quinta-feira, 10 de junho de 2021

PERU ELEGE O PRESIDENTE DOS POVOS INVISÍVEIS DE MANUEL SCORZA, POR FERNANDO BRITO

Falou-se muito no papel do escritor Mario Varga Llosa nas eleições peruanas, por ter abraçado o sobrenome de seu ex-rival Alberto Fujimori, na pessoa de sua filha Keiko, para apoiá-la contra o ‘índio’ Pedro Castillo.

Mas, em algum sopro dos ventos do altiplano andino, as partículas do que um dia foi outro grande escritor peruano é que devem estar rebrilhando com a vitória o ‘professor‘, que fez uma campanha a partir do que ninguém via, mas que triunfou, que estão apuradas todas as urnas.

É Manuel Scorza, morto num acidente aéreo em 1983. autor de cinco novelas de uma série que contou a história do nascimento e morte das revoltas camponesas das populações indígenas dos campos e montanhas andinas do centro do país, das quais a primeira, Redoble por Rancas, tomou aqui o horrível título de Bom dia para os defuntos. Depois vieram Garabombo, o Invisível; O Cavaleiro Insone; Cantar de Agapito Robles; A Tumba do Relâmpago e A Dança Imóvel, lançado no ano de sua morte.

A crescente presença política das populações indígenas na face ocidental da América Latina, dos mapuches do Chile, passando pela Bolívia e chegando ao altiplano peruano, torna Scorza atualíssimo e é no seu segundo livro, Garabombo, o Invisível, que se encontra uma metáfora terrivelmente próxima do que se passa no país andino.

Garabombo não é invisível por mágica ou truque, mesmo sendo o romance do realismo fantástico da literatura regional. É porque, tendo ido servir ao Exército peruano em Lima, a capital do saque colonial da América espanhola, mesmo já independente, descobre que os homens do poder e do governo, física ou mentalmente brancos, simplesmente ignoram, como se não os vissem, os que vinham das origens indígenas do país.

Invisível, então, Garabombo serve-se disso para ajudar a organizar a revolta camponesa, porque não o enxergavam. E os comuneros, impedidos de se reunirem pelas autoridades, encontram um meio de se reunirem: são autorizados a construir uma escola, que quando está quase pronta, incendeia-se e os “obriga” a construir de novo, e maior. E de novo, maior e maior.

Imagem tão forte que há quase 50 anos me acompanha, desde que a li, num subúrbio carioca, por simples fome de leitura.

Pois Pedro Castillo, a surpresa das eleições peruanas, a quem não davam um tostão furado de possibilidades de vitória, passou de ilustre desconhecido a presidente eleito do Peru, o que só não se proclama oficialmente ainda porque Keiko Fujimori passou a usar a tática desesperada de impugnar 802 urnas nas quais diz que houve fraude.

Quem o colocou no segundo turno, de onde partiu para a vitória, não foi a classe média, a esquerda “moderna”: foram os ‘invisíveis’. E, dali, ele passou a representar o povão também em outras regiões do país, embora sua vitória definitiva continue a dever-se aos altiplanos, onde teve oitenta por cento ou mais dos votos.

Se conseguirá manter-se no governo é outra história. A correspondente de O Globo para a América Latina, ácida critica da esquerda, diz hoje que Em clima de pânico, elite peruana resiste a reconhecer sua vitória, embora tenha passado décadas ignorando esta força que vem sobrevivendo há um século no Peru desde a Apra – Aliança Peruana Revolucionária da América- criada em 1924 por Haya de La Torre.

Seja como for, nesta América Latina onde um tarado tornou-se líder simulando armas com as mãos, é um soproo de esperança que se eleja um professor humilde, de uma escola do interior, que fez campanha tendo um lápis como símbolo, que ele empunhava por toda parte.

Talvez para lembrar as palavras de Scorza: Li os livros que meus colegas de trabalho me emprestaram. Senti que uma venda caiu dos meus olhos e um grande brilho iluminou meu entendimento. Toda a escuridão se transformou luz do meio-dia até então para mim um livro ou jornal era papel de embalagem. A partir daí comecei a vê-los como depósitos, como silos de amor, onde os homens mais sábios guardaram suas idéias para que nós nos alimentássemos delas, porque as ideias são melhor pão para os famintos”.

Tijolaço.

quarta-feira, 9 de junho de 2021

FERNÁNDEZ, NÃO VIEMOS DA SELVA, ESTAMOS É SOB A SELVAGERIA, POR FERNANDO BRITO

Infeliz, sob todos os aspectos, a frase do presidente argentino Alberto Fernández, numa brincadeira idiota, querendo fazer uma “graça” com a frase “”os mexicanos vieram dos indígenas, os brasileiros, da selva, e nós, chegamos em barcos”.

É uma reedição anacrônica das disputas de ironias que eram comuns entre os hermanos e nós, que tinha como chiste reverso de se dizer que os argentinos “se acreditavam ingleses, mas eram italianos”.

E quando não debochamos do “índio” boliviano Evo, e do mulato mestiço Chávez e de tantos outros que não tinham o tipo físico “adequado” a serem governantes, porque encarnavam até no rosto o “povão”

Infelizmente, muitos não se apercebem do quanto isso representa, há dois séculos, um dos truques dos dominadores para dividir povos que têm, afinal, um continente e um destino em comum e onde a estratégia de dividir-nos sempre foi a maneira de nos conservarmos cativos.

Mas para nós, brasileiros, isso tem sido pior.

Estamos partindo o que o tempo vinha fazendo, ao nos fundir como um país mestiço, ainda que nesta mestiçagem haja muitas tristezas e opressões: os negros que vinham escravizados e eram abusados; os índios que perdiam sua terra e identidade, os europeus pobres, que vinham com alguns farrapos para trabalhar nas lavouras calejando as mãos, os árabes que juntavam moedas até poder mascatear pelas poeiras do interior, os judeus que se enfurnavam nos porões de navio e despencaram-se para cortiços e subúrbios para fazerem a vida.

Sim, o retrocesso tem como método nos dividir.

Tribos são sempre menores e mais fracas que nações e a estratégia de nos tribalizar, embora pareça atraente para alguns acaba por ser vantajosa para os que pensam que podem manter todo o povo se ele se dividir.

Fernández pode até estar certo ao dizer que argentinos vieram de barco, como de barco vieram muitos de nossos pais, avós, bisavós que, sem a passagem de volta – que só está disponível hoje para elites que, na Argentina, no Brasil e em inúmeros países da América Latina enriqueceram – vieram para a América.

Nosso barco agora, senhor presidente, é este continente latinoamericano e não é por outra coisa que a direita sempre quis destruir o Mercosul que nos fortalece politicamente ante a voragem neocolonial.

