O alufá
Bilal Licutan, batizado Pacífico, aguardava na cadeia que o seu senhor viesse
resgatá-lo. Era janeiro de 1835, e Licutan, que era escravo, fora
penhorado pela Justiça a pedido dos frades do convento do Carmo em razão
de dívidas de seu proprietário, o médico Antônio Pinto de Marques Varella. Sua
custódia coincidiria com um dos maiores levantes de escravos da história do
Brasil, ocorrido há 178 anos.
A
incorporação dos escravos trazidos à força da África para o Brasil nunca foi –
e nem poderia ter sido – pacífica. Há 200 anos, em 28 de fevereiro de 1813,
ocorrera um dos mais importantes levantes de cativos do século XIX. Cerca
de 600 africanos escravizados tentaram tomar Salvador, a partir de Brotas,
Ipitanga e Itapuã, então um pequeno arrabalde. Outras insurreições negras
espalhavam-se pela Província da Bahia e alarmavam a pequena elite branca que
mandava e desmandava por estas bandas.
Enquanto
no Brasil, a escravidão ainda era uma triste realidade, a Inglaterra
se mobilizava desde o início do século para o fim do tráfico de escravos,
dando origem ao regime global de proibição que baniu juridicamente o tráfico
humano. Porém, aqui muito ainda haveria de ser feito para extirpá-la. A família
real portuguesa acabara de chegar ao Brasil. As naus da corte escalaram
Salvador em janeiro de 1808 e, depois de “abrir os portos às nações amigas”,
rumaram para o Rio de Janeiro. D. Marcos de Noronha e Brito, o 8º Conde dos
Arcos, governava a Capitania da Bahia desde então, e teve de enfrentar o levante
de 1813. O relato é de Caldas Brito:
“Os
pretos investiram contra reforços enviados a batê-los tão desesperados e
embravecidos que só cediam na luta quando as balas os prostravam em terra; e
durou o combate algumas horas, ficando fora da ação 50 negros, inclusive os que
fugiram atirando-se ao rio de Joannes onde pereceram afogados, e três que preferiram
enforcar-se a cair em poder das tropas legais.
Em
observância da carta de 18 de março foram estes negros processados, e por acordão
da Relação, de 15 de novembro, condenados 39 réus. Destes morreram 12 nas
prisões, 4 escravos de Manuel Ignacio foram condenados à morte natural e enforcados, no
dia 18 do mesmo mês, na forca que se levantou na praça da Piedade, com
assistência de toda a tropa da linha da guarnição; e os demais foram uns açoitados
e degradados para os presídios de Moçambique, Benguela e Angola, para toda
a vida, outros, depois de açoitados no lugar do suplício dos companheiros,
entregues aos senhores.”
A
trégua entre africanos e brasileiros durou pouco. Várias pequenas revoltas se
sucederam ao longo das primeiras décadas do século XIX, até que, em 25 de
janeiro de 1835, o sentimento libertário moveu-os de novo contra a opressão da
religião e da escravidão, e irrompeu uma insureição ainda mais violenta. Negros
muçulmanos, oriundos dos territórios da África Ocidental, atuais Senegal,
Gâmbia, Guiné, Mali, Benin, Togo, Gana e Nigéria, planejaram arrasar Salvador
da Bahia. Todos os habitantes seriam mortos: brancos, mulatos (mestiços) e
crioulos (negros nascidos no Brasil). Somente seriam poupados escravos e
africanos libertos que professassem a fé muçulmana ou que acudissem a
insurreição, a maior de todo o período escravista.
Bilal
“Pacífico” Licutan era um dos líderes desse movimento, que foi, na
verdade, uma jihad levada adiante por hauçás, iorubanos (nagôs),
mandingas, mandês, fulás, ewes (jejes) e gentes do Mali e das cercanias do Rio
Níger, que banha a lendária cidade de Timbuktu, hoje, em 2013, sob ataque
de tropas francesas, do exército do Mali e de militantes radicais da Al Qaeda
do Magreb Islâmico (AQMI). João José Reis diz que, além de Licutan, as
principais lideranças malês em 1835 eram Ahuna, Luís Sanim, Manoel
Calafate, Dandará, Sule e Dassalu.
