É
surpreendente como a ideia de se ser um “trabalhador” foi desmontada nos
últimos 20 anos. No discurso atual, o trabalhador é quase um pária social.
Alguém que vive de “benesses” do Estado, que espera ardentemente se aposentar,
para então ser o que desde o início, segundo esta narrativa, ele sempre foi: um
vagabundo. No meio tempo, o trabalhador tem a petulância de se juntar nestas
nefastas organizações chamadas “sindicatos”. Fazem greves, bloqueando o
trânsito (veja só!) e têm a audácia de querer ver no poder um dos seus.
Estes
ataques começaram no final da década de 80 e início da de 90, com as tais
normas ISO. Naquela época, fui incumbido de trabalhar pela certificação ISO de
um laboratório e fiz alguns cursos a respeito. O objetivo das normas ISO, com
todas as suas formas de backup de informações, rotinas e controles, era tornar
o trabalhador totalmente dispensável. Mesmo com 20 anos de empresa, após a
implantação das famigeradas ISO, você seria facilmente substituído por um jovem
que pudesse ler e compreender suas rotinas diárias. O fato de o jovem ganhar
menos do que o trabalhador “já de casa” era “um detalhe insignificante” frente
ao “ganho de qualidade” que representava para a empresa.
Após
este período, tivemos um ataque ao termo “trabalhador”. Virou “colaborador”. O
objetivo (não declarado) era burlar, de qualquer forma, a aplicação das leis
trabalhistas (aquelas que criam “vagabundos” que não gostam de trabalhar). Os
juízes do trabalho tiveram uns dez anos de esforços conjuntos para conseguir enquadrar
esta “estripulia linguística”. Agora, nos anos 2000, surgiram duas outras
formas de atacar o trabalho. A primeira é o chamado “voluntariado” que passou a
“contar pontos” nos currículos dos jovens, de forma bastante ideológica. Doar
sua força de trabalho significa algo bom, meritório e em troca você ganhar um
papelzinho atestando sua “iniciativa”. De preferência negando o termo mesmo
“trabalho”, eis que surgiu o termo “voluntariado”. O objetivo é afastar a nódoa
do trabalho, presente até mesmo no termo.
O
segundo ataque ao termo veio da teologia do empreendedorismo. Não seja um
trabalhador, seja um “empreendedor”. Cada vez que vejo, ouço em palestras ou
vídeos, um indivíduo branco, cheirando a perfume estrangeiro, sem um calo nas
mãos dizer do alto de sua arrogância que “para se ficar rico basta levantar
cedo e ir trabalhar”, “mudar o mindset” eu perco a calma. O objetivo é o mesmo
das conhecidas AmWay, Herbalife, Uber e etc. em que se colocam milhares de
pessoas a trabalharem, sub-remuneradas no afã de sobrepujarem os baixos valores
pagos pela quantidade de serviço remunerado. Claro que os CEO’s, estando no
topo desta pirâmide semi-escravagista, carregam para si qualquer centelha de
valor produzido que não fica com o trabalhador. E o sonho do “empreendedorismo”
se encarrega de manter os trabalhadores em transe.
De
outro lado, o trabalho é atacado pelo neopentecostalismo de ocasião. O
trabalhador não é mais sustentado pelo fruto do seu suor, mas por uma barganha
espúria feita com um deus, mediada por um “pastor”. Oferta-se ao pastor, como
se a deus diretamente, e este benevolente ser celestial devolverá. O
interessante e paradoxal é que o objeto da oferta a deus é algo que você deve
reputar “sem valor”: dinheiro. Sua família, portanto, não é sustentada pelos
seus esforços, mas pela sua fé e “desprendimento material”. A evidência fática
de pastores milionários e fiéis pobres ou a evidência teológica de Jesus ter
atacado exatamente os vendilhões do templo nada significa. A retórica fervorosa
juntamente com os “milagres” sem nenhuma comprovação faz-nos pensar no retorno
ao medievo.
Não
foi apenas o espectro da direita que atacou o trabalho. Na esquerda também
viu-se um desconforto de se ser trabalhador. A esquerda comprou os termos
discursivos todos que pudesse substituir “trabalho”. Ao fazer isto e fortalecer
as identidades pós-modernas, a esquerda eclipsou a identidade “trabalhador”.
Empoderam-se mulheres, LGBT, quilombolas, negros e, muitas vezes sem darmo-nos
conta, a identidade proletária vai ficando escondida, carcomida e mesmo negada
frente às novas (e necessárias sim) bandeiras. Recentemente, a esquerda se
distanciou ainda mais dos trabalhadores ao cunhar o termo “pobre de direita”. É
um ataque claro ao trabalho. Supostamente uma crítica àquele trabalhador sem
consciência da sua posição de classe. Como se ler, conhecer e aceitar Marx
fosse uma obrigação originária. Junto com a carteira de trabalho o sujeito
recebesse uma cópia d’O Capital. O mais interessante é que, décadas de
discussão entre o espontaneísmo da consciência de classe ou o trabalho
diligente partidário nesta criação, somem no termo “pobre de direita”. No
fundo, culpa-se o trabalho por estarmos na crise que estamos.
Não
há o que se falar mais sobre a desconstrução do termo “Partido dos Trabalhadores”.
O ataque diuturno midiático, jurídico, patronal é evidente. E neste embalo,
hoje, o capital cristaliza nas mentes dos trabalhadores mesmos que retirar os
parcos direitos conquistados “ser-lhes-á benéfico”. A propaganda do governo
Temer é criminosa, para lá de imoral. Contam em telejornais que é preciso que o
trabalhador amealhe um milhão de reais durante sua vida, para poder “fazer a
sua aposentadoria” sem depender do “estado”. Num país em que altos funcionários
públicos ganham subsídios para tudo (desde paletó, gasolina, moradia e escola)
e políticos pedem quarenta milhões de reais para “comprar um apartamentozinho
para a mãe no Rio”.
É
preciso, para vencer o avanço da direita, recuperar o termo “trabalhador”.
Recuperar a noção racional de que é do trabalho que é gerado valor. Não de
algum deus ou de algum patrão benevolente. É preciso que nos reconheçamos como
trabalhadores, e, com isto, compreendamos que temos muito em comum pelo que
lutar. Não me interprete mal, todas as bandeiras são válidas, justas e
necessárias. Mas sem trabalho nenhuma delas poderá ser erguida. Por inanição.
Muito
prazer, Fernando Horta, hoje trabalhador da educação, mas já fui office-boy,
auxiliar administrativo, gerente assistente, assistente de pesquisa, carregador
de mudança, coordenador de CPD, cuidador de idosos e professor de xadrez.
Do
GGN
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