Flávio Dino
Para Flávio Dino,
vivemos uma “berlusconização” da política: “Agora temos nosso próprio
Berlusconi, o Doria”.
O governador do
Maranhão fez uma profunda análise do momento político que vivemos a partir dos
resultados das eleições de domingo. Falou sobre o sucesso obtido pelo PCdoB em
seu estado, onde 46 prefeitos comunistas foram eleitos, e fez projeções para o
futuro da esquerda. A partir dos resultados das eleições do último domingo (2),
faz uma análise do atual momento político do país.
Para Dino, que em 2014
acabou, de forma histórica, com a era Sarney em seu estado ao vencer as
eleições, a forma como a Lava Jato foi instrumentalizada, inspirada na Operação
Mãos Limpas, da Itália, somada a outros fatores, provocaram uma “berlusconização”
do país com seus primeiros frutos já dando as caras. A vitória do empresário
João Doria (PSDB) em São Paulo seria um exemplo dessa situação.
Ìntegra da entrevista.
Como
vai, governador?
Tudo bem, Renato.
Sobrevivendo…
É
exatamente essa a palavra para definir esse momento…
É verdade… É um
desafio. Mas já era uma tendência clara. A gente veio em uma viragem à direita
muito nítida. O eleitor de 2014 foi o último suspiro de uma etapa da luta da
esquerda no Brasil, e agora acho que esse quadro eleitoral força uma revisão.
Qual
a sua avaliação desse resultado em nível nacional, não só do ponto de vista do
Maranhão, mas de tudo o que aconteceu e o quanto isso tem relação com a eleição
de 2014, manifestações de 2013, o próprio impeachment?
Nós tivemos uma
trajetória ascendente do campo democrático, progressista e de esquerda de,
praticamente, 1982 até 2014, de modo continuado. Se você observar a eleição de
1982, o Brizola ganhou no Rio, por exemplo, como um símbolo. Um mês depois veio
a Constituinte, aí depois veio a campanha das Diretas, a derrota do Maluf. Na
Constituinte, uma articulação progressista, que conseguiu contribuições
importantes. Em 1989, o Lula vai para o segundo turno. Enfim, mesmo com
derrotas, era uma trajetória que apontava para as vitórias adiante, porque Lula
perdeu em 1989, mas em 1988 o PT havia elegido a Erundina, Olívio Dutra, em
Porto Alegre.
O que acontece é que em
2013 houve uma disputa ideológica em torno do sentido daquelas manifestações e
houve um movimento extraordinariamente que surgiu com uma agenda de esquerda.
Era uma agenda de fortalecimento e ampliação de um serviço público de
transporte, de mobilidade, uma agenda classicamente à esquerda, que acabou
sendo fantasticamente apropriada ideologicamente em uma outra direção. Há uma
mudança da palavra de ordem principal, que era a questão dos 20 centavos, da
mobilidade. Virou a questão da corrupção. Acho que o marco zero está ali, nessa
mudança do sentido das manifestações de 2013.
Em 2014, vem um ponto
que desequilibra esse jogo, que é a estruturação do partido da Lava Jato, desse
bloco de poder. Qual a resultante do fortalecimento desse bloco no terreno da
política, já que gostam tanto de falar de Operação Mãos Limpas, sem entender
direito as consequências? Nós temos uma situação similar, meio italiana nesse
sentido também, que é “berlusconização” da política. Agora nós temos o próprio
Berlusconi que é o João Doria.