Todos
os insurrectos foram chamados malês, mas haviam sido trazidos para a Bahia
de várias partes da África subsaariana, inclusive do antigo Reino do Sudão, do
Reino do Mali e do Reino Songai. Vieram também da Costa dos Escravos (Togo,
Benin e Nigéria) e da Costa do Ouro (Gana). Muitos haviam cruzado para sempre a
“Porta do Não Retorno”, memorial-patrimônio da Humanidade que marca no Benin
a diáspora oeste-africana. Em toda essa região, a presença portuguesa
fora marcante, podendo-se ver ainda hoje o Forte de São João Batista de Ajudá
(atual Ouidah), no Benin. Naus portuguesas ou navios de outras origens mas
arvorando tal bandeira, costeavam o litoral africano em busca dos portos onde
havia mercados de escravos. Bruce Chatwin, no livro “O Vice-Rei de Uidá” (The
Viceroy of Ouidah, 1980), conta a história de um dos maiores traficantes de
escravos da época, Francisco Félix de Sousa, nascido em Salvador e morto
em 1849 no antigo Daomé, onde se tornou um poderoso comerciante e líder
político. Sua morte é simbolicamente o começo do fim de uma era. Apesar dos
tratados firmados ao longo do século XIX pelo Reino Unido com Portugal e depois
com o Brasil, e que proibiam o transporte de escravos no Atlântico Sul, a
máquina do tráfico humano ainda funcionava a todo vapor em 1850, abastecendo de
mão-de-obra barata as plantações de cana-de-açúcar no Brasil e em Cuba.
Naquele
janeiro de 1835, Bilal Licutan, seus companheiros e liderados guardavam o
Ramadã. O período de jejum islâmico tinha começado com o ano novo de Nosso
Senhor Jesus Cristo de 1835, equivalente ao 1251º ano da Hégira:
“O
mês de Ramadan foi o mês em que foi revelado o Alcorão – orientação para a humanidade
e evidência de orientação e de discernimento. Por conseguinte, quem de vós
presenciar o novilúnio desse mês deverá jejuar; porém, quem se achar enfermo ou
em viagem jejuará, depois, o mesmo número de dias. Allah vos deseja a
comodidade e não a dificuldade, mas cumpri o número (de dias), e glorificai a
Deus por ter-vos orientado, a fim de que Lhe agradeçais.” (Corão, 2:183-185).
Portanto,
o fim do mês lunar de Ramadã era o momento ideal para o levante. Os
insurgentes pretendiam sublevar os negros da primeira capital do Brasil.
Salvador, então com pouco mais de 65 mil habitantes, era talvez o maior
centro urbano do País, com maioria da população formada por não-brancos. A
revolta visava angariar o apoio dos escravos de ganho, dos escravos de engenho
e também dos libertos. Para Ronaldo Gomes, “Escolas e mesquitas clandestinas
foram o útero onde a insurreição era gestada e os principais veículos de
propaganda e recrutamento religioso e rebelde”. Uma delas teria funcionado até
o começo do século XX na Rua Alegria dos Barris, n. 3, perto da Piedade.
A revolta
dos malês começou de forma desorganizada na madrugada de 25 de
janeiro de 1835. Uma delação feita pela nagô liberta Guilhermina ao juiz de paz
José Mendes da Costa Coelho precipitara o movimento, que eclodiu primeiro na
Ladeira da Praça, no centro antigo de Salvador. De um sobrado ali situado,
saíram cerca de 50 malês, que se defrontaram com o juiz de paz Caetano Vicente
de Almeida Galião, o inspetor de quarteirão Joaquim Pereira Arouca
Junior e vários soldados e guardas permanentes. Após vencer o cerco, os
revoltosos atacaram a Câmara Municipal, onde funcionava a cadeia pública, na
tentativa de libertar Licutan. Em vários bairros da capital, houve combates. O
levante, que reunira cerca de 1.500 malês, foi derrotado em Água de
Meninos, na área portuária da cidade, antes do ataque ao Bonfim e ao bairro de
Itapagipe. Historiadores estimam em 70 as perdas entre os malês, alguns varados
a bala, outros mortos por afogamento. Segundo o padre Etienne Ignace, “No dia
seguinte era horrorosa a carnificina; as ruas estavam juncadas de cadáveres“,
de ambos os lados.
