Luigi
Ferrajoli, 77 anos, pensador e jurista de fama mundial, o mais categorizado
aluno de Norberto Bobbio, publicou excelente artigo na CartaCapital.
A
cultura jurídica democrática italiana está profundamente perplexa com os
acontecimentos que conduziram ao processo de impeachment da
presidente Dilma Rousseff e ao processo penal contra Lula. Tem-se a impressão
de que esses acontecimentos sinalizem uma preocupante carência de garantias e
uma grave lesão aos princípios do devido processo legal, dificilmente
explicáveis se não com a finalidade política de pôr fim ao processo reformador
realizado no Brasil nos anos da Presidência de Lula e de Dilma Rousseff, que
tirou da miséria 40 milhões de brasileiros.
Ascânio
Seleme e João Roberto Marinho entregam a Moro o prêmio “Faz Diferença” (Foto de
Fabio Rossi / Agencia O Globo)
Antes
de mais nada, a carência de garantias constitucionais da democracia política
evidenciada pelo impeachment com o qual foi destituída a presidente
Dilma Rousseff, legitimamente eleita pelo povo brasileiro. O crime imputado é o
previsto no artigo 85 da Constituição brasileira. Apesar de esta norma ser
formulada em termos não absolutamente precisos, parece-me difícil negar, com
base em uma interpretação racional, e na própria natureza do instituto do impeachment,
que não existiam os pressupostos para a sua aplicação. O crime previsto por
essa norma é, de fato, um crime complexo, consistente, conjuntamente, de um
delito-fim de atentado à Constituição e de um dos sete delitos-instrumentos
elencados no art. 85 como crimes-meios.
Pois
bem, na conduta de Dilma Rousseff, admitindo-se que se caracterize um desses
sete crimes-meios, certamente não restou caracterizado o delito-fim de atentado
à Constituição. Tem-se, portanto, a impressão de que, sob a forma de impeachment,
tenha sido, na realidade, expresso um voto político de desconfiança, que é um
instituto típico das democracias parlamentares, mas é totalmente estranha a um
sistema presidencialista como o brasileiro. Sem contar a lesão dos direitos
fundamentais e de dignidade pessoal da cidadã Dilma Rousseff, em prejuízo da
qual foram violadas todas as garantias do devido processo legal, do princípio
da taxatividade ao contraditório, do direito de defesa e da impessoalidade e
imparcialidade do juízo.
Quanto
ao processo contra o ex-presidente Lula, aqui na Itália não conhecemos os
autos, senão sumariamente. Ficamos, todavia, impressionados com a sua estrutura
inquisitória, manifestada por três aspectos inconfundíveis das práticas
inquisitivas.
Em
primeiro lugar, a confusão entre juiz e acusação, isto é, a ausência de
separação entre as duas funções e, por isso, a figura do juiz inquisidor que em
violação ao princípio do ne procedat iudex ex officio promove a
acusação, formula as provas, emite mandados de sequestro e de prisão, participa
de conferência de imprensa ilustrando a acusação e antecipando o juízo e,
enfim, pronuncia a condenação de primeiro grau. O juiz Sergio Moro parece, de
fato, o absoluto protagonista deste processo. Além de ter promovido a acusação,
emitiu, em 12 de julho deste ano, a sentença com a qual Lula foi condenado à
pena de 9 anos e 6 meses de reclusão por corrupção e lavagem de dinheiro, além
de interdição para o exercício das funções públicas por 19 anos. É claro que
uma similar figura de magistrado é a negação da imparcialidade, dado que
confere ao processo um andamento monólogo, fundado no poder despótico do
juiz-inquiridor.
O
segundo aspecto deste processo é a específica epistemologia inquisitória,
baseada na petição de princípio por força da qual a hipótese acusatória a ser
provada, que deveria ser a conclusão de uma argumentação indutiva sufragada por
provas e não desmentida por contraprovas, forma, ao contrário, a premissa de um
procedimento dedutivo que assume como verdadeiras somente as provas que a
confirmam e, como falsas, todas aquelas que a contradizem. Donde o andamento
tautológico do raciocínio probatório, por força do qual a tese acusatória
funciona como critério prejudicial de orientação das investigações, como filtro
seletivo da credibilidade das provas e como chave interpretativa do inteiro
processo.
Apenas
dois exemplos. O ex-ministro Antônio Palocci, sob custódia preventiva, em maio
deste ano, tinha tentado uma “delação premiada” para obter a liberdade, mas o
seu pedido foi rejeitado porque não havia formulado nenhuma acusação contra
Lula ou Dilma Rousseff, mas somente contra o sistema bancário. Pois bem, esse
mesmo réu, em 6 de setembro, perante os procuradores do Ministério Público,
mudou sua versão dos fatos e forneceu a versão pressuposta pela acusação para
obter a liberdade. Totalmente ignorado foi, ao contrário, o depoimento de
Emílio Odebrecht, que, em 12 de junho, havia declarado ao juiz Moro nunca ter
doado qualquer imóvel ao Instituto Lula, ao contrário do que era pressuposto
pela acusação de corrupção.
