As
elites brasileiras, em suas diferentes facções, usam dois métodos prioritários
para operar o poder: a conciliação e o golpe. Oscilam de um ao outro segundo as
circunstâncias e conforme as necessidades de fazer valer os seus interesses. Os
dois métodos funcionam também como forma de cobertura ideológica para manter um
véu sobre a natureza e as consequências de seu modo de agir: manter o controle
sobre um Estado particularista, usando-o de forma alargada como instrumento de
concentração de capital, de renda e de riqueza e como perpetuação do estatuto
da desigualdade social e econômica, exclusão de direitos, sonegação da
educação, da saúde e da cultura para o povo. O uso de instrumentos
fiscais regressivos, subsídios, incentivos, sonegação e corrupção são as armas
usadas para bloquear um Estado universalizante, mantendo-o preso aos ditames
particularistas dos grupos de assalto aos Orçamentos públicos.
Os
dois métodos - conciliação e golpe - não são usados apenas nas relações com a
oposição, mas também nas relações intra grupos de elites e no interior dos
próprios partidos. Veja-se o que aconteceu no PSDB, nesta última convenção:
acobertou-se uma profunda crise interna em nome da unidade. Uma falsa unidade,
pois as divergências não se explicitaram até as últimas consequências, na forma
de embates, disputas, formulações de teses e programas produzindo daí uma
unidade superior, verdadeira. Esse método representa a morte do espírito e de
todo o conteúdo e a manutenção de uma forma caiada.
A
conciliação se expressa como apaziguamento, como uma acomodação de interesses,
que por não se explicitarem de forma programática, se tornam escusos. Até mesmo
os partidos de esquerda têm enveredado por caminhos da conciliação interna,
matando aos poucos o espírito vivo dos partidos. E se são menos propensos a
golpes internos, são muito afoitos nas divisões sectárias e nas exclusões.
Assim,
as acomodações evitam prévias, evitam o aprofundamento do debate, evitam a
crítica e a autocrítica e terminam por sufocar a própria democracia como
prática constituinte da política e dos programas de partidos e governos. Os
acordos de cúpula terminam por prevalecer, sem que as bases e as massas tenham
clara compreensão do seu significado. Este é um dos fatores que vem minando a
credibilidade dos partidos e dos políticos, alastrando a crise de legitimidade.
Quando
essa crise foge do controle dos partidos, ela produz fenômenos extemporâneos ou
inoportunos a exemplo de Collor de Mello, Dória, Bolsonaro ou Trump. Esses
forasteiros aparecem sempre com uma face anti-sistêmica, dado que uma parcela
da sociedade os acolhe por não se reconhecer mais na direita e na esquerda que
operam em determinado sistema. Tendem a ser fenômenos passageiros, é verdade,
mas provocam uma série de anomalias e, quase sempre, agravam a crise de
funcionamento da democracia e das instituições.
Na
sua essência, a conciliação enquanto método, é uma forma antidemocrática do
agir político. Os acordos que ela produz, por serem acomodações e falsos
apaziguamentos, nunca são públicos e se traduzem em troca de favores, no
fisiologismo, num conluio onde todos se tornam cúmplices e prisioneiros de
todos. Frequentemente, as conciliações criam uma solidariedade criminosa entre
as partes.
Um
dos fundamentos da democracia consiste em que ela é conflito, enfrentamento
oratório público de ideias e propostas, pois é através desse debate e desse
enfrentamento que se pressupõe, surjam, racionalmente, as boas leis, as boas
normas e a boa educação, como já notara Maquiavel ao referir-se à construção da
grandeza da República de Roma. No Brasil, ao mesmo tempo em que se desvaloriza
o conflito político se valoriza o conflito do Estado contra os pobres e o
conflito interpessoal, fator que nos transformou no país onde mais ocorrem
mortes violentas no mundo, superando os países em guerra.
