Aula Magna na abertura dos cursos de Mestrado e Doutorado da PUC-SP.
Conheci Manoel Bomfim através de seu livro “América Latina,
males de origem”, no início dos anos 90. Era a reedição de um livro pequeno,
escrito logo após a Proclamação da República.
Mal saído da ditadura, após os transtornos do governo Collor,
o país discutia intensamente o que queria ser, qual o modelo de Estado, de
Nação. E ali, no livro, havia duas pérolas.
A primeira delas, a descrição objetiva de um modelo de país,
com o Estado atuando como estimulador das iniciativas internas, com uma
definição preciosa, sobre onde atuar e onde estimular a sociedade.
A segunda, a descrição da crise do Encilhamento, que quase
destruiu o país. Dizia Bomfim que o Estado entra em crise, por conta de sua
apropriação por interesses de grupos. Como o Estado emite moedas, o que era uma
crise exclusiva do Estado transforma-se em crise do país. Quando a população
começa a entender esse vício, surge a figura do financista, o sujeito que
estudou na Europa, que presumivelmente conhece a ciência da economia e que vem
com fórmulas salvadoras, destinadas apenas a desviar a atenção dos abusos que
são cometidos contra o Estado.
O livro descrevia com precisão o que ocorreria cem anos
depois no Brasil, com os economistas do Cruzado. De sua leitura para frente,
passei a acompanhar a história recente do país de outra maneira, como uma
releitura do que ocorreu no início da República. Desses estudos resultou o
livro “Os cabeças de planilha”, de 2005, no qual mostro que a remonetização do
Real recorreu ao mesmo golpe aplicado por Ruy Barbosa no Encilhamento, visando
beneficiar banqueiros aliados. E, juntando as peças, um estudo de Gustavo
Franco, do segundo time do Real, publicado ainda nos anos 80, descrevendo o
Encilhamento e as razões que levaram ao fracasso Ruy Barbosa. E, por fracasso,
não se entenda a crise em si, mas o golpe do enriquecimento de grupos aliados
através da remonetização da economia.
Mas Bomfim foi muito além desse seu livro. Não chegou a ser
um historiador, no sentido clássico de se dedicar ao trabalho sistemático de
reconstituir a história. Nem chegou a ser um cientista, apesar de suas
inequívocas contribuições ao estudo da psicologia. Era um educador, uma pessoa
com uma visão extraordinariamente moderna e perspicaz do que ocorria à sua
volta, que lançava seu olhar crítico sobre todas as formas de conhecimento.
Em um momento em que os “iluministas” julgavam que tudo se
resolveria com o avanço da ciência, e usavam a ciência até para justificar
teorias raciais, Bomfim defendia a tese de que não existe ciência neutra. Toda
forma de conhecimento reflete os interesses do cientista. A maior contribuição
à isenção científica, portanto, seria identificar os interesses dos cientistas
e sua influência sobre as conclusões a que chegavam.
Na parcialidade do cientista, uma observação que cai como uma
luva nas elucubrações sociológicas do inacreditável Ministro Luis Roberto
Barroso, do Supremo Tribunal Federal: “Como seria fácil impingir teorias e
conclusões sociológicas, destemperando a linguagem e moldando a forma à
hipócrita imparcialidade, exigida pelos críticos de curta vista!... Não;
prefiro dizer o que penso, com a paixão que o assunto me inspira; paixão nem
sempre é cegueira, nem impede o rigor da lógica.”
Suas observações se encaixam admiravelmente no que se vê no
Brasil de hoje, especialmente quando se vale de um dos métodos mais instigantes
de conhecimento: a interação de diversas ciências, uma ajudando a complementar
a outra.
Bomfim juntou princípios da sociologia, biologia e economia
para uma análise abrangente do país, fugindo completamente do padrão de seus
contemporâneos, e dos intérpretes que viriam a seguir, de centrar a análise em
características de raça.
Dez anos antes dos primeiros estudos sobre psicologia social,
Bomfim levantava a tese de que, para se entender os processos psicológicos, era
necessário uma visão sociológica de maneira a tratar os problemas psicológicos
não apenas como questões individuais, mas dentro de matrizes socioculturais (https://goo.gl/uNW6mt).
As primeiras tentativas dessa junção surgiram na Europa na
segunda metade dos anos 20. Dez anos antes, Bomfim já antecipara essa
tendência.
Através da biologia – era médico formado na Bahia, psicólogo
formado na França – foi o primeiro a questionar as teorias raciais no país. A
partir desse questionamento, buscou as explicações para as interpretações
sociológicas, que tratavam os males do país como consequência da “sub-raça” que
se formou da miscigenação brasileira. Desmontou as teorias raciais. Qual a
razão do subdesenvolvimento, então?
E aí, foi bater no modelo de Estado, herança das relações
coloniais presentes na formação brasileira.
A raiz de todos os vícios
Em uma tese sobre Bomfim, de Rebeca Gontijo, doutoranda da
Universidade Federal Fluminense, há uma constatação de Bomfim que anteciparia
algumas das falhas centrais das brasilianas brasileiras, tão bem expostas
recentemente por Jessé de Souza.
