As duas entrevistas de Roberto Mangabeira Unger – ao Valor
(clique aqui) e à
Folha (clique aqui)– esclarecem de vez as razões objetivas que
levaram ao racha das esquerdas e à eleição de Jair Bolsonaro.
Mangabeira confirma o relato de Fernando Haddad, de que foi
oferecido a Ciro o papel posteriormente desempenhado pelo próprio Haddad, de
ser o vice-presidente na chapa de Lula e assumir a candidatura quando Lula
fosse impedido.
Teria sido a fórmula ideal. Ciro seria imediatamente
catapultado para a liderança e com sua retórica eficiente teria condições de
vencer Bolsonaro no 2º turno.
Ciro esbarrou mais uma vez em seu grande defeito político. É
bom para as grandes estratégias e péssimo para as definições táticas,
prisioneiro de um temperamento forte, com uma autossuficiência deletéria, não
se enquadrando nos limites dos pactos partidários. Quando a estratégia é
bem-sucedida, entra em alpha e considera que tem a força. E não consegue
identificar os limites políticos para entrar na etapa seguinte.
Sua visão era a de que o período Lula estava definitivamente
encerrado e caberia a ele, Ciro, inaugurar o novo tempo, sem depender do
lulismo. Como Mangabeira deixa claro, Ciro confundiu posições táticas com
estratégicas.
No plano estratégico, era mais que hora do lulismo ceder
espaço a uma nova etapa, diluindo o protagonismo excessivo do PT, principal
combustível do pacto político mídia-Judiciário, e trabalhando as novas classes
que surgiam – e que Mangabeira corretamente identifica como o novo
empreendedorismo.
Ora, esse movimento era claro para o próprio Lula. Quando
tentou a aproximação com Eduardo Campos, sabia a dificuldade para o PT superar
a matriz original e abrir espaço para o novo temp.
No plano tático, no entanto, abrir mão do cacife eleitoral de
Lula foi um gesto de arrogância mortal. Não adiantou Haddad alertar Ciro, que
estava minimizando não apenas a influência de Lula, mas 70 anos de tradição
trabalhista no Brasil. Como pretendia montar uma frente deixando de lado o
principal ator político das oposições nas últimas décadas?
Sua visão estratégica foi bem-sucedida. Desenvolveu o
discurso mais eficiente de oposição à direita racional, de Geraldo Alckmin, e,
depois, à direita insana de Jair Bolsonaro, um discurso denso, com propostas
racionais e criativas, e uma retórica de guerra adequada para desmontar a
agressividade vazia de Bolsonaro.
Na frente tática, esboroou-se.
Depois que perdeu as eleições, a ira posterior de Ciro contra
o PT, foi apenas uma tentativa psicológica de enfrentar a ideia insuportável de
que foi ele próprio que jogou fora a presidência por um gesto mal pensado.
Nenhum de seus
argumentos se sustenta:
1. A alegação de que não queria
comprometer seu projeto de país com o do PT.
Como bem lembra Mangabeira, uma coisa é aliança tática,
visando ganhar as eleições e impedir o mal maior. Outra coisa, o projeto de
governo, que é atribuição exclusiva do presidente da República. Ele seria o
líder inconteste do projeto.
2. A alegação de que o PT não era aliado
confiável.
Como assim? Alianças se formam em torno de propostas,
conceitos e campos de interesse. Havia um amplo campo de interesses comuns para
consolidar alianças com os partidos de esquerda, incluindo o PT, assim como um
amplo arco de partidos de oposição, de centro-direita, para contrabalançar. Um
político habilidoso deitaria e rolaria em um quadro desses. Seria um quadro
confuso apenas para políticos com dificuldades para dialogar.
As acusações de que foi esfaqueado pelas costas, com o acordo
do PT com o PSB não se sustentam.
Queria o quê? Que depois de esnobado por Ciro Gomes, o PT
abrisse mão de alianças estratégicas, para não melindrar o adversário? E porque
foi possível uma aliança, conduzida por Lula, que interferiu nas eleições de
Pernambuco e Minas Gerais? E por que estados como a Bahia e o Maranhão que, em
circunstâncias normais estariam com Ciro, mantiveram-se fiéis ao candidato do
PT? Por conta do prestígio político de Lula, que Ciro minimizou.
Esses embates ajudaram a realçar a posição desprendida
de Haddad que, em todos os momentos, colocou os interesses do país acima de
seus interesses pessoais: quando apoiou a indicação de Ciro; e, depois, quando
encarou o desafio de conduzir uma campanha presidencial perigosa.
A nova etapa da
política
Mangabeira tem uma virtude e uma fraqueza nas utopias que
desenha para o país.
As virtudes são uma visão de futuro aprofundada, um desenho
sintético do que seria uma civilização tropical moderna.
No governo Lula, ele exercitava o papel de espécie de grilo
falante, identificando em cada Ministério propostas esquecidas, que se
enquadravam nesse desenho, dando-lhe publicidade.
A fraqueza, fruto de seu distanciamento do dia-a-dia do país,
é não acompanhar de perto o que ocorreu nesses anos todos. Foi assim quando
assumiu a Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo Dilma, incumbindo-se
da tal Pátria Educadora, sem noção algum dos avanços e das ideias modernizantes
que sacudiam o setor.
Com seu estilo de dar plena liberdade às iniciativas dos seus
Ministros, os dois governos Lula foram laboratórios riquíssimos de experiências
que poderiam ter marcado a etapa seguinte de desenvolvimento.
Muitas das propostas levantadas, agora, por Mangabeira, já
tinham sido iniciadas no governo Lula, inclusive as políticas de fortalecimento
das pequenas e microempresas com o MEI (Microempreendedor Individual), os
movimentos da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) e das fundações de
amparo à pesquisa em torno das startups. As movimentações iniciais do BNDES
(Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) na gestão Carlos Lessa,
de fortalecimento de arranjos produtivos locais. E
Dentro dessa linha, o fortalecimento da Apex (Agência de
Promoção das Inovações) definindo planejamentos sofisticados para o comércio
exterior, e da ABDI (Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial), como
futuro fórum de discussão de políticas industriais, desenvolvendo diagnósticos
e amarrando nas estratégias do BNDES e da Finep.
Toda essa dinâmica, em relação aos novos tempos da economia e
das políticas sociais, foi interrompida pelo estilo excessivamente
centralizador de Dilma Rousseff, pela nova lógica do BNDES e seus campeões
nacionais, e pelo início da crise econômica.
Em 2014, o CGEE (Centro de Gestão e Estudos Estratégicos) fez
um levantamento precioso das propostas existentes nas universidades, centros de
pesquisa e governo para os diversos temas de políticas públicas. Mas o tempo
político de Dilma já havia se esgotado.
O grande desafio do PT será alargar os horizontes do partido,
e se abrir para as novas ideias, já testadas com sucesso no governo Lula, e
para as novas militâncias.
GGN