E é por isso que o senhor acabou por prestar um favor imenso a um governo brasileiro que trabalha por isso, mudando o tempo do verbo da frase infeliz: os brasileiros vieram da selva, da África, da Europa pobre, dos árabes, judeus e dos orientais de vidas miseráveis e avançaram. E que hoje estamos sendo arrastados à barbárie violenta.

Tijolaço.

JOGADORES DA SELEÇÃO BRASILEIRA FAZEM MANIFESTO CONTRA COPA AMÉRICA E NEGAM AÇÃO POLÍTICA

Após dias de especulação, atletas divulgam texto em suas redes sociais. Seleção Brasileira está confirmada para disputar o torneio no Brasil.

Jogadores ficaram decepcionados com a postura do presidente afastado da entidade Rogério Caboclo. (Lucas Figueiredo/CBF).

Os jogadores da seleção brasileira divulgaram manifesto sobre a realização da Copa América no Brasil após a vitória sobre o Paraguai nesta terça-feira. No texto, os jogadores ressaltam que nunca quiseram tornar a discussão política. "Somos contra a organização da Copa América, mas nunca diremos não à seleção brasileira."

No manifesto, os jogadores explicam que não houve tentativa ou sugestão de boicote à Copa América. Assim se limitam a expor o desconforto com as mudanças de sede e dificuldades com a organização. Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro usaram as redes sociais, ao longo dos últimos dias, para criticar a postura da seleção, principalmente do técnico Tite, contrária à celebração do evento no Brasil.

 "É importante frisar que em nenhum momento quisemos tornar essa discussão política. Somos conscientes da importância da nossa posição", escreveram os jogadores.

As informações sobre o descontentamento de integrantes da seleção brasileira surgiram logo após o anúncio de que o Brasil passaria a receber o evento, diante das negativas de Colômbia e Argentina, países que originalmente abrigariam a competição. A insatisfação de jogadores e comissão técnica veio ao encontro da repercussão negativa em celebrar a Copa América no Brasil mesmo em meio à pandemia do novo coronavírus com números que ultrapassam os 450 mil mortos.

 Além da situação da pandemia, outro fator que abalou a relação da seleção com a direção da CBF foi a falta de aviso e consulta aos atletas sobre a vinda do torneio para o país. Jogadores ficaram decepcionados com a postura do presidente afastado da entidade Rogério Caboclo. O dirigente é acusado de assédio moral e sexual por uma funcionária da entidade. O afastamento será pelo prazo de 30 dias, no entanto, articulações na CBF sugerem que em breve haverá novas eleições na entidade.

 Antes do duelo com o Equador, na última sexta-feira, o técnico Tite já havia pedido que seus comandados se concentrassem na missão de levar o País a mais uma Copa do Mundo. Mas deixou clara a insatisfação de sua parte e também dos atletas. Após o jogo, o volante Casemiro não entrou em maiores detalhes e reforçou as informações anteriores repassadas pelo treinador.

 Nesta quarta-feira, Tite fará uma nova convocação para definir os nomes que atuarão na competição sul-americana. A expectativa é que haja mudanças, uma vez que alguns atletas podem ser chamados para atuar pela seleção olímpica. O Brasil defende o ouro em Tóquio, e alguns jogadores já se mostraram interessados em participar novamente dos Jogos.

 A Copa América tem início agendado para 13 de junho. Em Brasília, no estádio Mané Garrincha, às 18h, a seleção brasileira enfrenta a Venezuela, pelo Grupo B. No mesmo dia, às 21h, Colômbia e Equador duelarão na Arena Pantanal, em Cuiabá. Em 14 de junho, será a vez da Argentina começar sua jornada na competição, enfrentando o Chile, no Engenhão, às 18h. Mais tarde, às 21h, Paraguai e Bolívia jogam em Goiânia. A final do torneio está marcada para 10 de julho, no Maracanã.

 Leia o manifesto na íntegra:

"Quando nasce um brasileiro, nasce um torcedor. E para os mais de 200 milhões de torcedores escrevemos essa carta para expor nossa opinião quanto a realização da Copa América.

 Somos um grupo coeso, porém com ideias distintas. Por diversas razões, sejam elas humanitárias ou de cunho profissional, estamos insatisfeitos com a condução da Copa América pela Conmebol, fosse ela sediada tardiamente no Chile ou mesmo no Brasil.

 Todos os fatos recentes nos levam a acreditar em um processo inadequado em sua realização.

 É importante frisar que em nenhum momento quisemos tornar essa discussão política. Somos conscientes da importância da nossa posição, acompanhamos o que é veiculado pela mídia, estamos presentes nas redes sociais. Nos manifestamos, também, para evitar que mais notícias falsas envolvendo nossos nomes circulem à revelia dos fatos verdadeiros.

 Por fim, lembramos que somos trabalhadores, profissionais do futebol. Temos uma missão a cumprir com a histórica camisa verde amarela pentacampeã do mundo. Somos contra a organização da Copa América, mas nunca diremos não à Seleção Brasileira."

R B A.

O NOSSO BRASIL VIROU O PAÍS DOS ESCROQUES, POR FERNANDO BRITO

O episódio da combinação entre o falsário que inseriu, na noite de domingo, um relatório fajuto e combinado com o presidente da República – ou com os filhos presidenciais, o que dá no mesmo – para que este colocasse em dúvida a extensão das mortes pela Covid, é só um retrato do que é a entrega do comando deste país à pior malta de escroques em sua história, e olhe que já tivemos por aqui escroques capazes de superar os maiores do mundo.

O sujeito que emprenhou com documentos faltos o site do TCU é “peixe” de Bolsonaro, que por ele interferiu para ser nomeado para um cargo no BNDES, em telefonema pessoal do presidente da República, ao então presidente do TCU para que este autorizasse sua requisição para o cargo, informa Waldo Cruz, da Globonews.

Já na CNN mostra-se que o advogado que agora representa formalmente Jair Bolsonaro é Frederick Wassef, o mesmo que homiziou Fabrício Queiroz em sua casa/escritório até que este foi descoberto e preso.

Temos uma escumalha no comando da República, como diz, na edição de hoje da Folha o colunista Bruno Boghossian, ao dizer que Bolsonaro levou gangue golpista ao poder, e não apenas no sentido do golpe político, mas no de aplicação de golpes de toda espécie, espalhados numa imensa rede de favorecimentos.

Mas vivemos um tempo em que tudo isso se aceita “em nome” do combate ao que seria “esquerdismo”contrário a um governo que, afinal, está “combatendo a corrupção”.

O governo Bolsonaro, se é que se pode chamá-lo de governo, está se putrefazendo.

Mas, muito mais rapidamente do que se dissolve, dissolve as instituições da República, a vontade nacional e nosso senso de decência púbica.