O Chefe
de Polícia e juiz de Direito Francisco Gonçalves Martins comandou as
forças que massacraram os malês. Naquela época, a Polícia Judiciária era
chefiada por juízes e desembargadores, conforme o artigo 6º do Código de
Processo Criminal de 1832. Mas isto não era garantia de observância do devido
processo legal, tanto que várias ilegalidades foram cometidas contra os
acusados malês desde o primeiro instante da investigação. No particular, dizia
o CPP imperial:
Art.
6º Feita a divisão haverá em cada Comarca um Juiz de Direito: nas Cidades
populosas porém poderão haver até tres Juizes de Direito com jurisdicção
cumulativa, sendo um delles o Chefe da Policia.
No
relatório que apresentou em 29 de janeiro de 1835 ao presidente da
Província da Bahia, o futuro Visconde de São Lourenço – título outorgado por D.
Pedro II em 1859 – anotou:
“Têm
sido dadas por mim as providências necessárias para serem corridas todas as casas
de africanos sem distinção alguma e o resultado será presente a V. Exª. em
tempo competente, podendo desde já asseverar a V. Exª. que ainsurreição estava
tramada de muito tempo, com um segredo inviolável e debaixo de um plano
superior ao que devíamos esperar de sua brutalidade e ignorância. Em geral vão
quase todos sabendo ler e escrever em caracteres desconhecidos que se
assemelham ao árabe, usado entre os hauçás, que figuram ter hoje combinado
com os nagôs. Esta nação em outro tempo foi a que se insurgiu nesta
província por várias vezes, sendo depois substituída pelos nagôs. Existiam
mestres que davam lições e tratavam de organizar a insurreição na qual entravam
muitos forros africanos e até ricos. Têm sido encontrados muitos livros,
alguns dos quais dizem serem preceitos religiosos tirados de mistura de seitas,
principalmente do Alcorão. O certo é que a religião tinha sua
parte na sublevação e os chefes faziam persuadir aos miseráveis que certos
papéis os livrariam da morte, de onde vem encontrar-se nos corpos mortos grande
porção dos ditos e nas vestimentas ricas e exquisitas que figuram pertencer aos
chefes e foram achadas em algumas buscas”.

Amuleto
ou gris-gris dos malês, escrito em caracteres arábicos. Vários foram
apreendidos em 1835.
A
constatação surpreendeu as autoridades. Os planos dos malês para a tomada
de Salvador haviam sido escritos em caracteres arábicos. Muitos dos revoltosos
professavam a fé islâmica e dominavam o árabe e seu alfabeto, com o qual também
escreviam os seus próprios idiomas. Vários documentos foram apreendidos com os
insurrectos. O polêmico professor, médico e antropólogo Nina Rodrigues (“Os
africanos no Brasil”, 1932) conta que na investigação criminal, a Justiça
imperial valeu-se de traduções feitas por outros cativos. Foi o que ocorreu com
o escravo hauçá Albino, dos Moscoso. Analfabeto em português mas versado na
língua dos malês, Albino serviu de intérprete. Numa das atas mencionadas por
Nina Rodrigues, lê-se:
“Aos sete
dias do mês de fevereiro de 1835,nesta leal e valorosa cidade de São Salvador,
Bahia de todos os Santos, a casa da residência do Juiz de Paz do 1º
distrito de Curato da Sé,o cidadão José Mendes da Costa Coelho; onde eu,
escrivão do seu cargo, me achava, aí compareceu o preto de nação ussá e de
nome Albino, escravo do Advogado Luiz da França de Ataíde Moscoso, que o mesmo
juiz informado de que o dito preto sabia ler e escrever os caracteres
arábicos, usados pelos negros insurgidos, tinha mandado vir à sua
presença, deferiu-lhe o juramento aos Santos Evangelhos em um livro deles, em
que pôs sua mão direita, para que debaixo dele, como cristão que era,
declarasse e dissesse a verdade do que lesse nos papéis que lhe apresentava,
numerados de um a nove, e, recebido por ele o dito juramento, prometeu cumprir
da forma que ele os entendesse, passando a examinar um por um, declarou o
seguinte […]”.
