*Artigo originalmente
publicado na edição desta terça-feira (10/4) do jornalFolha de S.Paulo, com o
título "Direito como tópica"
A crescente
imprevisibilidade das decisões proferidas por juízes e tribunais vem
alimentando uma visível descrença no Poder Judiciário.
Esse fato traz de volta
uma velha questão: o Direito, afinal, é uma ciência ou simples técnica
retórica? A resposta a essa pergunta tem suscitado acaloradas discussões ao
longo de várias gerações de juristas.
Tal debate não se
colocava ao tempo dos antigos romanos. O Direito, para eles, tinha cunho
objetivo e eminentemente prático, empregado como instrumento para consolidar a
paz social, inclusive nos vastos territórios que conquistaram.
Após a queda do Império
Romano, a jurisprudência latina incorporou os usos e costumes dos chamados
"povos bárbaros", dando origem a um sistema híbrido, que mesclava
leis escritas e práticas ancestrais, o qual perdurou por toda a Idade Média.
Com a prevalência dos
ideais iluministas, surgiram as primeiras Constituições, concebidas para
enquadrar o poder político, e também as grandes codificações, destinadas a
racionalizar a intrincada legislação que sobreviveu à época medieval. Na crença
de que esses novos textos esgotavam todo o Direito, exigiu-se dos juízes que
fossem aplicados literalmente, sendo-lhes vedada qualquer interpretação.
O aprofundamento da
Revolução Industrial fez com que as sociedades se tornassem mais complexas e
dinâmicas, ficando logo evidente que os diplomas legais recém-editados não
logravam abarcar a totalidade do Direito. Como era de esperar, passaram a
apresentar inúmeras lacunas, que tiveram de ser preenchidas mediante o emprego
da analogia e de outros expedientes.
Várias escolas de
hermenêutica, então, se sucederam. Algumas tentaram resgatar a imperatividade
das leis escritas, a exemplo da positivista, cujo maior expoente foi o
austríaco Hans Kelsen (1881-1973).
Outras, de índole
relativista, ao contrário, buscaram ampliar a criatividade dos juristas, como
aquela chefiada pelo alemão Theodor Viehweg (1907-1988).
Viehweg repudiava o
tradicional método interpretativo, consistente em subsumir fatos a normas
previamente selecionadas, segundo um raciocínio lógico-formal. É que ele
concebia o Direito como uma tópica, cujo significado somente poderia ser
desvendado caso a caso, por meio de uma argumentação pontual. Críticos não
tardaram a concluir que tal concepção, levada a extremos, geraria enorme
insegurança.
Parece que hoje alguns
magistrados, sobretudo os da área penal, voltaram a considerar o Direito uma
mera tópica, da qual é possível extrair qualquer resultado. E o fazem pela
adoção desabrida de teorias estrangeiras, em especial germânicas e
anglo-saxônicas, quase sempre incompatíveis com nossa tradição pretoriana, que
extrai o Direito essencialmente de fontes formais.
Chegou a hora de
colocarmos um paradeiro nessa indesejável relativização do Direito, a qual tem
levado a uma crescente aleatoriedade dos pronunciamentos judiciais,
retornando-se a um positivismo jurídico moderado, a começar pelo estrito
respeito às garantias constitucionais, em especial da presunção de inocência,
do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes.
Ricardo
Lewandowski é ministro do Supremo Tribunal
Federal e professor titular de Teoria do Estado da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo.
Do Conjur
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