Por um pacto
progressista
É
sabido e aceito de forma generalizada a tese de que as esquerdas vivem a
síndrome de Caim e Abel. Mesmo sendo subpartidos ou subgrupos de um mesmo
partido, de uma mesma matriz e até de um mesmo ideário, preferem a derrota e a
morte um dos outro do que a unidade. Mas nem tudo é terra arrasada. Seja porque
alguns agrupamentos aprenderam as lições da história ou seja porque se faz uma
leitura correta do atual momento histórico, o fato é que, em alguns países, as
esquerdas e os progressistas conseguem se unir e ter êxito nos governos.
Destaque-se o Uruguai, Portugal, Grécia, governos de províncias e comunidades
autônomas no interior da Espanha.
O
que há de comum nas democracias em todos os continentes é que elas estão
capturadas pelo capital que usa os instrumentos estatais para operar políticas
de regressão de direitos, de aumento das desigualdades e de concentração da
riqueza. Nos países pobres, como o Brasil, esses males das democracias
sequestradas se agravam, pois são herdeiros de injustiças, exclusões e
opressões centenárias, nunca tendo alcançado o estatuto de um Estado de bem
estar social.
Neste
momento em que, no Brasil, as elites operam o poder pelo modo do golpe, a
violência destrutiva de direitos e a sanha concentradora de riqueza se
manifestam de forma mais cruenta, semeando a descrença, a desesperança e o medo
quanto ao futuro. Para uma imensa parte da população brasileira, o medo de uma
vida sem dignidade, de uma vida de sacrifícios e de privações se tornou uma
certeza. As aflições com o alimento, com a moradia, com o vestir, com o emprego
e com as necessidades básicas se tornaram um tormento permanente, que bloqueia
os sonhos, a alegria de viver, a felicidade familiar. Não há como ter esperanças.
Barrar
esta fúria destruidora de direitos, de esperanças e de futuro não é apenas uma
questão de leitura da conjuntura, mas uma demanda ética, um dever moral. Claro
que será preciso propor um programa que vá além disso, que distribua o poder, a
riqueza e as oportunidades e que garanta direitos. Construir uma força unitária
e potente para barrar essa destruição é a tarefa que se impõe para todos
aqueles que se intitulam democratas, progressistas, socialistas e de esquerda.
Se quisermos ser responsáveis, precisamos dimensionar bem os fins, não só
possíveis, mas necessários neste momento. Precisamos promover um acordo entre
meios e fins.
Multiplicar
candidaturas do campo democrático é progressista, como vem se indicando, não é
um bom caminho. Fazer um acordo, um pacto, que tenha por base uma negociação,
na qual fiquem explícitos os pontos de convergência e as divergências, é algo
bem diferente do que uma conciliação. Trata-se de fazer um pacto do possível,
sendo que um dos principais objetivos consiste em barrar esse processo de
destruição de direitos e da democracia. Num pacto programático, todos precisam
abrir mão de determinados objetivos, de determinados interesses. Cabe às
maiores forças fazer as maiores concessões. E se um eventual governo progressista
precisar buscar apoios ao centro para governar, há que se produzir um acordo em
torno de pontos programáticos e não uma conciliação que dilui a fisionomia de
qualquer governo.
As
forças democráticas e progressistas estão cometendo dois erros graves neste
momento: 1) pressupor que é o memento de maximizar alternativas com
candidaturas próprias e com programas ideais; 2) supor que as eleições serão
facilmente vencidas por Lula por falta de candidato competitivo dos setores
conservadores. O cenário das eleições ainda não está constituído. Poderosas
forças se mobilizarão para impedir a vitória de Lula.
Por
outro lado, todas as proclamações grandiloquentes dos líderes políticos e
sindicais das esquerdas fracassaram. Aconteceu tudo o que se disse que não
aconteceria. Não se viram trincheiras, nem exércitos e nem grandes
paralisações, capazes de bloquear reformas nefastas. Parece ser necessário
aterrissar e lidar com o senso de realidade. O ufanismo e o triunfalismo são os
alimentos da indolência e da irresponsabilidade, coveiros das vitórias.
Aldo
Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
GGN
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