A
reação da sociedade escravista foi colossal. Garantias individuais foram
suspensas na Província. Buscas indiscriminadas foram realizadas em toda a
cidade, em todas as casas que abrigassem negros, escravos ou libertos. Simples
suspeitos eram logo presos. O promotor da capital acusou o escravo Joaquim,
pertencente a um certo Romão, apenas porque “sabia ler e escrever nas táboas
que foram achadas aos insurgentes“. Essas tábuas eram utilizadas para o ensino
corânico e a alfabetização.
Só
os súditos ingleses residentes na Bahia livraram-se de tais medidas
de exceção, pois àquele tempo ainda gozavam dos privilégios surgidos no século
XV, que lhes davam em terras portuguesas e depois no Império do Brazil o
direito a um foro especial, em função apenas da nacionalidade. Era o juízo
conservador da Nação Britânica, assunto para outro post. O historiador Décio
Freitas (Escravos e senhores de escravos, 1983) registra carta de John
Parkinson, cônsul britânico na Bahia ao Foreign Office em Londres: “Esta
invocação do privilégio não tem deixado de exarcebar os sentimentos
desfavoráveis contra os ingleses em geral; eles são abertamente acusados de
incitar seus próprios escravos a se insurgir e de estimulá-los a repetir os
horrores do Haiti“.
Como
resultado dessa emergência penal, em 10 de junho, mediante a Lei 4/1835, o
Parlamento alterou o Código de Processo Criminal (CPCI) do Império de 1832 e
criou uma pena especial para escravos revoltosos, insurretos ou homicidas de
seus senhores:
“Art.
1. Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que materem
por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem
outra qualquer grave offensa physica a seu senhor, a sua mulher, a descendentes
ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e ás suas
mulheres, que com elles viverem. Se o ferimento, ou offensa physica forem leves,
a pena será de açoutes a proporção das circumstancias mais ou menos
aggravantes”.
Esta
mesma lei abriu exceção ao artigo do CPCI que exigia unanimidade para
a aplicação da pena de morte no Brasil. Dali em diante, quando o réu fosse
escravo, a condenação podia ser proferida pelo voto de dois terços dos jurados.
Ademais, a alteração legislativa de 1835 determinou que não caberia recurso
algum da decisão condenatória proferida pelo tribunal popular, ficando proibida
a graça. O preceito geral estava no art. 332 do Código de Processo
Criminal de 1832, segundo o qual “as decisões do Jury são tomadas por duas
terças partes de votos; sómente para a imposição da pena de morte é necessária
a unanimidade“. Agora o art. 4 da Lei 4/1835 previa uma regra
excepcional para os escravos, os “inimigos” de então:
“Art.
4. Em taes delictos a imposição da pena de morte será vencida por dous
terços do numero de votos; e para as outras pela maioria; e a sentença, se fôr
condemnatoria, se executará sem recurso algum“.
Tais
eventos constam dos autos do processo criminal contra os malês, que estão
no riquíssimo acervo do Arquivo Público da Bahia. Graças a isto, João José
Reis pode examiná-los e narrar alguns dos depoimentos dos réus:
“Ao
deporem sobre o grau de envolvimento com o islamismo, muitos interrogados se
reportaram a suas experiências africanas. Alguns disseram abertamente que
haviam recebido instrução islâmica na África, possivelmente em escolas
corânicas ou madrassas. O nagô Pedro, ao ser perguntado sobre um livro e
vários manuscritos em árabe encontrados em seu poder, respondeu: “o livro
continha rezas de sua terra e os papéis várias doutrinas cuja linguagem e sua
ciência ele sabia antes de vir de sua terra”. Pompeo da Silva, nagô forro, com
cerca de 30 anos de idade, “perguntado se ele sabia ou entendia das letras
arábicas que usavam os Nagôs, disse, que tendo aprendido em sua terra pequenino
que agora quase nada se lembrava”. Antônio, escravo Haussá, pescador, disse que
sabia escrever em árabe, mas só escrevia “orações segundo o cisma de sua
terra”. Ou seja, não escrevia coisas subversivas, políticas, só orações.