Ainda faltam 16 meses para as eleições e só quem for muito tolo acreditará que todo este tempo se permitirá que se forme naturalmente a consciência da população.

Não estamos lidando com um adversário político, mas com uma quadrilha.

Tijolaço.

terça-feira, 8 de junho de 2021

FALSÁRIO QUE CRIOU ‘RELATÓRIO DO TCU’ SOBRE MORTES É DA TURMA DOS ‘FILHONAROS’; FERNANDO BRITO

O Tribunal de Contas da União abriu sindicância para apurar as circunstâncias em que o auditor inseriu, na noite de domingo, um “estudo” – falso, feito por ele mesmo, apenas – que serviu para Jair Bolsonaro, segunda de manhã cedo, dizer que o Tribunal de Contas da União concluíra que menos da metade das pessoas mortas por Covid, no ano passado, teriam ido a óbito por outras razões.

Alexandre Figueiredo da Costa Silva Marques é amigo dos filhos de Jair Bolsonaro e foi levado por eles para ser, durante alguns meses, para o BNDES por outro integrante da “turma”, Gustavo Montezano, quando este foi nomeado presidente do Banco pelo presidente, que não se conformava de Joaquim Levy não ter criado a “caixa preta” escandalosa que desejava usar para atingir os governos petistas.

Alexandre acabou sendo barrado pelos ministros do TCU, que não queriam alguém do Tribunal exercendo uma função que seria auditada pelo próprio Tribunal.

Leia a nota do blog do jornalista Vicente Nunes, do Correio Braziliense:

Foi o auditor Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques o responsável por elaborar o “estudo paralelo” apontando que metade das mortes pela covid-19 no país não ocorreram. Segundo ele, os governadores inflaram o total de óbitos para obterem mais verbas do governo federal.

Procurado pelo Blog, Alexandre disse que só falaria com autorização da assessoria de imprensa do TCU, que já foi demandada. O auditor é amigo dos filhos do presidente Jair Bolsonaro e do presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Gustavo Montezano.

O “estudo paralelo” foi citado por Bolsonaro na segunda-feira (07/06) para desqualificar a pandemia do novo coronavírus, que já matou quase 500 mil brasileiros. Nesta terça (08/06), o presidente assumiu que o “estudo” não pertence oficialmente ao Tribunal de Contas da União.

Alexandre está lotado na secretaria do TCU que lida com inteligência e combate à corrupção. Quando começou a pandemia do novo coronavírus, ele pediu para acompanhar as compras com dinheiro público de equipamentos para o combate à covid.

A partir dali, o auditor começou a elaborar o “estudo paralelo”. Quando apresentou os resultados de sua tese aos colegas de trabalho, foi veemente repreendido, pois ficou claro que ele queria desqualificar os governadores e favorecer o discurso de Bolsonaro. Nenhum outro auditor do TCU endossou o “estudo” por considerá-lo uma farsa.

Assustados com a insistência de Alexandre, os colegas de trabalho comunicaram os ministros da Corte de Contas o que estava acontecendo. Mas o auditor entregou a sua tese aos filhos de Bolsonaro, que a tornou pública. O TCU abriu investigação para apurar a conduta de Alexandre.

Quem acompanha as redes sociais de Alexandre pode verificar que ele costuma compartilhar fake news, como os benefícios do uso de ivermectina no combate à covid, e incitar ataques a governadores, justamente a quem ele quer prejudicar com seu “estudo paralelo”.

Tijolaço.

segunda-feira, 7 de junho de 2021

EM RESULTADO INCERTO, CASTILLO TOMA A FRENTE NO PERU, POR FERNANDO BRITO

Num final de apuração de tirar o fôlego, o candidato da esquerda peruana, Pedro Castillo, acaba de passar à frente da direitista Keiko Fujimori, com pouco mais de 44 mil votos de vantagem, o que representa perto de 0,3% de diferença.

Keiko ganha em Lima e Castillo, com larga margem, entre população indígena da região andina e do litoral sul do país, numa divisão que se reproduz quase que eternamente na política peruana.

Falta boa parte da apuração dos votos no exterior (onde onde Keiko leva vantagem, mas também muitos das regiões de Cuzco, Puno, Junín, Ayacucho e outros de maioria indígena, com vantagem ainda maior, em geral de 4 para um.

Mas os votos do exterior são muitos e, com um quarto apenas apurados entre os quase 93% de urnas da contagem atual, devem deixar o resultado final em suspenso até o final da noite de hoje, ou até a madrugada.

Tijolaço.

domingo, 6 de junho de 2021

XADREZ DO MOMENTO MAIS DECISIVO DA HISTÓRIA BRASILEIRA, POR LUIS NASSIF

Não há mais tempo para se perseguir terceiras vias ou esperar que a crise ou as manifestações de rua resolvam. O país está no momento mais decisivo da sua história e com a pior geração de homens públicos e privados.

Há uma enorme discrepância entre o que a mídia passa sobre o pensamento militar, através de inúmeras declarações em off, e os atos concretos do Exército. Nas declarações, apoio integral à disciplina e à visão das Forças Armadas como poder de Estado. Na prática, endosso tácito às arbitrariedades de Jair Bolsonaro.

As explicações devem ser buscadas em um fenômeno manjado do mercado de opinião: a diferença entre as opiniões individuais e as opiniões coletivas. Individualmente todos somos a favor do bem, da verdade, dos bons propósitos. No coletivo, tudo é possível, pois submetido ao monstro, a onda instável criada no grupo, que pode ir da generosidade mais sensível à ferocidade mais inexplicável. Isso porque entra, no comportamento, o componente dos interesses corporativos e pessoais e o efeito-manada.

Nenhuma categoria está imune ao efeito manada. O discurso de ódio dos últimos anos transformou jornalistas experientes em bestas feras sedentas de sangue e exigindo autocrítica das vítimas. O refluxo os devolveu à civilização, com um discurso humanista emocionado – e sem autocrítica. Nos órgãos de controle, transformou burocratas pacatos em justiceiros do velho oeste, daqueles que arrombam a porta da delegacia para enforcar suspeitos. No Ministério Público, infundiu um sentimento de onipotência que se espalhou por toda a corporação, calando as vozes de bom senso.

O primeiro passo, então, é separar dois tipos de opiniões pessoais. Um, a das chamadas pessoas-bússola, que mantêm suas convicções independentemente das ondas. Outra, a das birutas-de-aeroporto, que seguem as ondas. Tudo isso em um país sem nenhum caráter institucional, com uma história secular de oportunismo. Por isso, jornalistas, ministros, juízes, procuradores, políticos, militares, cronistas de variedades, seguem as ondas de opinião com a mesma facilidade com que adolescentes seguem a última moda.

