O artigo
anterior desta coluna tratou do que chamei de “destino planetário do
Brasil”. Extravagante, mas fez sucesso. Vale a pena, talvez, insistir no tema.
O brasileiro está precisando de alento. O artigo foi meio delirante, eu sei. É
o que tende mesmo a acontecer – quando alguém sonha sozinho, o sonho pode
degenerar em delírio. Mas quando muitos sonham juntos, ah, aí o delírio pode
virar realidade. E, convenhamos, o nosso futuro está logo ali.
O
leitor quer um exemplo de como o Brasil pode cumprir seu destino planetário?
Vou recorrer a uma ideia do Saturnino Braga, um daqueles brasileiros que sabem
pensar grande e que, em meio à tormenta, não perdeu a confiança no
Brasil. Ognuno sa navigare col buon vento, dizem os italianos. O desafio é
vencer tempestades.
Antes
da pandemia, participei com Saturnino de uma mesa de debates no Rio de Janeiro
sobre a Nova Rota da Seda, aquela grandiosa iniciativa chinesa, lançada em
2013, que consiste essencialmente de uma coleção de projetos de infraestrutura.
O nome da iniciativa carrega todo um simbolismo histórico, ao evocar as antigas
rotas de comércio entre a Ásia e a Europa numa época em que a China era a economia
mais desenvolvida e poderosa do mundo. A Nova Rota da Seda não se circunscreve
às áreas originais e alcança, também, a África e a América Latina.
Todos
falavam com admiração da iniciativa chinesa, quando de repente o nosso
Saturnino resolveu inovar. E saiu-se com uma daquelas belas improvisadas que o
brasileiro, como poucos, consegue produzir. Por que não, perguntou ele,
uma iniciativa brasileira – uma Nova Rota da Boa Esperança, que uniria as
Américas, a Europa, a África e a Ásia? O Brasil refaria, assim, o caminho das
Grandes Navegações Portuguesas. Este seria o lema que poderia abrigar e
energizar todo um conjunto de projetos e programas de desenvolvimento na
América Latina, na África e na Ásia, impulsionados pelo Brasil.
A
ideia ressoou em mim porque há muito alimentava o sentimento de que o nosso
país é, na verdade, o herdeiro natural do espírito que moveu a aventura global
de Portugal nos séculos 15 e 16. Em Washington, cheguei a ensaiar essa ideia,
em pequena escala, ao trazer para nosso grupo no FMI países de língua
portuguesa da África e da Ásia. Estávamos refazendo, eu dizia na época, tongue
in cheek, a trajetória das Grandes Navegações.
PORTUGAL,
VÍTIMA DO COMPLEXO DE VIRA-LATA
Antes
de desenvolver um pouco a ideia do Saturnino, preciso abrir um rápido parêntese
sobre Portugal. O brasileiro, em geral, pouco sabe, pouco entende de Portugal.
O que é um absurdo arrematado, por duas razões pelo menos.
A
primeira razão, óbvia, é que os portugueses, junto com outros povos, nos
constituíram. Mais do que isso: Portugal liderou a criação desse imenso país
que viria a ser o Brasil. E nos legou, entre outras coisas, a bela língua
nacional – para o meu gosto mais bonita, diga-se de passagem, em várias das
pronúncias brasileiras do que na da sua pátria original.
A
segunda razão é que Portugal foi uma nação realmente extraordinária. Aquele
pequeno país, numa da pontas da Europa, transformou-se em vanguarda da expansão
mundial da civilização europeia. Lançou-se ao Oceano Atlântico, percorreu o
litoral da África, descobriu o caminho para as Índias, contornando o temível
Cabo das Tormentas, rebatizado Cabo da Boa Esperança pelo rei João II. E chegou
não só à Índia, mas à China e ao Japão. De quebra, atravessou o Atlântico e
criou o Brasil.
O
brasileiro sempre teve alguma dificuldade de se dar conta da importância de
Portugal para nós e para o mundo. Antigamente, o mais comum era um simples
desprezo, expresso nos lamentos do tipo “pena que não fomos colonizados pelos
holandeses ou pelos franceses”, “pena que eles não conseguiram fincar pé no Rio
de Janeiro, em São Luís e em Pernambuco”. O nosso destino teria sido outro,
imaginava-se. Só faltava transformar Calabar (um precursor do marreco de
Maringá) em herói nacional. O que se escondia por trás disso (e nem se escondia
muito) era um velho conhecido nosso – o indefectível complexo de vira-lata. O
desprezo por Portugal era, no fundo, uma faceta da tendência nacional à
autodepreciação.
