Peça 1 – a barafunda
ideológica
No
Chile, Michelle Bachelet foi derrotada por Rafael Piñera. Agora, Piñera está sendo
derrotado pelas ruas. Na Bolívia, Evo Morales produziu um milagre econômico; e
está correndo riscos com Carlos Mesa. Na Argentina, Cristina Kirchner foi
derrotada por Maurício Macri, que está prestes a ser derrotado por Alberto
Fernandez. O Peru elegeu Matín Vizcarra, que está prestes a ser expelido do
cargo pelo Congresso.
O
grupo de Lima se esfarela, deixando o chanceler Ernesto perdido pelo caminho,
depois de considerar que a direita tinha tomado o poder irreversivelmente na
América Latina.
Qual
a lógica disso tudo: o mundo caminho para a esquerda ou para a direita?
Esses
movimentos têm apenas um ponto em comum: todos são contra o poder vigente. Se o
poder é de direita, a oposição assume as bandeiras da esquerda; e vice-versa.
Essa
confusão ocorre sempre que se sai de um quadro de estratificação política sem
forças definidas. Quando a América Latina começou a sair das ditaduras
militares dos anos 80, os primeiros tempos foram de caos e perda de rumo, com
as ruas elegendo o liberalismo de Fernando Collor e Carlos Andres Perez para,
em seguida, alijá-los do poder.
Peça 2 – as semelhanças
com o início do século
Desde
os anos 90, passei a acompanhar os movimentos cíclicos da política e da
economia, comparando com o que ocorreu cem anos antes, das últimas três décadas
do século 19 até a crise de 1929.
O
modelo é o mesmo.
Há
um ciclo de internacionalização do capital, com a cooptação de economistas, que
vendem a ideia de que a plena liberdade de capitais promoverá o desenvolvimento
global. Primeiro, desenvolvem os países centrais. Depois, vão se esparramando
pelos países periféricos, levando o progresso. Para que o movimento seja
bem-sucedido, é necessária a liberalização total dos fluxos de capital, a
redução da influência das nações e a desregulação.
Montam-se
alianças com financistas dos países periféricos, consegue-se força política.
Criam-se
então fenômenos similares aos de cem anos depois. Uma enorme concentração de
renda, bolhas especulativas sucessivas, até que o modelo de democracia mitigada
se esboroa, criando um vácuo político que se espalha pelo mundo.
O
descrédito em relação à democracia, os abusos das elites, e a falta de rumos
faz com que se busquem soluções primárias, de apologia do ódio, de criação do
inimigo interno e externo. Esses movimentos levam a dois modelos
revolucionários, o leninismo, na Rússia, e o nazifascismo na Europa, em ambos
os casos tendo nos financistas o inimigo a ser combatido – no caso do nazismo,
com a manipulação trágica de personalizá-los em uma raça.
A
salvação da democracia veio pelas mãos do presidente norte-americano Franklin
Delano Roosevelt, propondo o grande pacto nacional, generoso e solidário. As
maiores resistências eram internas, da Suprema Corte, dos grandes empresários,
da mídia convencional, resistindo a ampliar os direitos dos trabalhadores.
Houve
uma imensa guerra cultural, na qual entrou o cinema, com os filmes de Frank
Capra, os novos meios de comunicação, com o avanço do rádio, e os empresários
mais modernos. Nelson Rockefeller teve papel central, ao assinar um acordo
trabalhista com os funcionários do Rockefeller Center. E entrou a visão de
estadista de Roosevelt para enfrentar o boicote da Suprema Corte.
Roosevelt
resistiu um mandato, entrou desgastado no segundo e morreu antes da queda.
Suponha que, em lugar de um Roosevelt, assumisse o poder um Donald Trump.
Encontraria eco amplo na sociedade americana. O que seria da humanidade?
A
crise atual repete o ciclo de cem anos atrás. A desregulação levou a uma
concentração de riqueza inédita, a uma sucessão de bolhas culminando na grande
crise de 2008 e na desmoralização da ideia de democracia representativa.
