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Pense-se, por exemplo, no paradoxo que
seria uma campanha, paga com dinheiro público, com o objetivo de recolher
assinaturas para um projeto de lei de iniciativa “popular”, na qual se pede para “quem for contra a corrupção”
assinar o documento, isso sem que os signatários sejam informados do conteúdo
do projeto, das repercussões constitucionais, sociais ou mesmo econômicas das
medidas propostas e, em especial, dos reflexos do projeto no campo das
liberdades públicas: sem o necessário debate público, pautado por informações
corretas e dados confiáveis, um projeto como esse corrompe-se em instrumento de
manipulação da população.
Vive-se
um momento delicado que conjuga o empobrecimento tanto da linguagem, típico dos
momentos de fascistização (que se
caracterizam pela ode à ignorância, o medo da liberdade e a aposta em soluções
de força para os mais variados problemas) quanto do imaginário
(instaurou-se um modelo de pensamento simplificador, incapaz de compreender a
complexidade dos fenômenos, a partir de imagens binárias e bélicas) com um
processo de mutação do simbólico, com a perda da importância dos limites ao
exercício do poder e dos valores transcendentes (tais como “a dignidade da pessoa humana”, “os direitos fundamentais”, etc.) em
proveito do regime valorativo das mercadorias, de modo que nada (nem mesmo a ética ou os valores
constitucionais) possa ser tido como mais importante do que a livre
circulação das mercadorias, o
desenvolvimento do espetáculo de imposição de penas, a implementação da visão
de mundo de atores jurídicos ou a satisfação dos desejos/ perversões da parcela
da sociedade que detém o poder econômico e/ou político.
Por
tudo isso, não causa surpresa o tratamento simplista conferido aos fenômenos da
“violência” e da “corrupção”, bem como falhas na
percepção da conexão entre esses dois dados da realidade. A violência, por exemplo, só é percebida em seu sentido vulgar,
naquilo que Zizek chamou de “violência
subjetiva”[1], a
violência de uma pessoa contra outra, o aspecto visível do fenômeno violência.
Esquece-se que, ao lado da violência
vulgar, existe a violência estrutural/sistêmica[2] (aquela que é
consequência do funcionamento e das perversões dos sistemas econômico, político
e, por evidente, do sistema de justiça) e a violência simbólica (a violência encarnada na linguagem, i.e.,
na imposição de um universo de sentido, muitas vezes condicionado por
preconceitos, por pré-compreensões autoritárias). E o pior: não se enxerga que a violência visível é,
em regra, produto de uma outra, oculta.
Por
desconhecer a conexão entre as diversas formas de violência, ações que, no
plano do discurso oficial, direcionam-se à redução da violência ou da
corrupção, no lugar de reduzir esses fenômenos, podem aumentá-los. E fazem
isso, por exemplo, ao manter prisões
desnecessárias, determinar conduções
coercitivas fora das hipóteses legais ou, o que se tornou moda entre atores jurídicos que buscam o reconhecimento
de um auditório autoritário, decretar prisões cautelares (sem que exista
uma condenação irrecorrível) para obter delações e/ou confissões, em clara
instrumentalização da pessoa e consequente violação da dignidade humana.
O mesmo se dá em relação ao fenômeno
corrupção. Corrupção, por definição,
é a violação dos padrões normativos do sistema. Não raro, com a boa intenção (a
mesma que enche o inferno) de “combater a corrupção” do sistema político, acaba-se por corromper o sistema de justiça
e mesmo as bases democráticas.
Pense-se, por exemplo, no paradoxo que
seria uma campanha, paga com dinheiro público, com o objetivo de recolher
assinaturas para um projeto de lei de iniciativa “popular”, na qual se pede para “quem for contra a corrupção”
assinar o documento, isso sem que os signatários sejam informados do conteúdo
do projeto, das repercussões constitucionais, sociais ou mesmo econômicas das
medidas propostas e, em especial, dos reflexos do projeto no campo das
liberdades públicas: sem o necessário debate público, pautado por informações
corretas e dados confiáveis, um projeto como esse corrompe-se em instrumento de
manipulação da população.