Ele diz que "contra a natureza, contra o espírito
americano, contra a própria história” foi construída uma história do Brasil com
o intuito de demonstrar que a nação deveria pertencer à dinastia que fizera a
Independência. Diz Rebeca: "Empreiteiros dessa história", os
historiadores teriam deturpado ou esquecido qualidades essenciais do caráter
brasileiro, "inventando vícios e crimes por conta da nação". No seu
dizer, uma "história triste" assim foi feita, merecendo "exclamações
de protestos, repugnâncias, cólera, motejo, repulsa..."; contudo, o
intuito da crítica era destacar na historiografia (ou, nas
"historiagens") os "hiatos, acasos, erudições chulas e elogios
parvos" que constituíram efeitos antinacionais”.
No livro “Brasil na História”, Bomfim vê o homem como um ser
moral, “cuja subjetividade lhe permitiria escapar das influências externas (do
meio) e internas (da hereditariedade psíquica e/ou biológica), subordinando-as
aos seus interesses”.
E aí se entra no centro de sua análise sobre a importância do
conceito de Nação.
Existiam duas formas de interesse, segundo Bomfim. Numa
ponta, os interesses gerais da espécie humana — "moral, justiça,
humanidade...". Na outra, os interesses particulares —
"egoístas".
Os interesses gerais se fortalecem através das relações
sociais que, ao favorecerem "sentimentos socializadores", e teriam
contribuído para o predomínio de necessidades coletivas, necessárias para o
progresso humano.
A maneira de consolidar os interesses gerais seria através do
conceito de Nação – e Bomfim antecede em quase meio século o pensamento de
Celso Furtado. Nação se organiza através da comunhão de tradições, científicas,
políticas, se opondo à ideia da prática científica neutra. E a consolidação se
daria através da Educação, como processo de formação do conceito de
nacionalidade, visto como a redenção do país para superar a herança colonial.
Bem antes de Paulo Freire, sua proposta era de que os professores deveriam
introduzir elementos nacionais em todas as disciplinas, da matemática, as aulas
de moral, política e sociologia.
A maneira de incutir nos jovens os interesses gerais seria
através da reformulação da História como matéria escolar. Bomfim era crítico do
mero ensino de enunciação dos fatos. Dizia que esse modelo tornava o “ensino inteiramente
árido, estéril, difícil e inútil”. Sem contextualizar, o ensino da história
seria uma recitação de “nomes de príncipes, listas de datas, indicação de casas
reinantes”. O ensino da história serviria para mostrar em que medida os
indivíduos influem sobre os acontecimentos. E, especialmente, “de que forma se
refletem sobre a alma dos heróis as necessidades e as aspirações gerais”. Seria
a maneira de estimular os estudantes a entender os conceitos de interesses
gerais da nação.
“Desde a virada do século, Manoel Bomfim defendia a instrução
popular como precondição para o progresso humano que, por sua vez, conduziria
ao progresso da sociedade. Esse papel progressista atribuído ao ensino lhe
teria permitido afirmar a viabilidade do Brasil diante das teses deterministas
que naturalizavam o atraso e o progresso das nações, orientando-se pelas noções
de meio e raça”, conclui Rebeca.
O intelectual maldito
Quando saiu o livro, em conversa com o professor Antônio
Cândido, ele me contou que seu primeiro contato com a obra de Bomfim foi ainda
na adolescência. E quem chamou sua atenção para o autor foi seu pai. A reedição
do “América Latina, males de origem” se deveu a uma sugestão do próprio
Cândido.
A repercussão da reedição da obra fez com que Francisco
Weffort, quando se tornou Ministro da Cultura, a incluísse em reedição das
brasilianas, as obras fundamentais sobre o Brasil.
Em seguida foi reeditado o “Brasil Nação”. A editora me pediu
que escrevesse a orelha. O prefácio foi de alguns estudiosos, entre os quais o
respeitado crítico Wilson Martins que fez uma crítica descabida. Escrito em
1928, o livro reflete o profundo pessimismo de Bomfim, àquela altura em fase
terminal de câncer, com a República e mostrando que estava pior que na
monarquia. Martins via uma incongruência: como, quem criticou tanto os
Bragança, teria mudado de opinião assim. Simplesmente porque a República Velha
acentuou os maiores vícios do império.
O prefácio do livro, do próprio Bomfim, é a comprovação de
que o passado sempre ressurge no Brasil (https://goo.gl/JZPec8).
As razões para o esquecimento de Bomfim são claras. No início
da República, a abertura indiscriminada da economia era fruto de uma construção
ideológica que atribuía todos os males do país ao povo. Bomfim ousou divergir e
identificar o problema nas estruturas de poder, que refletiam o passado
colonial brasileiro.
Logo após o lançamento do “América Latina, Males de Origem”,
Bomfim foi alvo de uma campanha sistemática comandada por Silvio Romero,
intelectual sergipano, segundo Antônio Cândido, seguidor da escola da crítica
destrutiva e da inveja intelectual (além de Bomfim, tentou desconstruir Machado
de Assis).
Outros críticos do sistema de poder no pais, como Joaquim
Nabuco, se salvaram adaptando sua opinião ao status quo posterior.
Alguns estudos sobre Bonfim:
“Os sentidos da retomada de Manoel Bomfim no século XXI”
Sidinilha Sampaio de Almeida (https://goo.gl/bdQ9xe)
“Sobre a presença de Manoel Bomfim no pensamento social
brasileiro, no centenário de América Latina, Males de Origem”, de Ronaldo Conde
Aguiar, autor de uma biografia de Bomfim (https://goo.gl/3NDr74)
Do GGN