Nesse quadro, em qualquer dessas organizações há pouco espaço para as figuras-bússola. Assim, o caráter dessas corporações-instituições acaba refletindo o oportunismo e a tibieza da cúpula que, por sua vez, foi filtrada justamente por sua postura acomodatícia.

No caso do Exército, há uma dificuldade extra para decifrar os movimentos coletivos. As declarações têm que ser sempre em off. Como toda reportagem é em off, elas são vulneráveis ao efeito “elefante e os 7 cegos”, cada qual dando ao elefante o formato de acordo com o pedaço do corpo que apalpa. Ou então, valendo-se da cegueira generalizada para incluir jabutis nas declarações em off. Afinal, como tudo é off, um pouquinho de subjetividade não fará mal a ninguém.

É o caso de Merval Pereira, sustentando que a decisão do Exército foi para não fragilizar Bolsonaro perante Lula. Nenhum dos colunistas supostamente com fontes militares reportou tal preocupação. Donde se conclui que Merval apalpou apenas a tromba do elefante e transformou a preocupação lateral imediata de uma fonte em objetivo geral. Ou então quis reeditar o efeito Villas Boas, trazendo de volta o fantasma da intervenção militar contra Lula para estimular a chegada de algum dom Sebastião, descendo dos céus para salvar o país do lulismo e transformar em algo sólido o ectoplasma da terceira via.

Mas acertou a questão maior. Quando houve a invasão da administração pública por militares, eles se acostumaram com o poder com suas diversas benesses: melhoria da renda, aumento da influência sobre setores da economia e celebrização. E, cimentando esses interesses menores, a afinidade com várias das teses defendidas por Bolsonaro no plano moral, ambiental e no antipetismo exacerbado. 

Assim como em 1964, a ocupação militar se dá, inicialmente, preservando alguns formalismos democráticos. Em 1964 não faltou o endosso de uma eleição indireta de Castello Branco – depois do Congresso devidamente expurgado por cassações. E a promessa – jamais cumprida – de devolver o poder aos civis, depois do país ser limpado dos indesejáveis.

O mesmo ocorre agora. O Supremo ordena que o Exército vá atender as populações indígenas atacadas pelo Covid. Não há questionamento, mas não se cumpre a ordem. A ordem é jogada de um lado para o outro, de um escaninho burocrático para outro e nada se faz.

Repete-se com as milícias oficiais ligadas à violência. Tome-se o massacre de Jacarezinho. O STF só autorizou operações policiais em casos graves. Aí, o Secretário da Policia Civil dá como motivo quadrilhas aliciando menores – um dado rotineiro na vida carioca. Mas é suficiente para montar uma operação bélica que resulta no maior massacre da história do Rio de Janeiro. Mas, como dizem os idiotas da objetividade, as instituições continuam funcionando.

A estratégia de Bolsonaro tem sido óbvia. Vai comendo a democracia pelas bordas. Vez por outra tenta o embate frontal, encontra resistências e muda de assunto. E continua comendo pelas bordas, enquanto o país civilizado alimenta o sonho de que irá tirá-lo do poder nas eleições de 2022.

PONTO 1 – PREPARAÇÃO DO GOLPE

O processo de golpe em marcha consiste dos seguintes pontos:

1. Entrada descontrolada de armamentos beneficiando dois setores formais e um setor criminoso ligados a Bolsonaro: ruralistas e clubes de tiro e caça, e asmilícias propriamente ditas. No primeiro caso, assinou vários decretos não só liberando a importação e compra indiscriminada de armas como aboliu até os procedimentos para identificação de origem das munições. No segundo caso, afastou um superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro e fiscais da Receita do porto de Itaguaí – porta de entrada do contrabando de armas no país – que combatiam diretamente a atividade criminosa do contrabando de armas.

2. Cooptação das bases das polícias militares. A última iniciativa, do Ministério da Justiça – dirigido por um ministro bolsonarista – é conseguir o e-mail de todos os policiais militares do país para um suposto levantamento das suas condições sócio-econômicas. É evidente que a ideia será inseri-los no circuito dos algoritmos que sustentam a base bolsonarista.

3. As benesses aos militares, escancarando os cargos na administração civil para militares da ativa e da reserva, ampliando suas verbas e benefícios funcionais. Ao aceitar os decretos de armas de Bolsonaro, o Exército abriu mão do seu maior poder, o do monopólio da força. É uma instituição sem espinha dorsal.

4. Fortalecimento das bases evangélicas, com a atuação pertinaz da Ministra Damares destruindo políticas de saúde e de inclusão para transferir poder a asilos e escolas especiais dominadas pelo neopentecostalismo.

5. Manutenção dos laços de parceria com a ultradireita mundial através do Itamarati. Tirou-se um Ministro das Relações Exteriores trapalhão, mas não se alterou a orientação do Itamarati.

6. Queima irresponsável de ativos públicos essenciais – em operações conduzidas por quadros militares, como o Ministro das Minas e Energia Bento Albuquerque – para comprar o apoio do mercado.

7. O maior projeto de suborno da história do país, entregando todo o orçamento para controle absoluto dos parlamentares, visando fortalecer

Parafraseando Noel Rosa – por aqui tudo se compra -, Bolsonaro logrou cooptar três instituições essenciais:

Congresso – com o suborno das emendas.

Exército – com empregos e tornando-o co-gestor do país.

Mercado – com o suborno das privatizações.

PONTO 2 – AS FORÇAS DO CONTRAGOLPE

Em todo esse imbróglio, há apenas uma força impedindo o golpe: a indignação de parte da população com a necropolítica de Bolsonaro e a permanência da crise econômica. É esse alarido que impõe limites à própria ampliação do poder militar, confere autoridade aos Supremo Tribunal Federal e à própria CPI do Covid. Esse desgaste é medido nas pesquisas de opinião e nas manifestações de rua.

Atualmente, há há dois processos promovendo a mobilização. O primeira, os desastres da política de saúde de Bolsonaro no combate à pandemia. O segunda, a crise econômica e a notável inoperância do Ministério da Economia.

E se esses fatores se diluirem?

Do lado da saúde, a vacinação – ainda que tardia – afastará o fantasma do Covid, deixando para trás a lembrança das centenas de milhares de famílias órfãs. Afastado o risco da pandemia, o foco maior será a economia.

Do lado da economia, com o controle da pandemia haverá uma melhoria óbvia. E haverá também o efeito externo, do novo ciclo de alta  dos commodities permitindo alguma recuperação econômica. E, obviamente, fortalecendo o discurso de Bolsonaro de que seu combate ao isolamento social garantiu a recuperação. 

Coloque-se nesse caldeirão a reativação dos programas de transferência de renda e se terá um candidato competitivo.

