Peça 1 – as ameaças à democracia
Antes de começar o nosso Xadrez de
hoje, sugiro uma releitura no artigo “Xadrez
do papel de Lula no mundo”. Ele faz um apanhado das ameaças atuais à
democracia liberal na Europa, América Latina e Brasil.
Hoje em dia há uma luta mundial
contra a democracia liberal, refletida na campanha indiscriminada contra a
classe política e na judicialização da política, com o poder sendo empalmado
por corporações que não foram eleitas pelo povo.
São expoentes dessa campanha, por
razões diversas, mas com objetivos comuns, os seguintes setores (para facilitar
a explicação, vamos personalizar essas forças)
Na base, movimentos tipo MBL e
seguidores de Bolsonaro.
No sistema jurídico, os Ministros
Luís Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin, um boquirroto, outro discreto, mas
ambos as maiores ameaças à democracia, como avalistas dos esbirros dos radicais
da base e dos avanços do estado de exceção.
Com o general Mourão, vice Bolsonaro,
entra em cena a corporação militar.
No quadro midiático, a Rede Globo.
O fator militar
No Painel Globonews da última semana,
o general-de-brigada da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva trouxe subsídios
importantes para se entender esse jogo e os movimentos dos quartéis.
É uma repetição do que ocorre com o
estamento jurídico, ambos estruturas hierarquizadas.
A base das Forças Armadas, “formada
por gente mais humilde”, é Bolsonaro, diz o general. No topo, o pensamento
dominante é do general Mourão, um repetidor de slogans econômicos da Globonews.
Com diferenças pontuais, ocorre o
mesmo no Judiciário. Na base – Lava Jato, procuradores e juízes de 1ª instância
– a influência maior é o MBL e Bolsonaro. Na cúpula, compartilha-se do mesmo
sentimento anti-política – e, portanto, anti-democracia liberal – do Estado
Maior das Forças Armadas, e a mesma presunção de se tornar condutores do país.
Com exceção de temas morais, os dois
grupos têm a mesma visão sobre o chamado interesse nacional, defendendo o
desmonte do Estado – respeitando obviamente os privilégios das respectivas
corporações -, a abertura indiscriminada da economia, a plena liberdade dos
capitais, a criminalização de toda atividade política, a defesa da força do
Estado contra os recalcitrantes, a subordinação cega ao mercado, demonstrando
uma ignorância líquida fantástica sobre o conceito de interesse nacional, ainda
mais em duas instituições fundamentais para o funcionamento do Estado.
É importante anotar dois movimentos
retratados pelos jornalistas de Brasilia. O primeiro, do general Mourão
policiando as tolices de Bolsonaro. O segundo, de fontes militares policiando
as impropriedades do general Mourão. Dia desses, o próprio general Villas Bôas,
comandante das FFAAs, divulgou em seu Twitter um artigo que discorria sobre as
estratégias dos militares para se aproximarem da opinião pública. São sinais
nítidos de construção interna de um discurso político que transcende o papel
das Forças Armadas.
Fornecendo a base de mobilização da
opinião pública e de construção do cimento ideológico, a onipresente Rede Globo
e seus diversos braços midiáticos.
Peça 2 – o tigre que provou carne fresca
Para se chegar ao estagio atual do
estado de exceção, não se imagine um movimento coordenado, centralizado, com
alto comando e estratégias previamente definidas.
Há um fato inicial que deflagra o
processo e alguns agentes indutores – como foi o caso da colaboração da Lava
Jato com o DHS dos Estados Unidos. Mas a base foi o antipetismo e os movimentos
de rua estimulados pela Globo.
Depois, o movimento ganha uma
dinâmica própria e vai se amoldando a cada nova conformação de força, à medida
em que ganha musculatura e se populariza junto à opinião pública. Do combate à
corrupção política, ingressou-se no estado de exceção com a repressão
violenta aos movimentos de rua, a perseguição a movimentos sociais, invasões de
universidades, e outros centros de pensamento crítico, criminalização de
jovens manifestantes, perseguição por parte de juizes, procuradores e delegados
a quem ousasse questionar seus poderes. Tudo sob o estímulo irresponsável de
Ministros do STF.
