Em
“Carta ao Povo de Deus”, 152 bispos criticam “incapacidade” de Jair Bolsonaro. O
documento é assinado pela ala progressista da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB).
Há
duas semanas, dois bispos escutados pela reportagem do Brasil de
Fato falaram sobre a existência de uma articulação entre os integrantes da
ala progressista da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) visando a
criação de uma frente para que a entidade tenha “influência” no debate contra o
governo de Jair Bolsonaro.
Hoje,
152 bispos, arcebispos e bispos eméritos brasileiros divulgaram um documento
denominado Carta ao Povo de Deus, no qual fazem duras críticas ao capitão
reformado, principalmente diante da pandemia de covid-19, e ao bolsonarismo.
“Analisando
o cenário político, sem paixões, percebemos claramente a incapacidade e
inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas crises”, afirmam no
documento.
“Assistimos,
sistematicamente, a discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou
normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela covid-19 (…) e os conchavos
políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso não
se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com
a Tradição e a Doutrina Social da Igreja”, afirmam os integrantes da ala
progressista.
De
acordo com os bispos, essa movimentação não está restrita à CNBB, mas tem
encontrado eco em paróquias e igrejas pelo país, onde padres reclamam de
perseguição política, por conta das críticas feitas ao governo de Bolsonaro nas
missas ou em conversas com fiéis.
O
texto é assinado, entre outros, pelo arcebispo emérito de São Paulo, dom
Claudio Hummes, pelo bispo emérito de Blumenau, dom Angélico Sandalo
Bernardino, pelo bispo de São Gabriel da Cachoeira (AM), dom Edson Taschetto
Damian, pelo arcebispo de Belém (PA), dom Alberto Taveira Corrêa, pelo bispo
prelado emérito do Xingu (PA), dom Erwin Krautler, pelo bispo auxiliar de Belo
Horizonte (MG), dom Joaquim Giovani Mol, e pelo arcebispo de Manaus (AM) e
ex-secretário-geral da CNBB dom Leonardi Ulrich.
Leia
a “Carta ao Povo de Deus” na íntegra:
“Somos
bispos da Igreja Católica, de várias regiões do Brasil, em profunda comunhão
com o Papa Francisco e seu magistério e em comunhão plena com a Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil, que no exercício de sua missão evangelizadora,
sempre se coloca na defesa dos pequeninos, da justiça e da paz. Escrevemos esta
Carta ao Povo de Deus, interpelados pela gravidade do momento em que vivemos,
sensíveis ao Evangelho e à Doutrina Social da Igreja, como um serviço a todos
os que desejam ver superada esta fase de tantas incertezas e tanto sofrimento
do povo.
Evangelizar
é a missão própria da Igreja, herdada de Jesus. Ela tem consciência de que
“evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Alegria do Evangelho,
176). Temos clareza de que “a proposta do Evangelho não consiste só numa
relação pessoal com Deus. A nossa reposta de amor não deveria ser entendida
como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos
necessitados […], uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria
consciência. A proposta é o Reino de Deus […] (Lc 4,43 e Mt 6,33)” (Alegria do
Evangelho, 180). Nasce daí a compreensão de que o Reino de Deus é dom,
compromisso e meta.
É
neste horizonte que nos posicionamos frente à realidade atual do Brasil. Não
temos interesses político-partidários, econômicos, ideológicos ou de qualquer
outra natureza. Nosso único interesse é o Reino de Deus, presente em nossa
história, na medida em que avançamos na construção de uma sociedade
estruturalmente justa, fraterna e solidária, como uma civilização do amor.
O
Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua história, comparado a uma
“tempestade perfeita” que, dolorosamente, precisa ser atravessada. A causa
dessa tempestade é a combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um
avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os
fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da
República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise
política e de governança.
Este
cenário de perigosos impasses, que colocam nosso país à prova, exige de suas
instituições, líderes e organizações civis muito mais diálogo do que discursos
ideológicos fechados. Somos convocados a apresentar propostas e pactos
objetivos, com vistas à superação dos grandes desafios, em favor da vida,
principalmente dos segmentos mais vulneráveis e excluídos, nesta sociedade
estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa realidade não comporta
indiferença.
É
dever de quem se coloca na defesa da vida posicionar-se, claramente, em relação
a esse cenário. As escolhas políticas que nos trouxeram até aqui e a narrativa
que propõe a complacência frente aos desmandos do Governo Federal, não
justificam a inércia e a omissão no combate às mazelas que se abateram sobre o
povo brasileiro.
Mazelas
que se abatem também sobre a Casa Comum, ameaçada constantemente pela ação
inescrupulosa de madeireiros, garimpeiros, mineradores, latifundiários e outros
defensores de um desenvolvimento que despreza os direitos humanos e os da mãe
terra. “Não podemos pretender ser saudáveis num mundo que está doente. As
feridas causadas à nossa mãe terra sangram também a nós” (Papa Francisco, Carta
ao Presidente da Colômbia por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente,
05/06/2020).
Todos,
pessoas e instituições, seremos julgados pelas ações ou omissões neste momento
tão grave e desafiador. Assistimos, sistematicamente, a discursos
anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de
mortes pela covid-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino, o
caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são
projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à
manutenção do poder a qualquer preço.
Esse
discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser
confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja, no seguimento Àquele
que veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
Analisando
o cenário político, sem paixões, percebemos claramente a incapacidade e
inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas crises. As reformas
trabalhista e previdenciária, tidas como para melhorarem a vida dos mais
pobres, mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda mais a vida do
povo.