Há outras sombras no horizonte, como a provável crise hídrica, uma possível terceira onda do Covid.

Repare, portanto, que todo o blábláblá dos idiotas da objetividade sobre a força das instituições, fica na dependência exclusiva de fatores fora do controle das instituições. Se a economia se recuperar, o resultado político será um; se piorar, será outro.

PONTO 3 – O QUE SERIA UM SEGUNDO GOVERNO BOLSONARO

Caso prevaleçam os fatores pró-Bolsonaro na economia e na saúde, há o risco concreto de uma consolidação da barbárie, mas ampliada com outros atores. Afinal, trata-se definitivamente de um país sem caráter institucional. 

Para impedir um governo social-democrata que coloque um fim a esse banquete de bárbaros, poderá ocorrer o seguinte movimento.

1. Bolsonaro repaginado

Fortalecido, Bolsonaro não terá necessidade de continuar apelando às suas bases radicais, moderando a retórica – não a prática – para ampliar sua base de apoio.

Hoje em dia, por exemplo, o desmonte final do Estado é contido pela resistência de quadros do Estado ligados ao bolsonarismo – especialmente as forças policiais. Conseguindo diversificar sua base de apoio,  poderá se aventurar a encarar a pá de cal no Estado brasileiro, a reforma administrativa. Preservando, obviamente, a polícia e o Judiciário.

2. Exército co-gestor do desastre

Sem o alarido das ruas, o Exército poderá se curvar cada vez mais a Bolsonaro. Afinal, tornou-se uma corporação sem nenhum verniz intelectual, sem projeto algum de país, sem uma liderança de fôlego sequer, meramente administrando alianças com outros setores e benesses para a corporação. Juarez Távora, Estilac Leal, os Cardoso, Golbery, personalidades à esquerda e à direita serão apenas um quadro na parede das Forças Armadas, substituídos por DAS armados.

Assista a entrevista do historiador Manuel Domingos sobre os militares, hoje. Vídeo abaixo:

3. Mercado comprado

Se der certo o projeto Bolsonaro repaginado, haverá uma aceleração do desmonte do Estado, com a destruição final do sistema público de serviço. Com o endosso do mercado, bastarão alguns acenos de Bolsonaro para a mídia corporativa cair de novo em seus braços consumando a privatização total da educação, com a destruição do sistema público de ensino, e a ampliação da privatização da saúde.

4. Diques de contenção

Sem o endosso das ruas, um cabo e um sargento bastarão pra retrair o Supremo, a CPI do Covid e outras tentativas de conter Bolsonaro.

PONTO 4 – OS PONTOS DE RESISTÊNCIA

Menciono o cenário acima como um argumento “ad terrorem”. Mas é uma possibilidade concreta. Não é por outro motivo, que a própria OCDE e o Fórum Econômico Mundial conferem ao Brasil o status de ameaça – tanto climática quanto à democracia -, em pé de igualdade com a Turquia.

Veja, a propósito, entrevista com o jornalista Jamil Chade, sobre o pensamento dos organismos multilaterais e das principais associações do capitalismo.  Vídeo abaixo:

Não há mais tempo para se perseguir terceiras vias ou seja lá isso o que for, ou procrastinar em relação aos abusos de Bolsonaro, esperando que a crise ou as manifestações de rua resolvam a questão.

O país está no momento mais decisivo da sua história e com a pior geração de homens públicos e privados da história. Resta apenas uma personalidade com dimensão – Lula, por sua história e por seu papel de ex-presidente. Resta ver se conseguirá superar o pensamento miúdo e imediatista de um país que perdeu todas as referências.

As recentes manifestações conjuntas de Lula e FHC acendem uma luz, ainda que tênue, de esperança.

GGN.

BOLSONARO QUER A SELEÇÃO BRASILEIRA PARA SEU JOGO EM 2022, POR FERNANDO BRITO

Misturar seleção de futebol com política é uma estupidez e, portanto, providência que os estúpidos logo tratam de tomar.

A lista é imensa e se tornou, durante a ditadura, uma constante, desde que o general Emílio Médici se deixava fotografar de “radinho de pilha” (os mais jovens procurem no Google o que é) e rebrotou há alguns anos com a camisa CBF servindo de uniforme das manifestações da direita, ao ponto de desestimular muitos de nós, como era hábito, darmos de presente a nossos filhos, em algum tempo de sua infância.

Seguiu-se a compulsão permanente de Jair Bolsonaro em virar papagaio de pirata em jogos de futebol, como aconteceu na primeira Copa América de seu governo, em 2019. Na época, ele ainda podia descer ao gramado ou ir fazer arminha da tribuna, algo que não impossível agora apenas porque os jogos são sem público.

Daí veio a “grande ideia” pegar a xepa da Copa América, que rodava disponível como um vira-latas, nestes tempos de pandemia.

Jair Bolsonaro, tal como estimulou e apadrinhou a ida de Eduardo Pazuello a um palanque para apertar o garrão sobre o Exército de olho em criar uma tensão militar ante as eleições de 2022, também fez da polêmica em trazer a competição para o ajudou – sabe-se lá por iniciativa própria ou conselho de quem – a catalisar as tensões dentro da CBF e mira eliminar as resistência a que seja ele o “dono da bola” na Copa do próximo ano.

Ao que parece, o técnico Tite seria uma das ‘pedras na chuteira” a este processo.

Claro que não se pode ser ingênuo de apostar que o time esteja absolutamente fechado com a ideia de que a competição é um inconveniente sanitário. Não é a história das nossas seleções.

Mas está evidente que estão fechados com o treinador e, ao que parece, dispostos a um gesto que os coloque a seu lado.

Onde Bolsonaro bota a mão, tenha certeza, haverá conspiração, manipulação, “camas de gato” e desastre.

Havia, na mitologia, o Toque de Midas, que a tudo transformar em ouro. A boa educação evita dizer de que é o toque de Bolsonaro.

Tijolaço.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

NISE DEIXOU A CLOROQUINA CAIR; LUANA PISOU-A, POR FERNANDO BRITO

A médica Luana Araújo carregou duas bombas para CPI.

Uma foi bomba-relógio, que vai ser detonada quando Marcelo Queiroga, o Ministro da Saúde, voltar a prestar depoimento. Gentil, não quis avançar em especulações sobre o veto que recebeu para ser nomeada para o cargo que foi convidada e aceitou: o de comandar o combate à pandemia no Brasil. Disse que foi comunicada disso por Queiroga e, portanto, ele terá de explicar as razões pelas quais, nas palavras do ministro, “sua indicação não foi aprovada”.

