
O ativista português João Bernardo, em seu Labirintos do
fascismo: na encruzilhada da ordem e da revolta, se nega a apresentar uma
unidade coesa nos diversos fascismos do século XX: identifica quatro eixos, que
ora colaboram, ora disputam entre si pelo poder, tendo como base social um
grupo bastante heterogêneo, de grandes industriais a camponeses, passando por
funcionários de colarinho branco. Na página 216 ele cita que Maurice Bardèche,
"o mais sábio dos fascistas franceses, prolongou a lição de Ledesma Ramos
[um dos principais ideólogos do fascismo espanhol] chamando a atenção para 'a
impossibilidade de o fascismo se desenvolver fora dos períodos de crise. Porque
ele não tem um princípio fundamental. Porque não tem uma clientela natural. É
uma solução heróica. [...] É o partido da nação em cólera. E principalmente
[...] dessa camada da nação que usualmente se satisfaz com a vida burguesa, mas
que as crises perturbam, que as atribulações irritam e indignam, e que intervém
então brutalmente na vida política com reflexos puramente passionais, quer
dizer, a classe média. Mas essa cólera da nação é indispensável ao fascismo'. É
certo que aquela situação de crise colocava problemas distintos a cada uma das
classes e das camadas sociais, mas o fascismo pretendia possuir uma solução
comum para essa diversidade de questões".
"Nação em cólera em período de crise". Para além do
momento interno do país e suas disputas de classe, o fascismo do século XX
dependeu de um contexto global - redesenho do mapa geoeconômico e geopolítico,
hiperprodução e crise do capitalismo. Nesta segunda década do século XXI,
novamente uma crise do capitalismo enceta soluções pela via fascista - ainda
que guardadas as diferenças para as experiências do século passado, e com
muitas variantes acerca de como tem despontado em cada país. A ilusão, com o
colapso do socialismo real, de uma "ordem multipolar" controlada
pelos Estados Unidos se vê seriamente ameaçada pela emergência chinesa, que
busca redesenhar o mapa da produção mundial conforme seus interesses.
A disputa econômica entre os EUA trumpista e a China acerca
de tarifas, e a prisão da executiva da Huawei, Meng Wanzhou, no Canadá, a
pedido dos EUA, é apenas a face mais evidente desse rearranjo de territórios
ainda em aberto. Petróleo e tecnologia 5G (que vai muito além de internet
rápida, e na qual a China larga em vantagem [https://on.ft.com/2D4EPaN]) são os
grandes motores do momento, e o principal veículo para consecução dos
objetivos, neste estágio do conflito, está no uso aberto do judiciário como
instrumento de perseguição política. Essa nova fase da guerra comercial entre
Ocidente e China, atacando diretamente pessoas, não começou com a prisão de
Meng Wanzhou: em dezembro, Patrick Ho Chi-ping, executivo de Hong-Kong que
trabalhava para empresas chinesas, preso desde 2017, teve sua prisão
confirmada pela corte federal de Manhattan, por propinas pagas aos governos do
Chade e Senegal, na África. Agora é a vez da prisão de Piotr D, um executivo da
Huawei polonesa - o maior mercado da empresa chinesa no leste europeu
[https://on.ft.com/2SPgYBv]. Isso para não falar nas acusações de espionagem
por parte da Huawei, ou de hackers sustentados por Beijing.
A China respondeu à prisão de Meng Zanwhou detendo dois
canadenses, acusados de atentarem contra a segurança nacional. O Ocidente
reagiu dizendo que se tratam de prisões arbitrárias - deixando de lado a
seletividade da justiça estadunidense, pois não me consta que o general Keith
Alexander esteja preso por espionagem internacional -, ao que o embaixador
chinês rebateu, acusando os críticos de "suprematismo branco".
Dono de três grandes reservas petrolíferas - México,
Venezuela e Brasil -, e considerada quintal do Tio Sam, a América Latina parece
ter sido o grande laboratório para novas formas de intervenção política -
popularmente conhecidas como golpe de estado -, diante do fracasso da tentativa
de "reformas" via "levante popular" no Oriente Médio. Essas
novas formas passam pela instrumentalização aberta do judiciário na perseguição
de inimigos internos e externos, atuando sob uma frágil base de ritos formais -
seguidos conforme a ocasião -, e se utilizando do direito penal para produção
de presos políticos - Jorge Mateluna, no Chile, Milagro Sala, na Argentina,
Lula, no Brasil (Rafael Corrêa só não faz parte da lista por estar exilado na
Bélgica). A atuação do judiciário tem sempre favorecido os EUA e as elites
locais aliados aos interesses do Império. Nos casos em que não atua
diretamente, o judiciário avaliza o desrespeito às leis e à Constituição, em
nome da caça ao inimigo - como no caso dos impeachment farsescos em Honduras,
Paraguai e Brasil.
