Projeto
financiado pelo Iphan e executado pelo ISA identifica nova língua yanomami e
diagnostica ameaças às seis línguas deste povo
Xamãs
durante a OR do PGTA no Xihopi, Terra Indígena Yanomami, município de Barcelos
(AM). | Foto: Lucas Lima-ISA
do
Instituto Socioambiental – ISA
Projeto
financiado pelo Iphan e executado pelo ISA identifica nova língua yanomami e
diagnostica ameaças às seis línguas deste povo
Yanomamɨ,
sanöma, ninam, yanomam, ỹaroamë, yãnoma. Essas são as seis línguas faladas na
maior Terra Indígena no Brasil, por um dos grupos mais relevantes ao patrimônio
etnolinguístico nacional: os Yanomami. Em 2019,
o Ano
Internacional das Línguas Indígenas para a Unesco, o projeto “Diversidade
Linguística na Terra Indígena Yanomami” divulga os produtos de uma pesquisa,
desenvolvida pelo Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a Hutukara e
outras associações yanomami, que identificou uma nova língua falada por este
povo no país: o yãnoma.
Financiado
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o projeto
faz um perfil de cada língua da família yanomami, apresentando um panorama
histórico e sociolinguístico dos grupos que as falam e apontando as semelhanças
e diferenças gramaticais que as caracterizam. O projeto avaliou, ainda, como
está a saúde dos idiomas dessa família linguística, identificando as principais
ameaças a que estão submetidos, principalmente devido à intensificação do
contato com a sociedade não indígena.
Segundo
a antropóloga Ana Maria Machado, do ISA, “as línguas em maior contato com os
brancos, seja por estarem em regiões de fronteira da Terra Indígena ou por
terem um fluxo muito grande de relações com os não índios, são as mais
ameaçadas”. O yanomamɨ falado no Alto Rio Negro, mas principalmente as três
línguas do limite leste da Terra Indígena
Yanomami – ninam, ỹaroamë e yãnoma – são as que mais intensamente
lidam com essa ameaça: vilas, projetos de assentamentos do Incra e acampamentos
de garimpeiros estão estabelecidos a poucos quilômetros das comunidades. A
BR-210 (a Perimetral Norte), que avançou desastrosamente sobre a região leste
da TIY nos anos 1970, provocando a morte de centenas de falantes de ỹaroamë, ainda
hoje é uma fonte constante de problemas para as aldeias e uma via de acesso
facilitado usada por invasores.
O
diagnóstico linguístico, realizado por uma equipe multidisciplinar e
multiétnica, com a colaboração de onze pesquisadores yanomami, analisou aspectos
centrais para a vitalidade de um idioma, como a transmissão intergeracional, o
número de falantes, o uso da língua nos diversos âmbitos sociais (espaços
tradicionais, escola e posto de saúde, por exemplo), e a disponibilidade de
material didático e para leitura. A pesquisa revelou alguns dados positivos,
como o fato de quase a totalidade das crianças yanomami (99%) estarem
aprendendo suas línguas originárias antes do português, e de que apenas
professores falantes de línguas yanomami estarem trabalhando atualmente nas
escolas da TIY.
“A
alta taxa de transmissão intergeracional observada em todas as línguas da
família é sem dúvida um indicativo alentador e muito favorável para o futuro
imediato das línguas yanomami. Mas isso não garante nada a longo prazo. A
vitalidade de uma língua é um sistema caótico, em que múltiplos fatores entram
em jogo para determinar o resultado. Como a climatologia: você consegue prever
o que vai acontecer daqui um ou dois dias. Depois disso, começa a ficar mais
difícil fazer uma previsão precisa porque existem muitos fatores em jogo, que
podem mudar o resultado”, explica o linguista do ISA, Helder Perri.