Mais
recentemente, surgiu outra maneira de atacar os portugueses. Em certos círculos,
a tendência é estigmatizá-los como invasores, colonizadores, escravocratas e
genocidas. Tratam de reescrever a história do ponto de vista dos derrotados e
escravizados. É um esforço legítimo, que permitirá uma visão muito mais
completa e justa da nossa formação nacional. Só não podemos perder de vista que
Portugal está em nós, no nosso sangue, na nossa cultura, como estão os
africanos, os povos originários e outros povos que para cá vieram. Renegar
Portugal é renegar um pedaço enorme do Brasil e da nossa história.
Fiquei
sabendo que até em Portugal a sanha “descolonizadora” se faz sentir e há quem
peça a remoção daquele célebre monumento às Grandes Navegações em Lisboa, “O
Padrão dos Descobrimentos”, um dos emblemas da cidade. Não vai vingar. O dia em
que Portugal deixar de se orgulhar do seu passado glorioso será exatamente o
fim. Pode fechar para balanço.
A
melhor introdução à grandeza de Portugal talvez seja o livro Mensagem de
Fernando Pessoa, uma das poucas obras publicadas por ele em vida e
dedicada, em grande parte, à aventura marítima portuguesa. “O mar com fim”,
escreveu Pessoa, “será grego ou romano: o mar sem fim será português”. Na minha
ignorância selvagem de brasileiro, só fui me dar conta da grandeza de Portugal
quando travei conhecimento com essa obra de Pessoa.
Mensagem é uma maravilha do
primeiro ao último verso. Veja, leitor, por exemplo, o poema “Horizonte”:
Ó mar anterior a
nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
Splendia sobre as naus da iniciação.
Linha severa da
longínqua costa
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.
O sonho é ver as
formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp’rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte
Os beijos merecidos da Verdade.
Faço aqui um apelo ao leitor: não deixe
de ler ou reler Mensagem, livro indispensável para entender a nossa
história e, também, o nosso futuro.
BRASIL,
HERDEIRO DAS GRANDES NAVEGAÇÕES PORTUGUESAS
Volto,
então, ao nosso destino planetário e à ideia do Saturnino. Portugal, país
pequeno, diluído na União Europeia, talvez só possa permanecer fiel a seu
passado em aliança com o Brasil. Não tem mais a energia e o impulso de antes.
Já nosso país, um dos gigantes do mundo, tem tudo para retomar o espírito das
Grande Navegações Portuguesas. Esse é o sentido da brilhante metáfora do
Saturnino.
O
que poderia ser a Nova Rota da Boa Esperança? A exemplo da iniciativa chinesa,
poderia tomar a forma de um conjunto de projetos e programas de infraestrutura
e de desenvolvimento sustentável formulados e/ou financiados pelo Brasil em
colaboração com outras nações latino-americanas, africanas e asiáticas. O foco
seria o desenvolvimento adaptado às exigências do século 21 – um
desenvolvimento fundado, portanto, na sustentabilidade não só
econômico-financeira, mas também social e ambiental. A emergência climática
faria com que a questão da economia verde assumisse papel central na Nova Rota
da Boa Esperança. Trata-se, em uma frase, de contribuir para salvar o planeta.
Temos
para isso instrumentos que podem ser mobilizados ou recuperados. O BNDES, a
Embrapa, as empreiteiras e outras empresas brasileiras com presença
internacional. Temos no Itamaraty um corpo diplomático de excelência que
ajudaria a abrir caminho para a iniciativa. O Banco dos BRICS, se for capaz de
ampliar o número de seus países-membros, também pode ser dinamizado para ajudar
a financiar projetos e programas da Rota da Boa Esperança – até porque foi o
primeiro banco de multilateral de desenvolvimento a ter a questão ambiental
inscrita no seu Convênio Constitutivo.
Repare,
leitor, no nome da iniciativa – “Boa Esperança”. O Brasil deve ser o portador
de uma mensagem nova de solidariedade, respeito e igualdade entre as nações.
Entre os grandes países, volto a dizer, só o Brasil, por suas características,
sua história e sua formação singular, está talhado para trazer essa mensagem de
esperança para todos.
O
que nos caberá fazer em breve será transformar o que pode parecer mero delírio
em realidade. Trata-se, como escreveu Pessoa, sonhar as formas invisíveis e
buscar na linha fria do horizonte, com esperança e vontade, a árvore, a praia,
a flor, a ave, a fonte – os beijos merecidos da Verdade.
Tijolaço.