O processo
de Marisa contra a União por dano moral
A leitura
atenta de duas decisões do ministro Sérgio Moro mostra o desequilíbrio da
Operação Lava Jato. A absolvição de Cláudia Cruz se deu apesar da comprovação
de que mantinha, no exterior, uma conta corrente não declarada à Receita
Federal e que recebeu depósito superior a 1,1 milhão de dólares.
A lei
determina a absolvição sumária no caso de falecimento do acusado, mas Moro se
recusou a decretá-la no caso de Marisa Letícia Lula da Silva nos processos do
tríplex do Guarujá e do Sítio de Atibaia. Limitou-se a declarar extinta a
punibilidade – o que é óbvio: uma pessoa falecida não pode ser punida.
A diferença
de tratamento nos dois casos vai muito além.
Cláudia Cruz
demorou para ser intimada, recebeu seu passaporte de volta e, na sentença, Moro
chega a dizer que não está comprovado que o dinheiro depositado na conta de
Cláudia provém da corrupção:
“Assim,
provado, objetivamente, que a conta em nome da Kopek não recebeu valores que
possam ser rastreados até a Acona International, motivo pelo qual falta
materialidade à imputação do crime de lavagem de dinheiro, tendo por
antecedente o crime de corrupção. Então a imputação do crime de lavagem
descrito como fato 05 da denúncia é insubsistente.”
“Não
obstante, até o momento, foi de fato possível rastrear somente os ativos
recebidos em um acerto de corrupção, envolvendo o contrato de Benin, sendo que
o produto respectivo, de USD 1,5 milhão não foi destinado, sequer em parte, à
conta em nome da Kopek. Então é prematura a afirmação de que os demais ativos
também seriam produto de crimes contra a Administração Pública, sendo
necessário aprofundar o rastreamento.”
Cláudia Cruz
também não declarou à Receita Federal existência da conta no exterior nem o
respectivo saldo. Isso pode ser considerado ocultação de patrimônio. Nesse
caso, para absolver Cláudia, Moro aceitou a alegação da defesa de que quem
administrava os rendimentos da família e cuidava das declarações de renda era
Eduardo Cunha.
“A conta e
seus ativos não foram, de fato, declarados pela acusada nas declarações de
ajuste anual de imposto de renda, conforme evento 1, anexo48 a anexo 56.
Entretanto, a escusa apresentada pela acusada, de que era o seu marido quem
cuidava das suas declarações de rendimento, é plausível.”
Cláudia Cruz
foi apresentadora da TV Globo e sócia de uma empresa pela qual recebia salário
da emissora. Após sua saída da TV, processou a Globo e recebeu indenização.
Cláudia Cruz não era nenhuma mulher alheia aos próprios negócios. Mas Moro a
absolveu mesmo assim.
Para o
procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, que anunciou recurso à decisão, a
sentença do juiz teve fundamentação que vai além do direito: “Cremos que isso
decorre muito mais do coração generoso do dr. Sérgio Moro”.
Em relação a
Marisa Letícia, não se pode falar em direito, muito menos em generosidade. Além
de não absolvê-la, como manda a lei, o juiz a expôs à humilhação pública ao
divulgar uma conversa particular entre ela e o filho Fábio, aquela em que
Marisa diz que os coxinhas deveriam colocar a panela usada nos protestos em
local que ela entendia mais adequado.
Era uma
conversa privada, sem nenhum sentido para a investigação, mas foi exibida na TV
e em jornais.
Em maio do
ano passado, Marisa entrou com uma ação na Justiça Federal em São Paulo por
dano moral. O processo é contra a União, já que Moro divulgou a conversa na
condição de juiz federal. Quem defende a união são dois profissionais da
Advocacia Geral (AGU): Iolaine Kisner
Teixeira e Gustavo Vicednte Daher Montes, coordenador do Patrimônio Público.
Eles
transcrevem o trecho das panelas e, com base nas informações prestadas por
Sérgio Moro, sustentam que o diálogo era relevante para a investigação. Diz
Moro, segundo a AGU:
“A
autoridade policial, ao destacar o diálogo, teve ele por relevante”.
Moro
embaralha os fatos para explicar por que autorizou a divulgação do diálogo de
Marisa, mesmo não sendo ela alvo das interceptações telefônicas no dia em que a
conversa foi grampeada:
“Marisa
(está com Z no original assinado por Moro, transcrito pelos advogados da União)
Letícia Lula da Silva foi interceptada a pedido do MPF não por ser cônjuge do
investigado Luiz Inácio Lula da Silva, mas porque, na investigação de ocultação
patrimonial envolvendo possível crime de lavagem de dinheiro ou de corrupção e
que motivou a interceptação, seria, segundo o MPF, coproprietária no edifício
Solaris e do Sítio de Atibaia.”
Cláudia Cruz
e o marido
A conversa
de Marisa foi grampeada no dia 23 de fevereiro de 2016, com base no mandado
assinado em 18 de fevereiro. Ela não era uma das pessoas que tiveram o sigilo
telefônico quebrado através desse mandado. O nome de Marisa Letícia só vai
aparecer numa ordem de interceptação telefônica posterior, de 7 de março.
O Ministério
Público Federal, também ouvido nesta ação, não falou a verdade quando tentou
justificar por que Marisa Letícia estava sendo investigada.
“A despeito
de a empreiteira figurar ostensivamente como proprietária do imóvel, diversos
elementos angariados durante as investigações dão conta de informar que a
investigada, assim como sua família, frequentava o Edifício e desfrutava de sua
infraestrutura.”
Lula esteve
uma vez no apartamento e Marisa, duas, quando Léo Pinheiro tentou lhes vender o
imóvel. Não existe uma única testemunha ou prova de que tenham dormido uma
noite sequer no apartamento, mas, segundo o ofício assinado pelo Ministério
Público Federal, Marisa “desfrutava de sua infraestrutura”. No ofício, assinado
por Deltan Dellagnol e mais três procuradores, Marisa aparece como “Maria” em
um trecho.
O processo
contra a União corre na 23ª Vara da Justiça Federal, num prédio onde, no final
da década de 70, um juiz federal, julgando uma ação civil movida pela família
Herzog, responsabilizou a União pela morte do jornalista Vladimir Herzog e
sinalizou que os dias tenebrosos da ditadura militar estavam chegando ao fim.
Os excessos
da Lava Jato, com clara demonstração de uma balança com dois pesos e duas
medidas, também podem ser reconhecidos a partir desta ação que corre em São
Paulo. A República de Curitiba não deu paz a Marisa nem depois que ela morreu,
e deixou Cláudia Cruz livre. Certamente, não foi por generosidade.
Do DCM
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