“Moro sabia”. Contradições da subjetividade do
saber
Por
mais de três décadas servi à Polícia Federal. Entre as diversas atividades,
estivemos à frente de uma delegacia, cujos agentes, sob nossa responsabilidade
iam para as ruas com Ordens de Missão de nossa unidade. Conforme determinações,
tinham o dever de realizar diligências x ou y. Em outras palavras, iam para as
ruas em nome do que era correto, legal, escrito na ordem recebida. O resultado
do trabalho deles era examinado por outros profissionais. Estes, por sua vez,
frente a um trabalho em aparente conformidade da lei, emitiam pareceres que
serviriam de suporte para emissão de certificados que eram assinado por pelo
chefe da unidade. No caso, este escrevinhador. Isso significava, em muitas
vezes, quase mil assinaturas.
Era
humanamente impossível um único servidor entrar em pormenores das centenas de
relatórios produzidos por aqueles agentes externos e internos, de forma que, se
na origem, alguma ilegalidade fosse cometida no meio da rua não seria de nosso
conhecimento. Desse modo, como regra, trabalhávamos todos “Em confiança”, partindo
do princípio de que todos estavam trabalhando corretamente. Uma conferência por
amostragem estava longe de evitar que falhas ocorressem - graves ou não. Para
nossa felicidade, nada ocorreu que precisasse ser objeto de investigações,
punições. De qualquer modo, convenhamos, não é a regra.
Imaginem,
por exemplo, que um dos agentes resolvesse pedir ou exigir dinheiro em nosso
nome para obter certificado? E se ele recebesse? E se ao receber ele abrisse
uma conta no nome dele? E se ele próprio fizesse depósito e retiradas e
dissesse que o dinheiro era para o chefe da delegacia? Indo mais longe, vamos
presumir que ele tivesse uma agenda, fizesse retirada e anotasse como se fosse
para o seu chefe? Indo mais longe, vamos supor que isso fosse uma prática corriqueira
de muitos anos. Um chefe de delegacia, que mal conseguia analisar todos os
processos, precisava assinar em confiança, teria condições de conhecer
particularidades da vida do servidor corrupto?
A
citação ao micro universo que conheci, dentro da Polícia Federal, vem a
propósito das reiteradas afirmações do ex-presidente Lula quanto às “meninices”
praticadas pelos representantes do Ministério Público Federal. Para ele,
típicas demonstrações de inexperiência, falta de intimidade com a rotina da
Presidência da República, tais como escolha de ministros, aprovação de
projetos, etc. O fato é que alheios a tais práticas, vem levando os oficiantes
da Farsa Jato cometerem aberrações interpretativas, baseadas em sofismas com
resultado dedutivo primário. Deduções precárias e fanfarrônicas que eclodiram
com a tal teoria do domínio do fato.
Na
medida em que se parte de raciocínios tão primários, permito descer a esse
primarismo para lembrar um engenhoso exemplo de sofisma encontrável nas redes
sociais. “As galinhas tem dois pés. Os homens têm dois pés. Logo, os homens são
galinhas”. Sim, é verdade que galinhas e homens terem dois pés são fatos
verdadeiros. Entretanto, o uso dessas duas verdades não tornam a conclusão
verdadeira. Do mesmo modo, “se todo político é ladrão”, e Lula é político, logo
ele é ladrão. Mas, se partíssemos do princípio de que nem todo político é
ladrão, talvez fosse possível concluir que Lula, mesmo sendo político, não
seria necessariamente ladrão.
Os
raciocínios dedutivos e conjecturais da Farsa Jato, além dos sofismas, muito se
assemelham aos joguinhos de circunstâncias dos romances de Agatha Christie. Os
mais afetos ao trabalho da autora sabem que ela era capaz de oferecer elementos
para que diversos personagens se tornassem suspeitos de um crime. Só que as
novelinhas policialescas engendradas pela PF/MPF/JF estão muito aquém das
ficções criadas pela brilhante ficcionista. Razão cabe ao ex-presidente Luís
Inácio Lula da Silva, quando usa a expressão “meninice dos procuradores”.
Nossos avós talvez fossem até mais agressivos e diriam que quem usa cuida...
Seguindo
esse rol de obviedades, no curso dos trabalhos da Farsa Jato nomes ligados ao
PSDB sempre foram citados. O nome de Aécio foi certamente um deles. Mas, mesmo
assim o juiz Sérgio Moro minimizou as referências tirando fotografias ao lado
de Aécio - candidato da Globo, emissora, aliás, que vive em débito com os
cofres públicos, mas que Moro não achou nada demais receber dela honrarias.
Hoje, quando fatos graves envolvem a figura de Aécio, fosse o leitor seguir o
mesmo raciocínio primário da Farsa Jato, poderia seguir a teoria da Veja e
concluir facilmente que “Moro sabia”.
O
mesmo raciocínio pode ser aplicado às falcatruas hoje atribuídas ao impostor
Temer, personagem com quem o juiz Sérgio Moro também se permitiu ser
fotografado. Mais que isso, Eduardo Cunha teria tentado mostrar a esse mesmo
juiz o que Temer teria feito no verão passado. Mas, ao que consta, o magistrado
teria indeferido nada menos que 21 questões que comprometeriam Fora Temer.
Desse modo, cumpre retornar a questão ao leitor: - é licito concluir que Moro
sabia? É lícito deduzir que Moro teria tentado proteger o usurpador da Faixa
Presidencial? Seriam essas circunstâncias conhecidas e provadas que nos
permitiriam conclusões? Que belo PowerPoint daria tudo isso! Quando a boa
exegese e hermenêutica jurídicas são abandonada e ganha tonalidade partidária,
gira em torno de holofotes e tietagens de pop star, a Justiça começa a ficar caolha.
GGN