É
verdade que o Brasil necessita de medidas e reformas sérias, mas não como as
que foram feitas, cujos resultados pioraram a vida dos pobres, desprotegeram
vulneráveis, liberaram o uso de agrotóxicos antes proibidos, afrouxaram o
controle de desmatamentos e, por isso, não favoreceram o bem comum e a paz
social. É insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo, que
privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande
maioria da população.
O
sistema do atual governo não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos,
mas a defesa intransigente dos interesses de uma “economia que mata” (Alegria
do Evangelho, 53), centrada no mercado e no lucro a qualquer preço.
Convivemos,
assim, com a incapacidade e a incompetência do Governo Federal, para coordenar
suas ações, agravadas pelo fato de ele se colocar contra a ciência, contra
estados e municípios, contra poderes da República; por se aproximar do
totalitarismo e utilizar de expedientes condenáveis, como o apoio e o estímulo
a atos contra a democracia, a flexibilização das leis de trânsito e do uso de
armas de fogo pela população, e das leis do trânsito e o recurso à prática de
suspeitas ações de comunicação, como as notícias falsas, que mobilizam uma
massa de seguidores radicais.
O
desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia também nos estarrece.
Esse desprezo é visível nas demonstrações de raiva pela educação pública; no
apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como inimiga; nos
sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da educação e do meio
ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação de
processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância
pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na desqualificação
das relações diplomáticas com vários países; na indiferença pelo fato de o
Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de infectados e mortos pela
pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da Saúde; na
desnecessária tensão com os outros entes da República na coordenação do
enfrentamento da pandemia; na falta de sensibilidade para com os familiares dos
mortos pelo novo coronavírus e pelos profissionais da saúde, que estão
adoecendo nos esforços para salvar vidas.
No
plano econômico, o ministro da economia desdenha dos pequenos empresários,
responsáveis pela maioria dos empregos no país, privilegiando apenas grandes
grupos econômicos, concentradores de renda e os grupos financeiros que nada
produzem. A recessão que nos assombra pode fazer o número de desempregados
ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Há uma brutal descontinuidade da
destinação de recursos para as políticas públicas no campo da alimentação,
educação, moradia e geração de renda.
Fechando
os olhos aos apelos de entidades nacionais e internacionais, o Governo Federal
demonstra omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres e vulneráveis da
sociedade, quais sejam: as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, as
populações das periferias urbanas, dos cortiços e o povo que vive nas ruas, aos
milhares, em todo o Brasil.
Estes
são os mais atingidos pela pandemia do novo coronavírus e, lamentavelmente, não
vislumbram medida efetiva que os levem a ter esperança de superar as crises
sanitária e econômica que lhes são impostas de forma cruel.
O
Presidente da República, há poucos dias, no Plano Emergencial para
Enfrentamento à covid-19, aprovado no legislativo federal, sob o argumento de
não haver previsão orçamentária, dentre outros pontos, vetou o acesso a água
potável, material de higiene, oferta de leitos hospitalares e de terapia
intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, nos territórios
indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais (Cf. Presidência da CNBB,
Carta Aberta ao Congresso Nacional, 13/07/2020).
Até
a religião é utilizada para manipular sentimentos e crenças, provocar divisões,
difundir o ódio, criar tensões entre igrejas e seus líderes. Ressalte-se o
quanto é perniciosa toda associação entre religião e poder no Estado laico,
especialmente a associação entre grupos religiosos fundamentalistas e a
manutenção do poder autoritário.
Como
não ficarmos indignados diante do uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra,
misturados a falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de
pregar o amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e
sua justiça?
O
momento é de unidade no respeito à pluralidade! Por isso, propomos um amplo
diálogo nacional que envolva humanistas, os comprometidos com a democracia,
movimentos sociais, homens e mulheres de boa vontade, para que seja
restabelecido o respeito à Constituição Federal e ao Estado Democrático de
Direito, com ética na política, com transparência das informações e dos gastos
públicos, com uma economia que vise ao bem comum, com justiça socioambiental,
com “terra, teto e trabalho”, com alegria e proteção da família, com educação e
saúde integrais e de qualidade para todos.
Estamos
comprometidos com o recente “Pacto pela vida e pelo Brasil”, da CNBB e
entidades da sociedade civil brasileira, e em sintonia com o Papa Francisco,
que convoca a humanidade para pensar um novo “Pacto Educativo Global” e a nova
“Economia de Francisco e Clara”, bem como, unimo-nos aos movimentos eclesiais e
populares que buscam novas e urgentes alternativas para o Brasil.
Neste
tempo da pandemia que nos obriga ao distanciamento social e nos ensina um “novo
normal”, estamos redescobrindo nossas casas e famílias como nossa Igreja
doméstica, um espaço do encontro com Deus e com os irmãos e irmãs.
É
sobretudo nesse ambiente que deve brilhar a luz do Evangelho que nos faz
compreender que este tempo não é para a indiferença, para egoísmos, para
divisões nem para o esquecimento (cf. Papa Francisco, Mensagem Urbi et Orbi,
12/4/20).
Despertemo-nos,
portanto, do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade
de milhares de mortes e da violência que nos assolam. Com o apóstolo São Paulo,
alertamos que “a noite vai avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras
das trevas e vistamos a armadura da luz” (Rm 13,12).
O
Senhor vos abençoe e vos guarde. Ele vos mostre a sua face e se compadeça de
vós.
O
Senhor volte para vós o seu olhar e vos dê a sua paz! (Nm 6,24-26).
Do
Viomundo