Acrescentou que “quando pequeno em sua terra andava na escola”.
Ao
final do processo criminal, que seguiu as regras do Código Penal de 1830 e
do Código de Processo Criminal do Império de 1832, quase todos os
“subversivos” africanos foram condenados. Um dos crimes era o de insurreição:
Art.
113. Julgar-se-ha commettido este crime, reunindo-se vinte ou mais
escravos para haverem a liberdade por meio da força.
Penas
– Aos cabeças – de morte no gráo maximo; de galés perpetuas no médio; e
por quinze annos no minimo; – aos mais – açoutes.
Art.
114. Se os cabeças da insurreição forem pessoas livres, incorrerão nas mesmas
penas impostas, no artigo antecedente, aos cabeças, quando são escravos.
Nina
Rodrigues conta o resultado do julgamento:
“Dominada
a insurreição, cujos danos foram muito reduzidos, graças às medidas que a
denúncia permitiu tomar ainda em tempo, dos 281 negros presos foram
condenados à morte 16, dos quais só 5 foram executados a 14 de maio de 1835, a
saber: os libertos Jorge da Cunha Barbosa e José Francisco Gonçalves e os
escravos Gonçalo, Joaquim e Pedro. Os outros tiveram a pena comutada em galés
perpétuas uns, muitos em açoites, alguns em prisão com trabalho.
A todos os libertos a que tocou esta última pena, o regente Diogo Antonio Feijó
comutou-a, por proposta do presidente da província em banimento para a
costa d’África; pois alegava o Visconde de São Lourenço, então chefe de
polícia, que “os africanos forros trazem quase todos, no gozo da liberdade, o
ferrete da escravidão e não utilizam nada ao país com a sua estada”. Banimento
para os libertos, açoites para os escravos, tal a fórmula repressiva
cômoda e econômica que permitia sufocar os germens de futuros
levantes sem prejuízo na propriedade humana. E o senhor de Sanim, cuja
sentença de morte foi confirmada pelo Tribunal de Relação da província, obteve
em revista do Supremo Tribunal de Justiça novo julgamento para seu escravo, que
foi então condenado a 600 açoites.”
O
destino do processo de Luís Sanim, um dos líderes da revolta de 1835, é
característico das alianças que foram formadas durante o julgamento entre
escravos e seus senhores. Muitos destes contrataram advogados para recorrer até
à última instância, a fim de obterem absolvições ou comutação de penas.
Tratavam de defender os réus (do latim res), suas coisas, suas
“propriedades”. Segundo Décio Freitas, o malê Sanim conseguiu novo julgamento,
porque houve falhas procedimentais no primeiro júri. Já os libertos não podiam
contar com esse apoio (não tinham senhores) e sofreram penas mais severas.
A
pena de galés perpétuas estava prevista no art. 44 do Código Penal de
1830. Sujeitava os “réos a andarem com calceta no pé, e corrente de ferro,
juntos ou separados, e a empregaresm-se nos trabalhos publicos da provincia,
onde tiver sido commettido o delicto, á disposição do Governo“. Muitos eram
empregados em obras ou serviços públicos, onde cumpriam suas penas em péssimas
condições.
Tal
como na época colonial, o banimento era cumprido na África. Segundo o
art. 50 do Código Penal de 1830, “A pena de banimento privará para sempre os
réos dos direitos de cidadão brazileiro, e os inhibirá perpetuamente de habitar
o territorio do Imperio. Os banidos, que voltarem ao territorio do Imperio,
serão condemnados á prisão perpetua.”. O terror que dominara a Província em
função do levante estimulou essa solução. Deveriam ser banidos mesmo
aqueles absolvidos pelo júri! Os brancos da Bahia temiam ter o mesmo
fim que os franceses tiveram em 1791, quando o levante na colônia de Santo
Domingo, no Caribe, massacrou milhares de senhores e suas famílias e fez surgir
em janeiro de 1804 a República do Haiti, primeiro país da Idade
Contemporânea a tornar-se independente a partir de uma revolta escrava.