Quais são as
características? Um afastamento da população da política, resultados indo na
direção da abstenção, voto nulo e branco. Ou seja, uma descrença, uma crise de
representação muito aguda, uma fragmentação do sistema partidário, de forma que
você consegue identificar derrotados, mas tem dificuldade de identificar
vencedores, porque tirando essa vitória notável do Doria, em São Paulo, você vê
que o próprio PSDB teve derrotas. O PMDB teve derrotas expressivas. Então,
temos uma desestruturação de todo o sistema institucional e, em terceiro lugar,
que é o elemento que nos diz respeito diretamente, que é uma profunda crise da
esquerda. Como vimos, fomos reduzidos a praticamente 20% da sociedade. Quando
você olha para São Paulo, Haddad mais Erundina, dá 20%. No Rio, Freixo mais
Jandira, dá 20%. João Paulo em Recife, 20%. Alice, em Salvador, 17%. Saímos de
um modelo em que nós representávamos um terço da sociedade e disputávamos o
centro para uma perigosa tendência. A esquerda foi pulverizada e reduzida a 20%
praticamente da expressão institucional da política. Isso, naturalmente, não
pode ser afirmado de forma aritmética. O pensamento de esquerda, a meu ver, é
maior que 20% da sociedade. No que se refere ao jogo institucional, nós fomos
reduzidos a um quinto. Qual o problema? É que com um quinto você não polariza o
centro político, porque não há força suficiente. Isso explica por que nós
ficamos fora do segundo turno de Porto Alegre: foram dois candidatos mais à
direita. Nós estamos diante desse desafio enorme, de crise de representação
política, fragmentação da esquerda, que tem dificuldade de se colocar para a
sociedade em outros termos. E aliado a isso você tem uma recessão e um
desemprego brutal, que naturalmente leva à ‘direitização’ da política. O
nazifascismo surgiu do ventre de uma grande crise econômica. Crises econômicas
agudas levam a saídas autoritárias, normalmente. A crise de 1929 foi o
combustível do nazifascismo dos anos 1930. Nós vivemos isso em termos
internacionais. Não somente na política brasileira. Mas qual é o desafio? Falar
de esperança e de propostas que sejam galvanizadoras no sentimento, no quadro
objetivo de muitas derrotas, porque há a Lava Jato como território hostil. A
sociedade indiferente à política, o desemprego e a recessão dizimando a luta
social. Não é uma coisa simples. A vantagem é que a história não acaba, você
não pode ser fatalista de achar que tudo acabou.
Isso
que eu ia te perguntar, Flávio. Esses processos costumam ser cíclicos e, de
alguma forma, a sociedade tem outra velocidade, inclusive por conta das redes
digitais e da globalização. Você não acha que esse ciclo pode durar menos do
que se anuncia nesse momento?
Eu tenho convicção
disso. Porque uma sociedade perversamente desigual e injusta tem impasses muito
profundos que você não consegue resolver. A meu ver, com políticas que reforcem
exatamente a desigualdade, injustiça e a negação de direitos, isso conduz a uma
inviabilização da sociedade, por que significa, por exemplo, aprofundar a
violência.
Acho que é um ciclo.
Mas também acho que acertando o movimento nós conseguimos sair disso. Agora, o
que não pode é acreditar no princípio da inércia. É aquela história do Marx lá
no Manifesto: em última análise, “o capitalismo cairá de podre. O proletariado
é o coveiro do capitalismo”. Bom, tem que ter o elemento subjetivo. Não adianta
uma subjetividade conduzir a uma certa tendência histórica sem você,
ativamente, construir os sujeitos para fazer com que essa objetividade se
materialize nos fatos. Essa á principal questão, reorganizar nossos sujeitos
históricos em um quadro profundamente adverso. Acho que houve uma
desestruturação do nosso campo, você não pode acreditar num fatalismo às
avessas, de no fim tudo vai dar certo. O que seria uma bobagem, não é o mais do
mesmo que vai resolver. Acho que é uma revisão profunda em duas questões:
primeiro, reconhecer que não se pode disputar eleição com agenda de denúncia, o
que foi tentado em alguns estados. Pela agenda de denúncia do impeachment, do
golpe, não é suficiente. É preciso, portanto, agregar um programa que seja
prospectivo, porque não existe na sociedade voto de gratidão, por mais que as
pessoas reconheçam os feitos do passado. Elas precisam acreditar que o que você
apresenta vai ampliar benefícios para o futuro e, no mínimo, preservar
conquistas ou ampliar benefícios. Essa é a primeira questão. Uma questão mais
programática, eu diria, que demanda mais debate de atualização mesmo. Acho que
aí a questão mais aguda é a agenda dos serviços públicos e da igualdade de
oportunidades. Como você coloca isso muito claramente, é a questão que nos
coloca em contradição, com esse modelo mais privatizado, centralizador. A gente
tem que ir por aí, nesse sentido um pouco mais profundo de uma agenda de
conciliação. Mas uma agenda de um viés distributivo mais agudo. E em segundo
lugar, além dessa questão programática, a estrutura, porque em um quadro de
defensiva, não se pode desperdiçar energia, não se pode desperdiçar forças. O
povo do nosso campo fez isso intuitivamente. Ao fazer voto útil no Haddad ou
fazer voto útil no Freixo, a sabedoria do povo…
Você tem que encontrar
um jeito de repactuar as relações com o que se identifica mais claramente com a
esquerda, mas também com outros rostos que podem e devem ser repolarizados,
como o PDT, o PSD. Você tem que tentar um diálogo, apesar das dificuldades
óbvias com cada um desses. Mas você tem personalidades. A própria luta social,
movimento social, a mídia progressista. Você tem outros atores que não estão na
burocracia partidária que você tem que traduzir em uma organicidade que seja
expressão eleitoral desse pensamento, desse ideário. A grande lição é que hoje
ninguém está em condição de fazer isso sozinho. Nem o PT, nem o PCdoB, nem o
PSOL. Também vi algumas análises malucas dizendo que o PSOL é o novo PT. Isso é
um delírio. Cá para nós. E nós do PCdoB não podemos apontar o dedo. Nós também
estamos no mesmo barco. As derrotas que o PT colheu, nós também colhemos, com a
exceção do Maranhão.