A
terceira característica inquisitória deste processo é, enfim, a assunção do
imputado como inimigo: a demonização de Lula por parte da imprensa. O que é
mais grave é o fato de que a campanha da imprensa contra Lula foi alimentada
pelo protagonismo dos juízes, os quais divulgaram atos protegidos pelo segredo
de Justiça e se pronunciaram publicamente e duramente, em uma verdadeira
campanha midiática e judiciária, contra o réu, em busca de uma legitimação
imprópria: não a subjeção à lei e à prova dos fatos, mas o consenso popular,
manifestando assim uma hostilidade e falta de imparcialidade que tornam difícil
compreender como não tenham justificado a suspeição.
Palocci
e Odebrecht
O
juiz Moro, que continua a indagar sobre outras hipóteses de delito imputadas a
Lula, antes da abertura do processo concedeu numerosas entrevistas à imprensa,
nas quais atacou abertamente o imputado; promoveu as denominadas “delações
premiadas”, consistentes de fato na promessa de liberdade como compensação pela
contribuição dos imputados à acusação; até mesmo reivindicou a interceptação,
em 2016, do telefonema no qual a presidente Rousseff propunha a Lula de
integrar o governo, publicizada por ele sob a justificativa de que “as pessoas
tinham que conhecer o conteúdo daquele diálogo”.
A
antecipação do juízo não é, por outro lado, um hábito somente do juiz Moro. Em
6 de agosto deste ano, em uma intervista ao jornal O Estado de S.
Paulo, o presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), perante
o qual prosseguirá o segundo grau, declarou que a sentença de primeiro grau “é
tecnicamente irrepreensível”.
Semelhantes
antecipações de juízo, segundo os códigos de processo de todos os países
civilizados – por exemplo os artigos 36 e 37 do Código Penal Italiano – são
motivos óbvios e indiscutíveis de abstenção e afastamento do juiz. E também no
Brasil, como recordou Lenio Streck, existe uma norma ainda que vaga – artigo 12
do Código da Magistratura Brasileira de 2008 – que impõe ao magistrado o dever
de se comportar de modo “prudente e imparcial” em relação à imprensa. Os
jornais brasileiros, invocando a operação italiana Mani pulite do
início dos anos 90, se referem à operação Lava Jato que envolveu Lula como
sendo a “Mãos Limpas brasileira”. Mas nenhuma das deformações aqui ilustradas
pode ser encontrada no processo italiano: uma investigação que nenhum juiz ou
membro do Ministério Público italiano que nela atuaram gostaria que fosse
identificada com a brasileira.
São,
de fato, os princípios elementares do justo processo que foram e continuam a
ser desrespeitados. As condutas aqui ilustradas dos juízes brasileiros representam,
de fato, um exemplo clamoroso daquilo que Cesare Beccaria, no §
XVII, no livro Dos Delitos e das Penas, chamou “processo ofensivo”,
em que “o juiz – contrariamente àquilo por ele chamado “um processo informativo”,
onde o juiz é “um indiferente investigador da verdade” – “se torna inimigo do
réu”, e “não busca a verdade do fato, mas procura no prisioneiro o delito, e o
insidia, e crê estar perdendo o caso se não consegue tal resultado, e de ver
prejudicada aquela infalibilidade que o homem reivindica em todas as coisas”;
“como se as leis e o juiz”, acrescenta Beccaria no § XXXI, “tenham interesse
não em buscar a verdade, mas de provar o delito”. É, ao contrário, na natureza
do juízo, como “busca indiferente do fato”, que se fundam a imparcialidade e a
independência dos juízes, a credibilidade de seus julgamentos e, sobretudo,
juntamente com as garantias da verdade processual, as garantias de liberdade
dos cidadãos contra o arbítrio e o abuso de poder.
Acrescento
que mais de uma vez expressei minha admiração pela Constituição brasileira,
talvez a mais avançada em temas de garantias dos direitos sociais – os limites
orçamentários, a competência do Ministério Público quanto aos direitos sociais,
a presença de um Procurador atuante no Supremo Tribunal Federal – a ponto de
constituir um modelo daquilo que chamei de “constitucionalismo de terceira
geração”. Foi em razão da atuação desse constitucionalismo avançado que no
Brasil, como recordei no início, se produziu nos últimos anos uma
extraordinária redução das desigualdades e da pobreza e uma melhora geral das
condições de vida das pessoas.
Os
penosos eventos institucionais que atingiram os dois presidentes, que foram
protagonistas desse progresso social e econômico, trouxeram à luz uma incrível
fragilidade do constitucionalismo de primeira geração, isto é, das garantias
penais e processuais dos clássicos direitos de liberdade: uma fragilidade sobre
a qual a cultura jurídica e política democrática no Brasil deveriam refletir
seriamente. Sobretudo, esses acontecimentos geram a triste sensação do nexo que
liga os dois eventos – a inconsistência jurídica da deposição de Dilma Rousseff
e a violência da campanha judiciária contra Lula – e, por isso, a preocupação
de que a sua convergência tenha o sentido político de uma única operação de
restauração antidemocrática.
Essa
sensação e essa preocupação são agravadas pelas notícias, referidas de modo
concordante e sereno em muitos jornais, que os juízes estariam procurando
acelerar os tempos do processo para alcançar o mais rápido possível a
condenação definitiva; a qual, com base na “Lei da Ficha Limpa” impediria Lula
de candidatar-se às eleições presidenciais de outubro de 2018. Tratar-se-ia de
uma pesada interferência da jurisdição na esfera política, que teria o efeito,
entre outros, de uma enorme deslegitimação, antes de mais nada, do próprio
Poder Judiciário.
DCM
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