Quem a reprovou, portanto, é resposta a que

A segunda, de ação continuada e arrasadora, a firmeza e a clareza de linguagem para demonstrar que toda esta história de cloroquina e demais integrantes do “kit covid”é, a esta altura, algo que, nas suas próprias palavras, é apenas “neocurandeirismo”.

— Essa é uma discussão delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente. Ainda estamos discutindo uma coisa sem cabimento. É como se estivéssemos discutindo de qual borda da terra plana vamos pular

— Todos nós somos favoráveis a uma terapia precoce que exista. Quando ela não existe, não pode ser uma política de saúde pública. Essa é uma discussão delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente.

Ao explicar a diferença entre testes “in vitro” – nos quais se fundam muitas supostas indicações ineficazes contra a Covid – e testes clínicos, não poderia ser mais clara:

— Se eu botar uma cultura viral no microondas, o vírus vai morrer. Mas não é por isso que eu vou mandar o paciente entrar no forno duas vezes por dia.

Luana deixou claro que está errada toda a política de enfrentamento da pandemia, focada apenas na questão de leitos de UTI e descuidando de programas de testagem em massa, medidas de distanciamento social, abandono da atenção básica de saúde, descoordenação entre os entes federativos. E, sobretudo, com a falta de “uma comunicação clara, de mensagem única. Do contrário, as pessoas ficam perdidas”.

Pois é isso que estamos: perdidos.

Tijolaço.

O ÚLTIMO REFÚGIO DE JOHNSON, POR FERNANDO BRITO

O literato inglês Samuel Johnson, no século 18. criou a frase que atravessou o tempo: “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”.

Voltasse no século 21 e tivesse a desventura de ver o que o Brasil é hoje, talvez reformasse a frase e dissesse que o Patriota, pseudopartido no qual Jair Bolonaro pretende desembarcar, é o tal último refúgio do – a palavra é elegante na língua inglesa – scoundrel.

Pois não é que, ao que parece (e tudo pode ser uma jogada de negócios) que Jair Bolsonaro inclina-se a usar o partido Patriota (ex-Partido Ecológico Nacional – PEN) como seu refúgio para as eleições do ano que vem, depois de conseguir perder o PSL e frustrar-se o tal “partido 38”, o Aliança pelo Brasil.

—" Está quase certo. Estamos negociando. É como um casamento, né? Programado, planejado, para não dar problema, né?”

No PSL, foram para o brejo os negócios com Luciano Bivar, o dono da sigla, alugada ao candidato de 2018.

No “Aliança”, a inacreditável história de que não foi possível reunir assinaturas suficientes para legalizar a legenda daquele calibre. Assinaturas em número que, recordem-se, até Marina Silva e Paulinho da Força conseguiram juntar, e não há dúvida que o “Mito”, que alega ter multidões atrás de si, teria mais facilidade em arrebanhar, se me perdoam o verbo.

Será seu candidato a presidente, vaga que foi ocupada em 2018 pelo Cabo Daciolo, que deixou a legenda.

É claro que um presidente que tem maioria (e folgada) na Câmara dos Deputados possuiria, em tese, um cardápio de partidos e partidecos a escolher no qual filiar-se.

Mas não é bem assim.

Em primeiro lugar, os deputados que controlam suas máquinas partidárias sabem que Bolsonaro lhes entraria como um trator. Uma, duas ou três cadeiras que lhes caberiam seriam abiscoitadas, provavelmente, pelos candidatos das suas falanges e diminuiriam ou anulariam a chance de eles próprios conservarem o mandato.

Depois, numa eleição polarizada, na qual – em especial no Nordeste – sentem que Lula pode se tornar uma onda e, claro, não têm porque remar contra a maré. Como escreve a jornalista Helena Chagas, “querem marchar livres, leves e soltos para 2022. Alguém duvida que, num eventual novo governo do PT, eles estarão lá?”.

Bolsonaro também não se importa muito com um partido – e alianças – que lhe garantam um tempo expressivo de televisão. Aposta que sua campanha seja nas redes, no smartfone, não nos aparelhos de TV.

Robôs valem militantes, fake news valem mais que argumentações. Está no poder, mas faz-se de vítima.

Bolsonaro é o “rei da treta”, tem uma estrutura profissional (e, em parte, clandestina) montada e uma estratégia pronta, que só não vê quem não quer. Ser a vítima, o anti-establishment faz parte do seu show.

Tijolaço.

terça-feira, 1 de junho de 2021

RICARDO SALLES EDITOU MAIS DE 300 ATOS QUE PÕEM MEIO AMBIENTE BRASILEIRO EM RISCO

Levantamento do Inesc traz raio-x dos dois anos de gestão e aponta normas de “alto risco”.

Salles editou pelo menos 317 atos oficiais que comprometem a política ambiental brasileira.

Ao longo da gestão de Ricardo Salles, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) editou pelo menos 317 atos oficiais que colocam a política ambiental brasileira em risco. O dado resulta de um levantamento feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), que localizou e avaliou medidas adotadas pela pasta desde quando o mandatário assumiu o cargo, em janeiro de 2019, data em que Salles foi empossado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). 

O registro feito pelos pesquisadores sistematiza portarias, instruções normativas, resoluções, deliberações e despachos publicados até dezembro de 2020, quando o ministro completou dois anos de gestão.

Todos esses dispositivos são considerados atos normativos infralegais e foram categorizados conforme uma escala de cinco graus de risco, variando entre “muito baixo”, “baixo”, “médio”, “alto” e “muito alto”. Os pesquisadores também consideraram a categoria “não se aplica”, usada para medidas que não impõem danos ao meio ambiente. Ao todo, 207 ficaram neste último grupo, enquanto as que trazem riscos somam 317.

“É um processo de desmonte muito grave, e isso consolida a visão de que o Salles está lá para isso. O MMA, do ponto de vista do orçamento, nunca foi muito relevante, mas ele passa a ter um papel muito relevante neste governo, que é justamente o de desmontar o que existia de política ambiental”, analisa a assessora política do Inesc Alessandra Cardoso, coordenadora do estudo.

RICARDO SALLES E SUAS MEDIDAS

O levantamento analisou as 524 medidas normativas publicadas pelo ministério e alguns de seus braços. Foram 118 atos do próprio MMA, 282 do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), 113 do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e uma do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ).

A pesquisa identificou que 10 medidas têm risco “muito alto” enquanto 38 têm “alto” potencial negativo. Questionada sobre os critérios para se enquadrar determinados atos de acordo com esse grau, a coordenadora explica que tais categorias abrigam ações que promovem uma maior fragilização do controle ambiental.  

“A gente classificou assim aquelas que têm elementos que configuram o enfraquecimento do órgão, seja do ponto de vista de pessoal, seja do ponto de vista da normativa. No Ibama, por exemplo, tem algumas instruções que mudam o processo de julgamento de multas, o rito do processo de infração e monitoramento, e isso está muito evidente”, explica.

