Esta reportagem é a segunda da série financiada através de um crowdfunding feito em parceria entre o Jornal GGN e o DCM.
Como a delação premiada está pervertendo o direito penal no Brasil
A expressão delação premiada está presente no ordenamento jurídico
brasileiro desde 2013, quando foi aprovada a lei 12.850, mas o conceito já
vinha sendo experimentado desde 1990, com a lei do colarinho branco, que
estimulava a confissão com o objetivo de obter vantagens na pena.
Uma das primeiras delações premiadas homologadas por Sergio Moro, de
Curitiba, foi em 2004, quando não havia, portanto, legislação específica.
Acusado de lavar dinheiro da corrupção, da sonegação e até do trafico,
com o Fernandinho Beira-Mar entre seus clientes, Alberto Youssef teve a pena
reduzida quando entregou ex-comparsas, todos doleiros e lobistas.
O advogado Roberto Bertholdo foi processado em 2005, alvo de outra
delação homologada por Sérgio Moro, a do empresário Antônio Celso Garcia, o
Toni Garcia, político paranaense, que tinha sido acusado de aplicar um golpe em
clientes de um consórcio.
Roberto Bertholdo, em vez de delatar, reagiu. Grampeou o juiz Moro e o
acusou de atropelar a lei na condução dos processos.
Em 2006, mesmo preso sob acusação de lavar dinheiro e de fazer tráfico
de influência, deu entrevista à Band News de Curitiba e à RPC, afiliada da
Globo.
Acusou Moro de agir com arbitrariedade e abuso de autoridade com todos
os advogados e de ter concedido imunidade a criminosos com a homologação de
acordos de delação.
Roberto Bertholdo citou um caso específico, o do doleiro Alberto
Youssef. Segundo ele, a delação de Yousseff havia estabelecido "um
monopólio do câmbio no Brasil”.
Ao entregar antigos comparsas, Youssef mandou para a cadeia
concorrentes, como Toninho da Barcelona, e continuou operando no mercado.
Aliás, segundo Bertholdo, mesmo preso, Youssef não deixou de
operar.
Bertholdo menciona “Neuma Cunha”, como uma das operadoras que
uma faziam o trabalho para Youssef fora da cadeia. Em depoimento a Moro,
Youssef disse não conhecê-la.
"É só vir ao Cope e verificar que a Neuma vinha visitá-lo
semanalmente quando estava preso e era quem operava câmbio para ele. Durante
esse período, toda a operação de corrupção de Janene (José Janene, deputado
federal) era transformada em dinheiro vivo por Youssef", afirmou.
O tempo mostrou que Bertholdo estava certo. A “Neuma Cunha” citada por
ele é Nelma Kodama, que, oito anos depois, seria presa no aeroporto, tentando
fugir para o exterior com 200 mil euros escondidos sob a roupa, inclusive na
calcinha.
Falamos com Nelma Kodama na semana passada. Ela concordou em dar
entrevista. Quando fiz as primeiras perguntas sobre a delação premiada, deixou
de responder às mensagens.
No início, Nelma acreditava que a reportagem seria sobre o estilo de
vida dela depois que deixou a prisão.
Muito do que se conhece hoje de Sergio Moro, com seu estilo implacável e
a atuação considerada parcial, já foi revelada naquele tempo.
A Justiça de Curitiba tomou o depoimento dos jornalistas que
entrevistaram Bertholdo — Denise Mello pela Band News e Sandro Dal Pícolo, pela
afiliada da Globo.
Denise contou tudo, até o que não foi para o ar.
Disse que Bertholdo, na cela, reproduziu em um iPod a gravação de
escutas clandestinas que supostamente comprometeriam Moro. Ela tentou gravar o
áudio em seu celular, mas a qualidade ficou ruim.
Bertholdo disse que enviaria um CD com cópia de qualidade para a
emissora, através da filha, Priscila.
E foi o que fez.
Uma hora e meia depois, já na rádio, um rapaz o procurou e, dizendo-se
namorado de Priscila, e lhe entregou um envelope com um CD.
Mas Denise, depois de conversar com seu chefe, decidiu não publicar os
grampos, em razão da forma clandestina como foram feitos.
“Publicamos a entrevista, mas não os áudios da escuta clandestina”,
disse Denise.
A Band News pertence a J. Malucceli, amigo de Moro, mas Denise afirmou
que não houve nenhuma interferência dele.
“Foi uma decisão conjunta minha e do meu chefe na época, o
Gladimir Nascimento”.