O
diagnóstico também apontou alguns desses dados negativos sobre a situação
sociolinguística das línguas yanomami e que podem influenciar seu futuro. O
baixo número absoluto de falantes é um dado preocupante em todas as línguas,
por exemplo. Nenhuma língua da família apresenta um estoque populacional
suficiente para enfrentar com tranquilidade eventos de grande impacto
sociodemográfico, como conflitos armados generalizados, epidemias ou invasões
massivas de garimpeiros. A língua yanomami mais falada no Brasil é o yanomam e
tem cerca 11.700 falantes, número alto para o padrão das línguas indígenas
faladas atualmente no país – apenas outras 10 línguas têm um número maior de
falantes no Brasil –, mas não o suficiente para garantir sua reprodução com
plena vitalidade por décadas. Os casos do ỹaroamë, com 371 falantes, e yãnoma,
com apenas 178, são os mais alarmantes.
O
projeto levantou políticas que podem ser executadas para que as línguas
yanomami continuem fortes. Essas ações incluem a produção de material didático
nessas línguas, seu ensino nas escolas e a maior incorporação delas pelo
serviços prestados pelo Estado, como saúde e educação. Para garantir a
vitalidade desses idiomas, é importante que o Estado busque reconhecer e
trabalhar o multilinguísmo yanomami, preparando seus profissionais e produzindo
materiais nas línguas indígenas para atendê-los da melhor forma.
A
pesquisa apontou ainda uma grande diversidade de dialetos dentro das seis
línguas identificadas, com pelo menos dezesseis variações dialetais no total.
Mas essa diversidade linguística não é estanque: nos mapas e publicações
previstos como produto desse diagnóstico, foram detectadas nove zonas de
bilinguismo no território. “Essas zonas são ilustrações eloquentes do intenso
contato que os Yanomami têm entre si e a diferença linguística é só um elemento
que dá cor para essa rede de relações de trocas, casamentos, alianças, que
poderia estar sendo feita em uma única língua, mas no caso tem diversas
tonalidades”, explica Perri.
Para
o xamã Davi Kopenawa, é preciso cuidar dessa diversidade. As línguas yanomami,
segundo ele, estão em risco há muito tempo, desde a chegada dos antepassados
dos napëpë, os brancos. “Eles ensinaram aos jovens índios o que ensinavam aos
napëpë: os escolarizaram e os proibiam, então diziam para essas crianças e
jovens: ‘Aprenda minha língua, pegue de verdade, para você falar! Vamos fazer
sua língua acabar!’”, relata Kopenawa.
Com
a constante apropriação de meios e espaço de comunicação pós-contato pelos
Yanomami, a escola, os celulares, as músicas e a radiofonia são, muitas vezes,
portas de entrada para a língua portuguesa nas aldeias. Em vez de serem vistas
apenas como ameaça para essas línguas, podem ser pensadas como aliadas. Ou
seja: as línguas Yanomami devem ocupar também essas novas mídias, para que
mantenham sua vitalidade.
Além
da importância que tem dentro das aldeias, o financiamento do projeto pelo
Iphan é um primeiro passo para o reconhecimento nacional da diversidade
linguística que existe no Brasil. Os pesquisadores do ISA esperam que esse
diagnóstico tenha mais reverberações futuramente, como a inscrição das línguas
yanomami no Inventário Nacional da Diversidade Linguística, instituído pelo
Decreto nº 7.387/10.
Até
lá, Davi Kopenawa se preocupa: “Nossos diálogos cerimoniais, nossos cantos,
nossas palavras resistem. Mas se os Yanomami das próximas gerações não ficarem
atentos, essas palavras irão sumir. Se nossa língua for levada, nós iremos
apenas falar assim: ‘bom dia, vamos almoçar, vamos tomar banho, vamos
trabalhar, vamos viajar’, só vamos falar isso. Só vai sobrar a língua yanomami
mais grosseira”.
Nas
narrativas míticas deste povo, conta-se que aos napëpë foi transmitida uma
língua pelo zumbido de Remori, o antepassado mítico de uma espécie de
abelha-solitária comum nas praias dos rios. A dedicação dos Yanomami, com esse
projeto, de produzir registros e assegurar a sobrevivência de suas línguas, é
mais uma forma de manutenção e reprodução de seu modo de vida tradicional. Se a
fala e o pensamento yanomami se dissolvem nas línguas napëpë, não se perde
apenas universo linguístico, mas todo um sistema de conhecimentos e transmissão
de saberes culturais, ecológicos, medicinais, artísticos e históricos.
GGN