Claro, a justiça sozinha não é capaz de manter o movimento,
daí a necessidade de se ocupar o executivo para aplicar o receituário econômico
conforme os ritos legais, e haver exército de prontidão para agir em caso de
perturbação da ordem, e a mídia em permanente atuação - fator crucial para
alimentar a cólera da nação e explorar bodes expiatórios.
Onde o judiciário pode ser um empecilho, intervem-se nele sem
maiores pudores, como no caso da Polônia, Romênia e - exemplos bem mais
complexos - Venezuela e Turquia. Aqui, Erdorgan talvez já conhecesse as novas
técnicas de uso do poder via intervenção judiciária, e cumpriu a cartilha
contra seus opositores antes que fosse feito contra ele - inclusive com o mesmo
expediente usado por Moro contra Lula, de bloqueio/confisco de dinheiro dos
"inimigos". Na Venezuela, o estado de guerra permanente não declarada
contra o país, desde 2002, e intensificada nesta década, empurra o país para o
colapso, e Maduro se sustenta como pode - diante de uma oposição que não merece
qualquer voto de confiança (Gilberto Maringoni tem feito ótimas análises sobre
o país) -, com apoio do exército e do judiciário. Isso, contudo, só é possível
porque Chavez foi inteligente em repactuar os poderes do estado e desarticular
as elites tradicionais, alinhadas com os EUA e o capitalismo de butim - ajudado
por essas mesmas elites, de uma incompetência política invejável, talvez por
nunca terem feito política -, reinstrumentalizando o judiciário dentro de sua
"revolução bolivariana", o que lhe valeu, por não ser aliado dos EUA,
a alcunha de "ditador" por parte de quem acha que os militares no
Brasil eram um "movimento" ou uma "ditabranda". Tivesse mantido
as estruturas herdadas quando assumiu o poder, teria caído há muito tempo, e
seu sucessor, se viesse a assumir, já teria sofrido impeachment (não se trata
de defender especificamente a reforma por ele feita, mas ressaltar que mudanças
do tipo são fundamentais para garantir mudanças sociais e impedir contragolpes
institucionais, feitos à revelia dos interesses do país e da maioria da
população).
É para se observar como se comportará o judiciário brasileiro
no governo Bolsonaro, em especial quando surgirem as crises: após intervir
diretamente no resultado das eleições, com seu principal expoente integrando o
governo, o judiciário deverá tentar manter a tutela do governo - como já havia
ensaiado no governo Dilma. Contudo, essa mesma tutela é disputada pelo
exército, que começou no julgamento de Lula e não deve ser aliviado agora que
entrou de cabeça no governo fascista. Para fora das esferas de poder, o que
podemos esperar é mais perseguição e sentenças arbitrárias contra opositores do
governo - sejam da sociedade civil, sejam do próprio parlamento.
A resistência, ao que tudo indica, deve vir de fora, num
primeiro momento, via pressões de ONGs e da sociedade civil internacional. No
plano interno, ainda carecemos de uma melhor organização - sociedade civil, movimentos
sociais, partidos políticos -, e aceitar que precisamos abrir mão de purezas
ideológicas em nome de acordos com aliados de momento - prontos para pular fora
assim que não nos convier mais (e Rodrigo Maia não me parece um aliado de
momento, diferentemente de Renan Calheiros e Gilmar Mendes). Bolsonaro já
mostrou que fará um governo errático; os que se arvoram no poder já mostraram
que logo começarão a disputar entre si, precisamos saber utilizar as brechas,
antes que o regime se feche ainda mais.
No plano global, o judiciário deve aumentar sua atuação, não
apenas arbitrando litígios econômicos, mas atuando na detenção e no
indiciamento dos agentes econômicos "inimigos". Isso até o momento
que não se puder mais agir apenas com essa carapuça e partirmos para conflitos
abertos. A Venezuela parece ser o alvo da vez: enormes reservas petrolíferas,
um governo encurralado e ampla crise econômico-social; Trump necessitado de
recuperar popularidade para enfrentar a eleição ano que vem, o governo
Bolsonaro precisando um bode expiatório para "calar democraticamente"
as críticas e unir a nação, a China avançando sobre o petróleo venezuelano, e a
Rússia pronta para fazer o que não conseguiu enquanto União Soviética - pôr os
pés no quintal americano. Tudo isso, claro, em nome dos mais nobres valores dos
direitos humanos, condoídos pela crise humanitária que assola os venezuelanos,
como no Vietnã, no Afeganistão, no Iraque...
GGN