É o caso da Instrução Normativa Conjunta Ibama/ICMBio/MMA Nº 1, de janeiro de 2020. O dispositivo normatizou procedimentos para a conversão direta de multas ambientais em serviços de preservação da qualidade do meio ambiente e permite que, a partir disso, o autuado implemente projetos por conta própria.

Os especialistas apontam que a norma é de alto risco porque dispensa decisões técnicas na aprovação desses projetos, que ficam restritos ao julgamento de ocupantes de cargos políticos. Por conta disso, o Inesc entende que a instrução compromete os mais de 130 mil processos de infração ambiental pelos quais respondem os órgãos que editaram essa orientação.

DANOS AO MEIO AMBIENTE

“Quando se coloca, por exemplo, mais poder pra um gestor que é indicado politicamente para dar sequência ou não a um processo de condução da fiscalização, a gente considera isso uma medida de altíssimo risco, porque você sabe que isso vem junto com outros sinais e movimentos que mostram que essa medida existe pra desmontar a política de fiscalização”, aponta Alessandra Cardoso.

A Instrução Normativa Nº 1 está também entre as 12 medidas que foram consideradas pelos pesquisadores como “as mais danosas” das 524 catalogadas. O rol inclui ainda regras que fragilizam a estrutura do ICMBio e o seu papel de gestão das unidades de conservação.

Também estão na lista orientações que debilitam a atuação do MMA e reorientam a participação da pasta na agenda ambiental. É o caso do que o estudo classifica como “gestão pouco transparente e tendenciosa” das verbas do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (FNMC), observada por meio da ata da 28ª reunião do MMA.

O desmonte do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), promovido pelo Decreto 9.806/2019 e normatizado pela Portaria MMA nº 630/2019, é outro exemplo resgatado pelos pesquisadores. O estudo completo está disponível para visualização neste link.

O Brasil de Fato procurou o Ministério do Meio Ambiente (MMA) e não obteve respostas até o fechamento desta matéria.

RBA.

‘DESPARTIDARIZAR’ PM, EXÉRCITO E ARMAMENTO É CHAVE PARA A DEMOCRACIA, POR FERNANDO BRITO

DCM publica a foto de um certo “Tenente Albuquerque”, policial militar que prendeu um professor com base na Lei de Segurança Nacional , por recusar-se a tirar um adesivo “Bolsonaro Genocidade ” de seu automóvel.

No Recife, permanecem anônimos os que deram ordem de avançar atirando balas de borracha – que perfuraram um olho em dois homens que passavam pelo local do qual se aproximavam, em paz e desarmados, manifestantes antibolsonaro.

Um sujeito andando de bicicleta à luz do dia, desarmado, é algemado e preso por não colocar imediatamente as mãos na cabeça porque um PM, com uma pistola apontada para o seu rosto deu a famosa “ordem legal”, absolutamente ilegal.

Como é absoutamente ilegal termos uma “tropa” – irregular mas fortemente armada – de “atiradores” civis, em tamanho suficiente , se contar com a cumplicidade militar, para desfechar um golpe paramilitar no país.

Ao que parece, estamos dentro do pesadelo imaginado em 1968 pelo então vice-presidente Pedro Aleixo: a ditadura do guarda da esquina, o império do “esculacho” policial que, ontem, foi corroborado pelo próprio presidente da república, ao dizer que manifestantes de oposição estão agitados ‘porque está faltando erva”.

É a “zorra total” com as instituições militares, que tem seu exemplo mais simbólico com a certeza de que Eduardo Pazuello não vai ser punido por ir a um palanque político ao lado de Bolsonaro porque Jair não quer. E, se for, o “Mito” anula.

Polícia e Exército estão sendo transformados num partido, e faz tempo, porque são centenas de personagem que colocam um prefixo militar – de soldado a general – para galgarem cargos eleitorais com apelos à ordem policialesca e a promessa de que enfrentarão “os vagabundos”.

Não se desarma este castelo pela base, como não se pôs freios aos abusos de juízes e promotores senão quando se fez ruir o sei “Mito”, o ex-juiz Sergio Moro.

É preciso que se tire o chefe do “Partido da Arma”, como se tirou o chefe do “Partido da Toga”.

Tijolaço.

ACORDOS INTERNACIONAIS – ARMADILHAS PARA O FUTURO GOVERNO BRASILEIRO, POR PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

O Brasil participa atualmente de duas negociações econômicas de importância estratégica – importância muito mais negativa do que positiva, como vou explicar. Refiro-me ao acordo Mercosul/União Europeia e à entrada do Brasil na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). As duas remontam ao governo Temer, que decidiu pleitear o ingresso na OCDE e retomar negociações antigas com a União Europeia. Foram levadas adiante pelo governo Bolsonaro, mas estão basicamente paralisadas, por obra das suas políticas climáticas. Dificilmente serão concluídas enquanto o governo não for substituído ou não mudar suas políticas nessa área (e a primeira hipótese parece mais fácil do que segunda!).

As duas questões devem ficar para um outro governo, que começará em janeiro de 2023, admitindo-se que Bolsonaro chegue ao final do seu mandato, mas não alcance a reeleição. (Deixo de lado, neste artigo, a possibilidade – a melhor para o País – de que o seu mandato acabe sendo abreviado, terminando antes das eleições de 2022.)

Do governo Bolsonaro, um dos poucos bons resultados – completamente involuntário – é o de ter inviabilizado, com suas políticas de destruição ambiental, tanto a entrada na OCDE quanto a ratificação do acordo com a União Europeia. Como diz meu amigo Gabriel Ciríaco, “há Salles que vêm para bem”. Diga-se de passagem, que uma administração Mourão, que adotaria presumivelmente política ambiental mais civilizada, traria a desvantagem de talvez viabilizar a conclusão dessas duas iniciativas, emparedando o próximo governo.

Porém, o mais provável é que Lula ou Ciro Gomes, ambos defensores de políticas de desenvolvimento, venham a ser confrontados, se eleitos, com as duas em aberto: a) um acordo pronto ou praticamente pronto, mas ainda não ratificado, entre o Mercosul e a União Europeia; e b) um processo relativamente adiantado de preparação para a entrada do País na OCDE. Como nem Ciro nem Lula dariam continuidade aos descalabros ambientais do atual governo, o caminho estaria aberto para finalizar as negociações internacionais em curso. Pequeno problema: elas se chocam frontalmente com a autonomia das políticas nacionais de desenvolvimento.

Se, por outro lado, o vencedor das eleições for alguém da direita tradicional, não-bolsonarista, digamos Mandetta, Dória ou Jereissati, é provável que a questão se coloque de outra forma e sem grandes dificuldades, pois a finalização das duas negociações se enquadra perfeitamente na agenda neoliberal tradicionalmente defendidas pelas forças políticas que eles representam.

