Neste
ano de 2017, tendo o dia 8 de junho passado como marco, celebram-se 22 anos de
morte de Manoel D'Almeida Filho, o clássico poeta do cordel brasileiro. Sabemos
que o filho da Paraíba, radicado em Sergipe, foi um poeta predestinado. Nascido
na grota mais profunda, às margens da antiga Lagoa do Paó, hoje Alagoa Grande,
viu e ouviu cantadores e poetas de cordel viventes no cinturão do Brejo
Paraibano. Sabia ele da passagem por lá de Francisco das Chagas Batista, um dos
pais do cordel brasileiro, na construção da estrada de ferro. Também sabia de
todo o arsenal poético que o cercava no berço. Sabia, ainda, do polo poético
existente na cidade de Guarabira, e de sua crescente importância em termos de
impressão de cordéis. Esse aparato já seria suficiente para presenteá-lo com um
céu mais lírico, um chão mais épico, uma escrita mais crítica.
Aqueles
que hoje apregoam um cordel rústico, inocente, “puro”, não conhecem a obra de
Manoel D’Almeida. Rigorosíssimo com a qualidade dos seus escritos, trabalhava
diuturnamente na confecção, buscando a excelência, rebuscando o vernáculo,
colecionando as rimas, urdindo as narrativas. Se não bastasse toda essa
inquietação poético-pedagógica, pois ensinava aos neófitos os preâmbulos
cordelísticos e não poupava a palavra mais dura àqueles já macetados que
incorriam em atropelos do verso, da rima, da língua, do estilo e da vida, se
não bastasse isso, era chegado a um desafio peculiar: escrever longas
narrativas, sem perder-se em repetições, nem capengar na criatividade. Assim, escreveu
"O Direito de Nascer", inspirado na radionovela do cubano Félix
Caignet, já adaptada para o Brasil, na época.
"O
Direito de Nascer" é, talvez, o maior romance, em termos quantitativos, do
cordel brasileiro com aproximadamente 700 sextilhas. Quando a Prelúdio o
lançou, abrangia 65 páginas, em colunas duplas de 5 e de 6 estrofes, fazendo 10
e 12 estrofes por página. Se alguns poetas de hoje, muitos não conseguem
escrever 30 e se autodenominam “cordelistas”, chegassem a ler esse romance de
Manoel D’Almeida, certamente mudariam sua visão sobre o cordel. A narrativa de
ficção alcançaria nele um alto grau de tensão, flutuando entre a tragédia e o
lirismo. Mas entenda-se que o desafio em escrever longas narrativas era uma
inquietação da alma do poeta. Tanto que escreveria o mais extenso poema sobre a
vida do Capitão Virgulino Ferreira da Silva: Os Cabras de Lampião. Esse também,
muito conhecido, mas pouco lido pelos seus pares poetas atuais.
Os
Cabras de Lampião foi um marco e uma marca. A forma épica, narrando as agruras
do velho ícone do cangaço sertanejo transformou-se em desafio também para os
leitores, obrigados que eram a retornar, sempre, na leitura para entender e
esclarecer as minudências dos fatos históricos protagonizados por Lampião e seu
bando. Almeida detinha a chave do cordel e a fechadura da poesia. Era o
guardião da porta poética, lubrificando suas dobradiças com novos títulos,
guardando os longos parafusos de sua tradição. Foi o carpinteiro mais
minucioso, assim como Leandro, não temendo as armadilhas, mas, como já disse,
desafiando-as. Foi assim que, certa vez, fã de cinema e de histórias de
aventura, lembremos das velhas séries do cinema hollywoodiano, que adaptou para
o cordel as aventuras de capa e espada do famoso Zorro, o herói vestido de capa
e espada abalando a ordem e humilhando o Sargento Garcia em A Marca do Zorro.
Mas
eis que resolve escrever em cordel a sua visão da novela Gabriela, Cravo e
Canela, transmitida pela televisão em 1975, adaptada do romance homônimo de
autoria de Jorge Amado. Como não poderia deixar de ser, aventura-se pela
narrativa longa para apresentar seu filtro sobre a cidade de Ilhéus, seus
personagens em conflito e suas mulheres exuberantes, oferecendo o calor de seus
seios e a sedução de seus corpos no amor pago, entre as paredes do obsequioso
Bataclã. Todos e tudo comandados pela mão de ferro e pelo ferro na mão do
poderoso Coronel Ramiro. A história corre solta no estilo precioso do autor
cujo narrador, a serviço da boa narrativa, aparteia o leitor sempre que quer
mudar a cena observada ou os fatos apresentados.
Gabriela
alcança picos de extrema beleza poética entre as quais queremos destacar a
preparação e o anúncio da morte do Coronel Ramiro. O coração de Manoel
D’Almeida ofereceu à sua razão um traço profundo de elicadeza, mesmo marcado
pela objetividade, surpreendendo o leitor com seus manejos imagéticos:
Todos saindo,
Ramiro
Pensou haver
resolvido
A sua vida
política
No que tinha
decidido.
Subiu para a sua
alcova,
Sentindo o dever
cumprido.
Para dormir
descansado,
Mandou abrir as
janelas,
Suspendeu os
cortinados
Que já não
tocassem nelas
Para que, pela
manhã,
O sol entrasse por
elas.
Porque queria
acordar
Debaixo do seu
lençol,
Ao descobrir a
cabeça
Ver o clarão do
arrebol,
Sendo aquecido e
beijado
Já pelos raios do
sol.
Adormeceu como um
justo,
Porém, enquanto
dormia,
Alheio à sua
vontade,
Muita coisa
acontecia,
A sua missão
findava
Nunca mais se
acordaria.
Dessa
forma, com o desejo de o sol acariciar-lhe a pele enrugada da face, a morte lhe
abraça e o romance em cordel encaminha-se para o seu desfecho. O Coronel Ramiro
vai para sua última viagem. E, logo mais, dois acrósticos fecharão o poema: um
em "Jorgeamado" e o outro em "Almeida". O desafio foi
vencido e mais um poema veio aumentar a já vasta obra do sempre bom Manoel
D’Almeida Filho.
Mas
não é só: o ano de 2014 foi o ano do seu centenário. Nascido em Alagoa Grande
em 13 de outubro de 1914, D’Almeida estrearia no cordel em 1936 com uma
narrativa ligada ao maravilhoso: "A Moça Que Nasceu Pintada, Com Unhas de
Ponta e Sobrancelhas Raspadas", publicado em João Pessoa, quando era
operário na capital paraibana. Depois, em 1940, vai morar em Aracaju, onde se
estabelece. Em 1955, conhece o editor Arlindo Pinto de Souza, dono da Editora
Prelúdio, de São Paulo, e transforma-se no selecionador de textos de cordel
para a editora. Fica no posto até 1995, exercendo o papel mais significativo do
mundo do cordel, lançando clássicos e encontrando novos autores, trabalhando
nos textos para corrigir-lhes algum percalço poético e dando vazão a sua vasta
criatividade. A Paraíba precisa conhecer sua obra e render-lhe a merecida
homenagem.
GGB
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