E aí, consolida-se uma das leis
máximas da política: as moléculas tendem a ser atraídas pelos corpos que
possuem maior massa crítica. Deixaram a onda crescer até se transformar em
tsunami. E ela foi atraindo para seu centro de gravidade os chamados agentes
oportunistas: no STF, Luis Roberto Barroso, Carmen Lúcia e Luiz Edson Fachin;
na Procuradoria Geral da República Rodrigo Janot e, depois, Raquel Dodge.
Era questão de tempo para que a nova
conformação engolisse os formuladores originais, a classe política aliada da
mídia e do Judiciário.
Peça 3 – caindo à ficha
Há muitos e muitos anos fala-se na
aliança entre PSDB e PT visando preservar a política dos avanços dos inimigos
da democracia. Sempre esbarrou na resistência das respectivas lideranças.
A mais influente liderança do PSDB,
Ministro Gilmar Mendes, do STF, foi um dos principais agentes da radicalização,
ao tentar impugnar a reeleição de Dilma no Tribunal Superior Eleitoral,
criminalizar meras incorreções administrativas na prestação de contas da
campanha, e denunciar, como lavagem de dinheiro, até vaquinhas da militância
para pagar multas de lideres condenados.
Mas, com sua inegável competência, e
noção do poder de Estado, foi o primeiro a perceber o tamanho do maremoto que
se avizinhava, quando se liberou geral para os abusos de juizes, procuradores e
delegados. No Supremo, ele, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello se
tornaram os vigilantes da democracia e do respeito às leis.
Agora, a ficha caiu também para outra
liderança histórica do PSDB, Tasso Jereissatti. Para o jornalismo político da
velha mídia, todos os atos são explicados por diferenças pessoais – no caso,
com Alckmin -, revanche, inveja e coisa e tal. O grito de Tasso foi mais que
isso: foi uma autocrítica que abriu espaço para uma próxima aliança contra a
besta.
FHC, que sempre foi conduzido, será o
próximo a chamar o partido à razão.
Peça 4 – a estratégia Lula-Haddad
É esse o pano de fundo para a
estratégia que vem sendo desenhada por Fernando Haddad – certamente
planejada por Lula.
Os jornais, com a incrível capacidade
de acreditar nos mitos que criam, anunciam que Haddad está fazendo um movimento
em direção ao centro. Ora, a própria indicação de Haddad a vice de Lula, meses
atrás, já era parte desse movimento.
Já havia plena consciência que, sem
um arco ampliado de alianças, o PT não conseguiria sair do gueto a que foi
jogado pelo golpe.
Desde seus tempos de Prefeitura,
Haddad cultivou relação civilizada com setores políticos fora do espectro
fisiológico. Chegou a ganhar inimizades dos setores mais radicais do PT, ao não
brandir slogans petistas tradicionais contra FHC, Geraldo Alckmin e outros
tucanos moderados. Sempre respeitou Ciro Gomes, e foi por ele respeitado.
Embora sem a contundência de Ciro,
manteve uma fidelidade férrea aos princípios que abraçou, de racionalização,
modernização sem ruptura da gestão pública e do jogo político. O que não o
impediu, em plena Globo, de apontar dois fatores essenciais de modernização do
país: o fim do cartel da mídia e do cartel dos bancos.
O risco Bolsonaro poderá acelerar o
pacto político-partidário e conferir musculatura a um provável governo Haddad.
Nelson Barbosa está avançando em Contatos com o meio empresarial. Um governo de
coalisão ajudaria enormemente o novo governo a enfrentar o maior desafio
político desde a redemocratização: a reconstrução institucional, implodida pelo
golpe..
No STF, a eleição de Dias Toffoli
para a presidência abre uma janela de oportunidade, depois da vergonhosa gestão
de Carmen Lúcia. Os primeiros movimentos de Toffoli, propondo-se a pacificar a
casa e a se aproximar dos demais poderes, indicam tomada de consciência sobre a
gravidade do momento atual.
Ontem, a investida do Ministro
Ricardo Lewandowski, criticando a anemia dos órgãos de controle do Ministério
Público e da magistratura, e defendendo a lei contra abuso de autoridade, foi
mais uma demonstração que o legalismo está se revigorando no Supremo.
Há uma enorme luta pela frente. Mas,
agora, se tem um roteiro claro e lógico a ser seguido.
GGN