É
isso que eu queria te perguntar. Você foi muito bem aí, percebe-se que tem um
modelo que deu certo, queria que você falasse dele.
Acho que o nosso
principal mérito para colher um resultado tão bom foi ter conseguido
paradoxalmente manter vivo o sentimento da mudança. Em pouco tempo, um ano e
meio, conseguimos mostrar para a população que é possível, ainda que de modo
incipiente, claro, fazer mudanças assertivas na vida das pessoas, no modo de
governar. Nisso nós conseguimos manter credibilidade, apesar do governo
enfrentar dificuldades econômicas, fiscais, do desemprego na sociedade, a gente
manteve um estoque e credibilidade para continuar falando de mudanças e a
população acompanhar. O tempero principal foi a capacidade de em pouco tempo,
com poucos meios, gerar alguns resultados simbólicos que mantiveram nossa
capacidade de aglutinar o campo pela alta aprovação popular.
Quantos
prefeitos vocês elegeram no Maranhão?
Somando PCdoB e
aliados, são 217. Do PCdoB são 46. O principal partido. Os partidos que mais
elegeram foram o PCdoB, em segundo o PDT e em terceiro, o PSDB, que aqui é o
PSDB do B, aliado aqui também. Mas são os três principais partidos. Aí depois
vem o PSB, que também é nosso aliado, aí vem o PT, que hoje também é nosso
aliado. Então, temos um campo ampliado, que apoia o governo e elegeu 217, tendo
como vértice esse apoio ao governo, que é liderado por um dirigente, um militante
da esquerda. É aquela história: você só consegue um estoque de força capaz de
polarizar outros setores e foi isso que a gente perdeu. O Lulismo só foi
possível porque teve a força popular capaz de polarizar outros setores
políticos. Na hora que a gente perdeu isso deu um conjunto de tragédias, que
perdeu força própria e a capacidade de exercer uma força centrípeta, uma força
de atração ou gravitacional, sobre outros setores. Aqui a gente manteve. Acho
que por isso o resultado foi tão bom.
Parabéns,
Flávio. Eu não consigo comemorar direito, porque a porrada no Brasil foi tão
dura. Não bastasse a do Brasil tem a da Colômbia.
Pois é. É uma questão
que alguns desses aspectos que a gente falou tem uma certa dimensão global,
internacional. A crise da democracia é tão profunda que o principal líder
político do planeta é um monarca, o Papa Francisco. Porque você tem a política
muito deteriorada, isso é próprio das crises econômicas e da recessão. E dá
nisso, um cara como o Flávio Bolsonaro, um farsante, faz 15% só no Rio de
Janeiro. As pessoas estão comemorando a chegada do Freixo no segundo turno,
detonando os paulistas, e eu falei: vamos fazer as contas. A votação da Jandira
e do Freixo é exatamente igual a da Erundina e do Haddad. Só que lá para ir
para o segundo turno teve um Bolsonaro que é pior que um Russomanno. Não dá
para falar que o Rio é uma maravilha.
Russomanno, quando foi
deputado comigo, tinha todos os problemas do mundo óbvios, mas pelo menos você
consegue estabelecer minimamente um acordo semântico e uma gramática para, pelo
menos, falar com ele. [Com Bolsonaro] É outra gramática, outro dicionário,
outro mundo. É a barbárie, fora dos marcos da civilização, fora dos marcos da
filosofia liberal, da civilização ocidental, como se fosse fora do pensamento
grego, é outra coisa. Não dá para você realmente imaginar isso, fez 15% dos
votos.
Forum - Renato Rovai