Pense-se,
também, na violência sistêmica que a ampliação das hipóteses de prisão
preventiva para o “combate à corrupção” causaria, levando-se em consideração o
quadro de hiperencarceramento já existente e diante da constatação de que “para
combater a corrupção seriamente é preciso antes melhorar o sistema institucional
de controle porque o Direito Penal sempre chega tarde, quando o dano já está
feito. É como dizer que punindo o genocida, evita-se o genocídio. É justo punir
o genocida e o corrupto, mas não vai prevenir a corrupção nem evitar o
genocídio. É mentira dizer que a corrupção vai ser derrotada com o Direito
Penal”.[3]
Nos
últimos dias, a população (que continua desinformada sobre o tema e, quando
muito, é levada a perceber a questão como uma “luta do bem contra o mal”) tem
presenciado o confronto (pontuado por declarações messiânicas e comentários
dignos de um jogo de várzea no qual se disputa para saber quem viola mais a
legalidade democrática) entre os idealizadores das chamadas “Dez medidas contra
a corrupção” (que, vale esclarecer, inclusive para aqueles que assinaram a
proposta de projeto sem ler, são bem mais do que dez medidas… e muitas das
quais contrárias à Constituição ou aos princípios éticos) e os parlamentares
que produziram mudanças no texto original.
Famoso
ator jurídico (que, em razão da exploração midiática sobre um caso penal
transformado em espetáculo, todos sabemos também fazer palestras em igrejas
neopentecostais) chegou a afirmar que o Congresso Brasileiro estava a produzir
um Frankenstein (na realidade, a citação era ao “monstro” que Mary Shelley fez
nascer das mãos do Dr. Victor Fankenstein). E com certa razão (embora,
aparentemente, o autor da comparação desconheça que esse “monstro” da
literatura foi pensado como um Prometeu moderno).
O
projeto aprovado é péssimo (criou, por exemplo, novas hipóteses de crime de
responsabilidade para magistrados e membros do Ministério Público a partir de
conceitos jurídicos indeterminados e abertos, o que é um risco não só à
independência dos atores jurídicos como também abrirá oportunidade ao arbítrio
e aos controles ideológicos no momento da aplicação da lei) e pode, de fato,
ser chamado de um Monstro.
Todavia,
os defensores das “Dez medidas” patrocinadas pelo MPF (na tentativa de criar,
como percebeu o jurista Marcelo Semer, “um código para chamar de seu”) esquecem
que o texto inicial, se não era um Frankenstein (na medida em que é
integralmente voltado à ampliação do poder penal, mesmo que isso custe o
afastamento da legalidade democrática), poderia ser chamado de um zumbi de
tendências fascistas, no qual o desejo de “comer cérebros”, imortalizado nos
filmes de George A. Romero, foi substituído pelo desejo de relativizar e
afastar direitos e garantias fundamentais. Um projeto “zumbi”, vale frisar,
porque parcela considerável da população assinou e foi levada a apoiar uma
alteração legislativa sem conhecer o conteúdo do projeto ou ter consciência das
consequências de sua aplicação.
O
que há de comum entre o projeto zumbi originário e o “monstro” criado pela
Câmara dos Deputados? A crença, por vezes ingênua, por vezes repetida por
má-fé, na lei penal para resolver os mais variados e graves problemas sociais.
Se as “dez medidas” originais, em nome da “guerra contra a corrupção”,
corrompiam o sistema de direitos e garantias individuais, o texto aprovado na
Câmara dos Deputados corrompe o sistema de prerrogativas necessário à atuação
dos atores jurídicos. Leis que são apresentadas como soluções mágicas para
problemas complexos como a corrupção e a violência, mas que acabam por gerar
mais corrupção e violência. Leis que não funcionam e que serão substituídas por
novas leis penais que também não vão funcionar.
RUBENS CASARA é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais,
Juiz de Direito do TJ/RJ, Coordenador de Processo Penal da EMERJ e escreve a
Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio
Sotelo Felippe e Patrick Mariano.
[1] ŽIŽEK, Slavoj. Violência. Trad. Miguel
Serras Pereira. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 17.
[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Entrevista ao
Conjur. Encontrado em:
http://www.conjur.com.br/2015-nov-01/entrevista-raul-zaffaroni-jurista-ministro-aposentado-argentino
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