Na entrevista à Band News e à TV, Bertholdo contou que Moro também fazia
escutas ilegais. Segue um trecho do depoimento de Denise:
Durante a entrevista, ele também acusou o juiz Sérgio Moro de fazer
escutas ilegais por meio da colaboração de Tony Garcia. Ele disse: 'apesar de
uma liminar do Tribunal Regional Federal da 4a Região não permitir essa
investigação, o juiz Sérgio Moro investiga, através do Tony Garcia, o senhor
Giovani Gionédis. E hoje ele grampeou ninguém mais ninguém menos do que o
Presidente do Tribunal de Contas do Paraná, o senhor Heinz George Haven, que
foi grampeado pelo Tony Garcia a mando do juiz Sérgio Moro'. E ele completa:
'isso é crime, Sr. Sérgio Moro'. Esse é um dos trechos que ele disse" .
Sandro Dal Picolo, da TV Globo, também prestou depoimento, mas falou
menos:
Eu lembro que havia uma crítica ao instituto da delação premiada. Era
uma crítica, uma opinião a respeito da delação premiada, criticando que a
delação premiada acabava dando algum benefício pra... eu não me lembro se ele
falava em imunidade, não lembro se era essa a palavra.
A entrevista de Bertholdo a Denise foi o motivo alegado para a
Justiça Federal autorizar, a pedido do Ministério Público Federal,
busca e apreensão na cela de Bertholdo, onde foram apreendidos CDs com áudios.
Os áudios foram o suficiente para o Ministério Público Federal denunciar
Bertholdo e a filha pelo crime de escuta clandestina.
Já a entrevista também serviu de base para outra denuncia contra
Bertholdo, pelos crimes de injúria, calúnia e difamação.
Sergio Moro já tinha sido vítima de Bertholdo em outro caso de escuta
clandestina.
Entre dezembro de 2003 e março de 2004, durante a investigação da mega
lavanderia de dinheiro que funcionava no Banestado, Moro teve os telefones do
gabinete no fórum e da casa grampeados.
Soube disso através de dois delatores, o Toni Garcia e o Sérgio Costa.
Já processava Bertholdo, pelo crime de lavagem de dinheiro e de tráfico de
influência.
O procedimento normal, nesses casos, é que o juiz se afaste do caso. Mas
não foi o que ele fez.
Moro permaneceu à frente da investigação e, a pedido do Ministério
Público Federal, ordenou a quebra do sigilo telefônico de Bertholdo e autorizou
os dois delatores a gravarem conversas com ele.
Bertholdo negou que os grampos tivessem sido feitos por ele (assumia
apenas a tentativa de divulgação) e culpava Alberto Youssef, com quem teve
relações no passado.
Foi até a última instância para reverter a condenação. Um habeas corpus
deu entrada no Superior Tribunal de Justiça, relatado pela ministra Laurita
Vaz.
Seus advogados diziam que a investigação era imprestável, já que Moro,
na condição de vítima, não poderia autorizar medidas contra seu algoz.
"O objetivo único e exclusivo da interceptação decretada pelo
Juiz Moro foi devassar a vida daquele que tinha ousado grampeá-lo. Vítima
contra acusado…”, escreveu um advogado.
Moro acabou deixando o caso quando o Ministério Público Federal
denunciou seu algoz. Mas, no período das investigações, manteve controle total
sobre operações, inclusive sobre os grampos dos quais foi alvo e que foram
descartados por ele, preservando o sigilo das conversas.
Seu substituto na 2a. Vara (hoje é 13a.) assumiu o caso, o que também é
estranho, já que existe ligação funcional entre o juiz titular e o segundo na
jurisdição.
No seu relatório, ao julgar o habeas corpus, a ministra Laurita Vaz
recordou como Moro tomou conhecimento de que tinha mesmo sido grampeado. Foi em
25 de agosto de 2005.
" (...) foram ouvidas as conversas referentes às
fitas apreendidas e que constam nos autos, podendo o depoente (Sergio
Moro) reconhecer sua própria voz e diálogos mantidos com o Delegado
de Polícia Federal Paulo Roberto Falcão, com o Procurador
da República Vladimir Aras, com a Desembargadora Maria de
Fátima Labarrère, com o Promotor de Justiça do Estado do Paraná Cruz
(de Maringá), com um amigo de nome Carlos Zucolotto (ele, mais tarde
acusado de vender facilidades em delação a Rodrigo Tacla Duran), com
familiares (filha e esposa) e, segundo lhe parece, também uma conversa com
o DPF Luiz Pontel”.
Bertholdo perdeu, embora a ministra relatora tenha dito que não é
adequado um juiz participar de investigação, ainda mais de supostos crimes dos
quais seria vítima.
Um ministro deu razão à defesa de Bertholdo, em termos duros. Foi
Napoleão Maia Filho.