Quais são os argumentos neoliberais? São, em boa medida, genéricos ou de natureza ideológica, do tipo “O Brasil precisa estreitar laços com os países mais avançados”, “não podemos ficar restritos ao mundo emergente e em desenvolvimento”, “precisamos modernizar e abrir a economia”, “temos de aprimorar nossas leis e regulamentos e obter um selo de qualidade”. Conversa que não comove nenhum país emergente que tenha noção dos seus objetivos de longo prazo e da importância de conservar margem de manobra na definição de políticas públicas.

OCDE – órgão pesadamente normativo

A OCDE, leitor, não é um clube confortável em Paris, com toalhas felpudas e outras amenidades. Não é apenas um fórum de discussão, onde nossa voz seria ouvida se nos tornássemos membros. Trata-se de um organismo normativo, que estabelece diferentes tipos de compromissos e obrigações para seus países membros. Ela existe desde 1961 e se cristalizou como organismo que reflete, de forma infalível, as prioridades e interesses dos Estados Unidos, dos principais países da Europa e de outras nações desenvolvidas. Os emergentes que lá figuram são meros coadjuvantes, sem peso real na definição das normas da instituição, há muito consolidadas pelos desenvolvidos. Na prática, são sócios de segunda classe, que aceitam limitar suas políticas em troca do prestígio de participar do “clube dos ricos”.

O Brasil está, desde 2017, na fila dos candidatos e vem se esforçando para atender os requisitos e exigências. Sintomático que o secretário-geral da OCDE, o mexicano Angel Gurría, tenha afirmado recentemente que, entre os seis candidatos atuais, “o Brasil tem enorme vantagem, faz parte da família e já está na cozinha”. De lá não sairá… Pode até ser aceito como membro, mas continuará na cozinha da OCDE na companhia de México, Colômbia, Chile e Costa Rica.

Os compromissos exigidos pela OCDE são mais amplos do que os de outras instituições multilaterais. No campo dos movimentos internacionais de capital, por exemplo, a OCDE é bem mais rigorosa do que o FMI na busca de compromissos de liberalização. Quando eu era diretor do Brasil e de outros países no FMI, houve tentativas de importar aspectos das normas da OCDE nesse tema. Não sendo o Brasil membro da OCDE, eu podia me opor a isso com sucesso, assim como fazia o ministro Mantega nas reuniões do conselho ministerial do FMI.

Não é por acaso que nenhum dos outros países dos BRICS está pleiteando ingresso na OCDE. Rússia, Índia e China são grandes países emergentes que prezam a sua autonomia estratégica. Mesmo a África do Sul, menor e potencialmente mais vulnerável às pressões ocidentais, não faz questão (até onde sei) de entrar nesse clube.

Acordo Mercosul/União Europeia – poucas vantagens, muitas limitações

O acordo Mercosul/União Europeia também é altamente problemático. A negociação propriamente dita já foi concluída; o acordo encontra-se em fase de revisão jurídica e tradução para depois ser encaminhado aos Parlamentos. Engana-se quem pensa que se trata de um acordo de livre-comércio. Não é. E por duas razões. Primeira: os europeus se reservam o direito de proteger, de formas variadas, a sua agricultura contra a concorrência dos produtores mais competitivos do Mercosul. O acordo proporciona, na verdade, pouco acesso adicional aos mercados da União Europeia. Mas abre, por outro lado, os mercados do Mercosul para as exportações industriais europeias por meio da diminuição das tarifas de importação.

Segunda razão: o acordo vai muito além do comércio de bens para estabelecer obrigações em áreas como serviços, investimentos, competição, solução de controvérsias, propriedade intelectual (inclusive indicações geográficas), compras governamentais e proteção do meio ambiente. No que se refere a compras governamentais, por exemplo, o acordo coloca em pé de igualdade as empresas do Mercosul com as empresas europeias industriais e de serviços, mais avançadas tecnologicamente e mais competitivas.

No frigir dos ovos, obtém-se um pouco de acesso adicional ao mercado europeu em troca de: a) abertura dos mercados do Mercosul para as exportações industriais da Alemanha e outros países; e b) severa limitação de políticas governamentais em diversas áreas.

Não por acaso, um negociador europeu foi flagrado confessando que “we got way with murder on this deal” (em tradução livre: obtivemos tantas concessões que o acordo foi um assassinato). A inconfidência não surpreende. Nos seus aspectos principais, o acordo foi concluído em 2019, no primeiro ano do incompetente governo Bolsonaro e na reta final de um governo fraco na Argentina, o de Macri.

Vamos ter que nos livrar desse entulho todo.

O que fazer?

Um futuro governo brasileiro pode desativar as duas armadilhas (e outras, não abordadas neste artigo) sem confrontação e sem alarde. Seria fazer algo semelhante ao que fez o governo Lula com a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) em 2003 e 2004, acordo que serve de matriz, aliás, para o acordo Mercosul/União Europeia. Graças à ação inteligente e habilidosa de Celso Amorim, Samuel Pinheiro Guimarães e Adhemar Bahadian, sem barulho e sem brigar com ninguém, o Brasil impediu a concretização da ALCA, que o governo Fernando Henrique Cardoso, submisso às orientações dos Estados Unidos, havia deixado praticamente pronta. Não restou aos americanos outra alternativa do que negociar acordos bilaterais no modelo ALCA com alguns países latino-americanos. O Mercosul ficou de fora.

No que diz respeito à OCDE, basta abandonar o pedido de ingresso e continuar como parceiro-chave da organização, participando sempre que possível e conveniente de discussões sobre temas de nosso interesse. Os regulamentos e as práticas recomendados pela OCDE que forem úteis para a nossa economia e o nosso desenvolvimento podem ser adotados em âmbito nacional, sem estreitar por compromisso internacional o espaço de atuação do País em áreas de interesse estratégico.

No que se refere ao acordo Mercosul/União Europeia, o natural seria buscar uma redefinição do acordo, buscando maior equilíbrio em várias áreas. Os europeus nem teriam condições de denunciar uma volta atrás, posto que eles mesmo vêm tentando reabrir o acordo concluído em 2019 para introduzir mais compromissos e obrigações na área ambiental. Se for possível reequilibrar o acordo, ótimo. Se não, continuaremos a prezar e desenvolver as nossas relações econômicas com o bloco europeu, sem amarrar-nos a compromissos internacionais desequilibrados e invasivos.

Em tudo isso, o fundamental é nunca esquecer que o Brasil não pode abrir mão da sua capacidade de desenvolvimento nacional independente.

Tijolaço.