A sentença,
segundo elementar princípio da Teoria Geral do Processo e dogma do processo
penal civilizado, é o epílogo, o desfecho de toda ação judicial. Trata-se da
síntese resultante da necessária conflagração dialética entre a tese acusatória
e a antítese defensiva, estruturadas à vista da prova recolhida nos autos.
A partir da
notícia da ocorrência de uma infração penal realizam-se investigações,
empreendem-se diligências, ouvem-se indiciados e testemunhas, oferecem-se
denúncias, apresentam-se contraposições defensivas, colhem-se provas perante o
juiz da causa, postulam-se condenações e absolvições e somente então têm lugar
as decisões que rechaçam a imputação ou punem os acusados. Esse democrático e
secular ritual sofre radical inversão, ou, como diz o povo, “é virado de
ponta-cabeça” nos processos impregnados de fatores político-partidários ou
disputas ideológicas.
Nesses as
fases procedimentais, com exceção da defesa, movem-se no sentido inverso, é
dizer, de trás para a frente. É a preconcebida condenação, e não a isenta
apuração de um fato delituoso, que motiva, orienta e subordina toda a sinergia
processual. O inquérito policial é dirigido não como uma apuração imparcial,
mas como um encomendado e irrevogável libelo incriminador de mão única, que só conduz
a um e inexorável resultado: a condenação ardentemente desejada.
Se constitui
truísmo reafirmar que a sentença deve encerrar a essência da verdade real dos
fatos garimpados na instrução com o escopo de formar o convencimento final do
julgador, a apuração que isso precede deve seguir o paradigma do método
investigativo, ou seja, um imparcial construto factual para a demonstração da
materialidade e dos indícios de autoria do delito. Os fatos têm de ser
historicamente reconstituídos à luz de evidências documentais, periciais,
testemunhos, confissões, etc., vedada a prova ilícita. Mas, no “auto de fé” que
constitui o processo político, tal script é dramatúrgico: a regra é a de que
nem é preciso haver delito.
Para
forjá-lo certos roteiristas (uma espécie de societas punitionis) cuidam de
inserir, como num filme ou romance histórico, achegas ficcionais. As “provas
condenatórias” são costuradas com a linha imaginária do desejo (wishful
thinking). Basta um anódino grão fático para construírem seu castelo de areia
(sem trocadilhos). Na sua falta, recorrem à arte divinatória, com argumentos de
dedução retórica do tipo “talvez”, “só pode ser”, “tudo indica”, “disseram que
disseram”. Aliás, adivinhar tem sido um dom paranormal a mais exigido dos
advogados desta quadra brasileira, pois muitas vezes os inquéritos são secretos
e o investigado nem sabe de que é suspeito.
O processo
desfigurado por paixões políticas é cediço nos regimes de exceção, nas
autocracias, mas pode vicejar na ambivalência das conjunturas em que o Estado
de Direito esteja vincado pela hipertrofia da supremacia partidária,
ideológica, ou pela intolerância de maiorias sobre minorias. A causa política
do mais forte subjuga o direito do mais fraco. Urdem-se maliciosas tessituras
normativas e, sobretudo, praticam-se heterodoxias procedimentais para, em
cumplicidade autoritária, perseguir oponentes indesejáveis.
Mas, tal
como a mulher de César, o disfuncional processo precisa manter as aparências. O
réu tem sempre direito de defesa, desde que manejado para tentar provar a sua
inocência – embora seja uma platitude nas Cortes assinalar que o ônus da prova
é do acusador. À acusação tudo se permite, mas à defesa negam-se testemunhas,
reperguntas, recursos, diligências e perícias. Seu principal papel é apenas legitimar
o “julgamento”. Afinal, Alfred Dreyfus na França, em 1894, Sacco e Vanzetti nos
Estados Unidos, em 1927, e os bolcheviques perseguidos nos Processos de Moscou,
em 1936, tiveram defesa “ampla”… Mas seus advogados, como todos os que oficiam
em processos de conteúdo político, realizaram o suplício de Sísifo, carregando
paciente e incansavelmente no lombo as evidências da inocência que a sentença
pré-escrita teimava sempre em lançar novamente morro abaixo…
À parte a
caracterização política do processo, a ser feita fora dos autos, a missão do
advogado é realizar a defesa técnica de seu constituinte. Seu breviário é a
lei, sua oração é a lei, sua fé é a lei. Às curvaturas do rito procedimental
cabe-lhe esgrimir a retidão da norma legal. O paradoxo é que em tais casos essa
é a mais fácil e a mais difícil de todas as lidas.
O defensor
já entra em desvantagem por ver a presunção de inocência substituída pela
certeza preconcebida da culpa. Maneja a luz contra a treva, o fato contra a
ficção, a realidade contra a fantasia, mas pena para demonstrar que ovo não tem
pelo, jabuti não sobe em árvore, cavalo não tem chifre – embora tais
deformidades ilustrem certas peças de acusação… É uma libertária porfia levada
a efeito em estado de absoluta solidão.
Advogado que
compõe a banca de defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
encurralado por seis processos políticos (com direito a media trial e power
point em horário nobre), empenhamo-nos em realizar sua defesa técnica, em todas
as instâncias, na esperança de que a cascata persecutória dê lugar à fonte
cristalina onde se possa saciar a sede de justiça. A convicção que nos move é a
manifestada pelo poeta inglês John Milton, em 1644, na Areopagítica: “Deixemos
que a verdade e a falsidade se batam. Quem jamais viu a verdade levar a pior
num combate franco e livre?”.
Com
Informações do Vi o Mundo, por José Roberto Batochio, advogado criminalista,
ex-deputado federal pelo PDT-SP e ex-presidente do conselho federal da OAB, em
artigo para o Estadão.
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