"Penso que o Judiciário não deve, especialmente nos dias
intranquilos de hoje, ser tolerante com tão aberta ilegalidade, máxime cometida
por um Juiz. Não é o problema de ele ter determinado escutas, quebrado sigilo e
ter feito essas coisas que ele fez. Isso não é problemático para o Juiz. É que
a vítima era ele. Esse é o ponto central, que não pode ser ocultado e deve ser
posto, a meu ver, na mais intensa radiação solar. O que ele determinou, certo
ou errado, era para descobrir crime praticado contra ele. Ele não podia nem ter
determinado, quanto mais, depois, o seu substituto aproveitar todo esse
material. Isso incentiva, a meu ver, essa prática, que já é extremamente
disseminada no nosso País, de escutas clandestinas sem inquérito, sem ação
penal, sem nada. E depois, aproveita-se isso por motivo A, B ou C, mesmo a
pretexto de se dizer que não contaminou as provas posteriores”.
Bertholdo já não fala como antes. Lobista conhecido em Brasília, hoje é
visto na companhia do ministro da Saúde, Ricardo Barros, que só chegou ao poder
com a queda de Dilma.
Muitas das suas acusações ficaram sem resposta.
O que havia nas gravações que enfureceram tanto o juiz Moro? Pode um
delator trabalhar em causa de interesse direto do juiz? Por que Moro, tendo
tomado conhecimento de que Youssef continuava no crime, não deteve, no sentido
de anular o acordo de delação? Como Youssef foi beneficiado com a própria
delação e o encarceramento de seus concorrentes?
Com seu estilo ativo de conduzir processos, Moro é protagonista de um novo
tipo de direito penal no Brasil, situação que tem incomodado alguns juízes.
No mês passado, na conferência estadual da advocacia em Santa Catarina,
o juiz Alexandre Morais da Rosa disse: "Nosso processo penal
mudou”. O juiz sugeriu aos advogados que leiam outros livros.
"Se você quiser continuar fazendo o processinho penal do cotidiano,
tudo bem. Os livros servem. Se você quiser ampliar, uma das leituras possíveis
é Teoria dos Jogos e Análise Econômica do Direito, e pensar fundamentalmente
num modelo de gestão do processo, uma troca de informações, uma gestão bem
diferenciada”, destacou.
Ficou a dúvida na plateia e Alexandre esclareceu. "Trata-se de um
jogo”, ele disse. "É um jogo de compra e venda de informação de um grande
mercado judicial”. Alexandre, que é pós-doutorado, foi além e advertiu que é
preciso manter integridade, mas trabalhar com os novos
conceitos. "Existe hoje um mercado judicial”, reforçou.
"Nós não vamos transformar nosso processo penal no lugar dos
espertalhões, mas existem hoje muitos espertalhões trabalhando hoje no processo
penal que é essa nova modalidade, que é a negociação. Quanto mais informação
qualificada você tiver dos jogadores, quanto mais você souber do jogo, da
jogada, de uma jogada dominante, de uma jogada dominada, como é que se troca
informação, como é que se negocia, você pode ter maior êxito. As regras antigas
já não servem para nada. Vivemos um tempo muito difícil para a democracia”,
disse, para espanto dos presentes.
Para finalizar, ele contou que um amigo lhe confidenciou que havia
instalado câmeras ocultas em toda casa, depois que se casou com uma mulher que
já tinha uma filha.
Por que ele fez isso?
“Para se defender se, no futuro, for acusado de um crime sexual”.
Segundo ele, os tempos são estranhos porque, hoje, você pode confiar no inimigo
- sabe o que ele vai fazer —, mas nunca no amigo. “O amigo de hoje é o delator
de amanhã”, afirmou.
E não é ele que terá de provar a acusação. É o delatado que terá de
provar a inocência.
A lei diz que o delator deve provar o que diz, mas na prática não é isso
que tem acontecido.
É nesse ambiente que se desenvolve a indústria da delação, e os
advogados, bem relacionados com juízes e procuradores, já entenderam que é
também uma mina para ganhar dinheiro.
O JornalGGN e o DCM enviaram ontem à tarde as seguintes perguntas ao
assessor de imprensa do MP de Curitiba. Até a publicação desta matéria, elas
não foram respondidas:
1) Quais critérios utilizados para a concessão de benefícios em acordos
de delação premiada?
2) Especificamente, no caso dos três controladores do Meinl Bank de
Antígua, o acordo previu o pagamento de multa no valor de R$ 1 milhão cada um
(315 mil dólares aproximadamente). Não é pouco tendo em vista o montante
movimentado por eles (1,6 bilhão de dólares) em pagamento a agentes políticos
em nome da Odebrecht?
3) Que contribuição os controladores do Meinl Bank deram para a
investigação?
4) O advogado Rodrigo Tacla Durán disse que foi procurado por um colega,
Carlos Zucolotto Júnior, seu ex-correspondente, que negociou benefícios em
acordo de delação premiada. Segundo ele, o Ministério Público Federal enviou
esboço do acordo com benefícios oferecidos pelo advogado. O que o MP tem a
dizer sobre essa afirmação do advogado Tacla Durán?
5) Fique à vontade para fazer considerações que considerar pertinentes
ao tema.