Por
isto, diante do pavor que atormentava a sociedade baiana, a Regência no Rio de
Janeiro baixou o ato de 4 de março de 1835, endereçado ao presidente
da Província da Bahia, autorizando-o a: “deportar ou desterrar para fora do
Império quantos Africanos libertos forem suspeitos por indícios de terem tido
parte naquela revolta, ainda quando pelo motivo acima citado sejam absolvidos
pelo júri da Cidade, ou das Vilas da Província, por deficiência de prova para a
condenação” (Coleção de Leis do Império do Brasil, v. VI, parte XIV, pp.
79-80).
Bilal
Licutan recebeu pena de 1200 chibatadas, pena então chamada de açoutes, regida
pelo art. 60 do CP de 1830. Em Salvador, a punição era aplicada no Campo da
Pólvora, no Campo Grande, ou em Água de Meninos. Tal sanção desumana e cruel só
era imposta a escravos e deixou de existir em 1886.Como, por dia o escravo
condenado só podia levar 50 chicotadas, é possível que o alufá
Licutan tenha sido açoitado por 24 dias seguidos:
“Art.
60. Se o réo fôr escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital,
ou de galés, será condemnado na de açoutes, e depois de os
soffrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazel-o com um
ferro, pelo tempo, e maneira que o Juiz designar.
O
numero de açoutes será fixado na sentença; e o escravo não poderá levar
por dia mais de cincoenta.”
Um
malê, segundo Debret.
Cinco
dos malês não tiveram a mesma “sorte”. Foram executados por um pelotão de
fuzilamento no Campo da Pólvora, onde está hoje o Fórum Rui Barbosa, em 14
de maio de 1835. Mil soldados se puseram em guarda para garantir o cumprimento
da pena capital. Os artigos 38 a 43 do Código Penal imperial de 1830 regulavam
a execução da pena capital, que deveria ser na forca:
Art.
38. A pena de morte será dada na forca.
Art.
39. Esta pena, depois que se tiver tornado irrevogavel a sentença, será
executada no dia seguinte ao da intimação, a qual nunca se fará na vespera de
domingo, dia santo, ou de festa nacional.
Art.
40. O réo com o seu vestido ordinario, e preso, será conduzido pelas ruas mais
publicas até á forca, acompanhado do Juiz Criminal do lugar, aonde estiver, com
o seu Escrivão, e da força militar, que se requisitar. Ao acompanhamento
precederá o Porteiro, lendo em voz alta a sentença, que se fôr executar.
Art.
41. O Juiz Criminal, que acompanhar, presidirá a execução até que se ultime; e
o seu Escrivão passará certidão de todo este acto, a qual se ajuntará ao
processo respectivo.
Art.
42. Os corpos dos enforcados serão entregues a seus parentes, ou amigos, se os
pedirem aos Juizes, que presidirem á execução; mas não poderão enterral-os com
pompa, sob pena de prisão por um mez á um anno.
Art.
43. Na mulher prenhe não se executará a pena de morte, nem mesmo ella será
julgada, em caso de a merecer, senão quarenta dias depois do parto.
Embora
sentenciados ao cadafalso, os malês não foram enforcados, como ordenava o
art. 38 do CPI. O juiz não conseguiu recrutar nenhum carrasco, nem entre os
presos da Província. O relato é de Nina Rodrigues: “Quis o destino que os
heróis da insurreição tivessem execução condigna. Não se tendo encontrado
carrasco, os negros condenados à morte não puderam ser enforcados como
criminosos, pelo que foram fuzilados como soldados. O plano da insurreição
estava na altura do valor dos seus promotores”.
Tal louvação
aos malês é curiosa, porque partiu de um antropólogo conhecido pela defesa
da suposta superioridade da “raça” branca. Nina Rodrigues era um supremacista;
estudara antropometria e frenologia, entre outras pseudociências, para
sustentar suas ideias quanto à inferioridade dos negros. A frenologia é
retratada em dois diálogos do personagem Calvin Candie, o senhor de Candyland,
vivido pelo ator Leonardo di Caprio, em Django Livre (2012), do
diretor Quentin Tarantino. O filme se passa em 1858, às vésperas da Guerra
Civil americana (1861-1865), conflito cujo motivo foi a luta pelo fim da
escravidão nos Estados Unidos. Homem do seu tempo, o professor Nina
Rodrigues (1862-1906) foi seguidor das ideias de Cesare Lombroso e,
quando morreu aos 44 anos, deixou como discípulo o médico baiano Oscar
Freire, que dá nome à célebre rua paulistana.