Agora,
o mundo balança entre movimentos pendulares de ultradireita, movimentos de
centro-esquerda, mas com a bandeira da globalização representando o financismo
desvairado do início dos anos 20. Em algum momento aparecerão os Coringas dos
novos tempos.
Quem
apresentará a fórmula vitoriosa: Roosevelt ou Trump, civilização ou barbárie,
eis a questão.
Peça 3 – civilização ou
barbárie
É
nesse quadro que se insere o fenômeno Bolsonaro, a maior prova da falência do
sistema política e institucional brasileiro.
Ele surfou
na onda do salvacionismo mais primário, aquele que vê a fonte de todos os males
no inimigo político (o PT), nos criminosos, nos de fora (imigrantes, minorias)
e no marxismo cultural, seja lá isso o que for. Mesmo para um país atrasado,
como o Brasil, a dose foi excessiva, despertando parte do país para a
importância de se recuperar os chamados valores civilizatórios.
É
em torno desse movimento que se articulam as forças políticas, especialmente os
setores mais cosmopolitas. Nos últimos tempos, seus porta-vozes passaram a
vocalizar conceitos politicamente corretos, a mencionar a importância da redução
da desigualdade social, de políticas que atendam os mais necessitados.
Obviamente, passam ao largo de modelos tributários mais progressistas, que
taxem o capital, por exemplo.
As
manifestações de Armínio Fraga, o discurso social de Luciano Huck, demonstram
que o efeito Bolsonaro abriu duas brechas: crise e oportunidade.
Do
lado do centro-direita, as apostas se concentram em Luciano Huck, e no desafio
de transformá-lo de celebridade em líder político. É a aposta mais bem situada.
João Dória Jr se perdeu na própria esperteza.
Do
lado das esquerdas, o grande nome continua sendo Lula. Saindo da cadeia, poderá
ocupar seu lugar de articulador político. Mas como ficará o antilulismo, que se
transformou na segunda maior força política do país e só agora começa a ser
superado pelo antibolsonarismo?
Ocorre
que a imprensa criou uma armadilha para o país, com a demonização de Lula.
Qualquer país civilizado considera ex-presidentes como ativos nacionais,
relevantes para ajudar a solucionar momentos de impasse. Na crise do mensalão,
foi esse o comportamento de José Sarney, Itamar Franco, Fernando Collor. A
exceção sempre foi Fernando Henrique Cardoso, com seu imenso egocentrismo.
Lula
tem uma tradição de conciliação e de articulação. Conseguirá exerce-la tendo o
Sistema Globo a demonizá-lo em todos os momentos?
Tenho
para mim, que o maior empecilho ao pacto nacional é a Globo, justamente o grupo
mais ameaçado pelo avanço da ultradireita.
Peça 4 – as dificuldades
do pacto
Pactos
não dependem apenas da boa vontade, mas da definição de modelos de
governabilidade, de um conjunto de ideias norteadoras, a partir das quais se
cria o ambiente favorável, vão sendo reduzidas as desconfianças recíprocas e
emergem as lideranças capazes de levar o projeto adiante.
Não
será uma frente liberal fechada com Huck, ou uma frente de esquerda pura que
resolverá os problemas do país. O pacto passa pela capacidade de todos os
setores modernos de caminharem juntos.
Há
inúmeros problemas a se considerar. De parte da esquerda, uma desconfiança
profunda em relação ao mercado. Da parte da direita, uma resistência radical em
relação ao protagonismo dos movimentos sociais. No máximo, admitem políticas
sociais de cima para baixo, como uma concessão dos bem pensantes.
Um
modelo pactuado exigirá que os dois lados sentem juntos, com estadistas de lado
a lado capazes de administrar as resistências de sua tropa. É um braço de
guerra em que os dois lados precisam soltar a corda ao mesmo tempo.
Todos
esses dilemas serão resolvidos pelo grande estadista intemporal, o Sr. Crise. A
dúvida é quanto tempo será necessário, quanta tragédia a mais será suportada,
até que o Sr. Crise se apresente?
Até
proponho que o primeiro passo do pacto seja colocar os principais
interlouttores em uma sala de cinema para assistirem conjuntamente “Bacurau” e
“Coringa”. Com um refresco para Blade Runner.
Do
GGN