vezes na nossa história recente, dissolve-se pelo ar.

Estamos sob teste. E os juristas temos um papel nessa conversa toda. Por isso, ofereço minha dose de prudência constitucional, recordando uma frase que disse e escrevi em 1989, no primeiro aniversário da Constituição de 1988: “Constituição quer significar constituir-a-ação”.

Do GGN

O golpe jogou a política brasileira no vale tudo

A indicação de ministros é, diz a lei, uma prerrogativa do presidente. Quando Dilma indicou Lula para a Casa Civil, Gilmar Mendes proibiu a posse com a alegação de que o único objetivo seria dar a ele um foro privilegiado. Foi um abuso - mais um - do coronel da praça dos Três Poderes.

No caso de Lula, há muito circulava a ideia de que colocá-lo na articulação política do governo era a única forma de salvar Dilma do impeachment. Foi por isso que sua nomeação causou alvoroço na oposição; e não há dúvida de que foi por isso que Gilmar, em seu papel de conspirador golpista, sustou a posse.

Mesmo que não houvesse essa percepção, não havia motivo para impedir a nomeação. Se a escolha dos auxiliares diretos é uma prerrogativa do presidente, não cabe questioná-la. É difícil perscrutar com segurança quais são suas intenções subjetivas. Ele que arque com o desgaste político, quando for o caso.

A decisão de Gilmar, no entanto, abriu as portas para outras contestações. Um juiz de São Paulo tentou sustar uma nomeação de Alckmin porque viu que o cargo no secretariado estava sendo dado em troca de apoio à candidatura de Doria nas eleições municipais: "desvio de função". Depois, a nomeação de Moreira Franco para a Secretaria-Geral da Presidência (recriada especialmente para abrigá-lo) ficou em suspenso, pelo mesmo motivo de Lula. Em suspenso, mas sem grande suspense; o STF camarada, como esperado, acabou decidindo em favor do angorá.

O problema da nomeação de Moreira, a meu ver, não estava na busca do foro privilegiado, mas na identidade de quem o nomeou. Nenhum ministro nomeado por Temer é legítimo, pelo fato de que ele não possui legitimidade para ocupar o cargo onde está.

Agora, a Medida Provisória que recriou a Secretaria-Geral da Presidência venceu sem ter sido aprovada pelo Congresso. Temer simplesmente a reeditou, em ofensa direta ao artigo da Constituição que proíbe a reapresentação de MP's. Não se trata mais de suposto desvio de função, mas de flagrante inconstitucionalidade.

Não que isso importe. O golpe jogou a política brasileira no vale tudo e é nesse terreno, o mais favorável a ele, que o governo Temer se movimenta.

Do GGN, por Luis Felipe Miguel

Fernando Horta: Pode Lula fazer mais?

O discurso de Lula no congresso nacional do Partido dos Trabalhadores, na quinta passada, foi mais curto e errático do que costuma ser. A verdade é que o ex-presidente sente o peso que hoje tem, como única figura de esquerda capaz de barrar o avanço conservador. O partido tenta dar-lhe ao mesmo tempo apoio e abrigo. Não é pouco o que Lula enfrenta. Afora uma caçada midiática diuturna, Lula ainda lida com o lawfare da República de Curitiba e seus experts em Powerpoint, pedalinhos e documentos sem assinatura. A perda de dona Marisa Letícia (homenageada no Congresso) e o constante assédio aos familiares do ex-presidente completam um quadro nefasto que o líder, de 70 anos, impressiona ao enfrentar de forma tão aguerrida.