Embora
seja deplorável a antropologia racialista (ou racista) de Nina Rodrigues, sua
profecia (em “Os africanos no Brasil”) se concretizou: o islamismo na
Bahia extinguiu-se com a morte dos últimos africanos que haviam aportado
em Salvador. Suas práticas, crenças e cultura não resistiram às iniciativas do
governo provincial, todas voltadas para varrê-los do mapa do Brasil.
O
fato é que, sem saber, os malês de 1835 deram sua contribuição para
apressar o fim do tráfico negreiro para a América do Sul. Todas as províncias
do País ficaram em polvorosa com o levante na Bahia, onde a população de
escravos e libertos era muito superior a de europeus e mulatos. Segundo
registro de Décio Freitas, em março daquele ano, Mr. Fox, o enviado especial do
Reino Unido ao Brasil, escreveu ao primeiro-ministro Henry Temple, visconde de
Palmerston, que “o terror que se propaga longe e largamente através do Brasil,
depois da última insurreição de negros da Bahia, tornou o presentemomento
favorável para que este governo receba bem qualquer disposição para melhorar
e reforçar a legislação contra o tráfico de escravos. Os olhos de quase todas
as pessoas começaram a se abrir, se não à infâmia do tráfico de escravos, ao
menos ao enorme perigo de deixar entrar no Brasil esta multidão de novos
africanos“. A diplomacia inglesa aproveitou o momento. Veio o Bill Aberdeen (Slave
Trade Suppression Act), de 1845, e, em sua esteira, o Brasil aprovou a Lei
Eusébio de Queirós (Lei
581/1850), diplomas que aos poucos baniram o tráfico negreiro no Atlântico
Sul. Tais normas, que se remetiam ao Tratado do Rio de Janeiro de 1826 e
também à Lei Feijó de 1831 (a famosa “lei para inglês ver”),
equipararam o horrendo comércio transatlântico de pessoas ao crime de
pirataria marítima. Dizia o art. 2º da Lei de 1831, que foi revigorado
pelo art. 4º da Lei de 1850:
“Art.
2º. Os importadores de escravos no Brasil incorrerão na pena
corporal do art. 179 do Código Criminal imposta aos que reduzem à
escravidão pessoas livres, e na multa de 200$000 por cabeça de cada um dos
escravos importados, além de pagarem as despesas da reexportação para qualquer
parte da África; reexportação, que o Governo fará efetiva com a maior possível
brevidade, contratando as autoridades africanas para lhes darem um asilo. Os
infratores responderão cada um por si, e por todos.”
O
art. 179 do CP de 1830 mandava aplicar pena de 3 a 9 anos de prisão, e
multa, ao responsável por “reduzir à escravidão pessoa livre, que se achar em
posse da sua liberdade˜. O medo de outrarevolta dos malês, o receio de ver
repetida aqui a chacina haitiana, a mudança do eixo econômico do Nordeste (da
cultura açucareira) para o Sudeste (cafeicultura), o paulatino esclarecimento
da população brasileira quanto aos horrores da escravidão, e a fortíssima
pressão britânica pelo fim do tráfico negreiro foram alguns dos fatores que
precipitaram o seu fim no Brasil pré-republicano.
Por
outro lado, o desaparecimento das línguas subsaarianas na Bahia, a morte e o
banimento dos malês e a progressiva cristianização das populações vindas da
África e de seus descendentes eliminaram quase por completo as tradições
islâmicas na antiga capital do Brasil. Derrotados os malês, a Província de
Todos os Santos continuou cristã, lusófona, e livre dos rigores da Sharia, mas
presa aos grilhões da escravidão até 1888. Não haveria mais mesquitas ou
madraças na velha Cidade do Salvador. Masficaram um riquíssimo sincretismo
e esta incrível história, no belo caldo de culturas e crenças que é a Bahia.
GGN
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