Antigo
modelo integrado, com geração, transmissão e distribuição concentrados em
grandes empresas de energia, pulverizou-se. Houve mudanças tecnológicas que
geraram novas perspectivas e novas incertezas para o setor.
Um
dos principais pensadores sobre o papel da mídia no Brasil, Rodrigo Mesquita
tem uma definição exemplar sobre o papel da imprensa: “Mais do que informar, o
papel das empresas de informação foi e será sempre contribuir para os processos
de articulação da sociedade”.
Um
país é um organismo complexo, com instituições públicas e privadas,
organizações sociais, movimentos, associações empresariais e sindicais, poderes
independentes, universidades, institutos de pesquisa. Por isso mesmo, a
imprensa tem papel central de ventilar os grandes temas, buscar as informações
precisas, os diagnósticos técnicos e científicos, a racionalidade nas decisões.
Uma
imprensa pouco precisa, ideologizada, é duplamente perniciosa. De um lado, por
não saber identificar as informações relevantes. De outro, por vender falsos
diagnósticos.
É
o caso das discussões sobre o setor elétrico, a partir do blackout ocorrido no
Amapá.
Em
alguns veículos respeitáveis divulgou-se a informação de que as causas foram o
baixo investimento público e o preconceito em relação ao investimento privado.
Foram afirmações mecânicas, ideológicas, sem se dar conta que o problema
ocorreu com uma empresa privada, a Isolux, responsável pela transmissão de
energia da hidrelétrica de Tucuruí para o estado.
A
Covid-19 mostrou a importância das discussões técnicas e do respeito à ciência.
O setor elétrico merece tratamento igual. E tratamento técnico significa
discutir tecnicamente o modelo de funcionamento do setor, para entender melhor
a parte em que cabe privatização ou não.
O
foco dos problemas: a Isolux
O
sistema que abastece o Amapá depende de três empresas:
Geração
– usina de Turucuí.
Distribuição –
empresa estadual do Amapá.
Transmissão –
Da Gemini Energy, que adquiriu da espanhola Isolux, dona da Linhas de Macapá
Transmissora de Energia (LMTE).
A
LMTE tinha três transformadores, um em manutenção, um que explodiu e o terceiro
que foi danificado pelo fogo. E não havia uma estrutura nacional capaz de
suprir a linha com novos transformadores.
Em
2008, a Isolux venceu a licitação para a linha de transmissão de 1.438 km que
levava energia de Tucuruí ao Amapá. Fez grande estardalhaço com as torres que
construiu para transportar a energia, batizada por ela de As Torres
Gêmeas da Isolux.
Na
época, era a sétima construtora da Espanha. Com a crise de 2008, o mercado
europeu desabou e o da América Latina foi impulsionado pela manutenção das
cotações de commodities. A empresa decidiu investir pesadamente na região,
abrindo várias frentes simultaneamente..
No
contrato da LMTE, previu investimento da ordem de R$ 2,7 bilhões.
Mas o valor real saltou para $ 3,7 bilhões e os atrasos
acarretaram multas de mais R$ 400 milhões. Enfrentou os mesmos
problemas de empreiteiras brasileiras, com a dificuldade de identificar custos
reais a partir dos projetos executivos das licitações.
O
endividamento pesou e a queda nas cotações de commodities ampliou a crise na
região e o faturamento projetado da empresa.
Em
2015, tentou abrir capital e captar 600 milhões de euros para redução
da dívida O lançamento seria coordenado pelo Citigroup, Morgan Stanley e Banco
Santander. Aparentemente, não deu certo
Em
2016 a Isolux
entrou em recuperação judicial na Espanha. Conseguiu homologar um plano e
recuperação gigantesco, com passivos
de 4,6 bilhões de euros. O principal credor era o Santander, com 350
milhões dos 650 milhões de dívidas bancárias do grupo. De imediato, conseguiu
uma injeção de capital de 200 milhões de euros.
Na
renegociação, anunciou ter colocado à venda uma planta fotovoltaica e as linhas
de transmissão no Brasil. Em 2017 entrou oficialmente em processo de falência,
com uma dívida estimada em 4 bilhões de euros.
A
aventura latino-americana terminou em desastres sucessivos. Foi obrigada a
cancelar um contrato com o Metrô de São Paulo, duas obras de saneamento no
Uruguai, a construção de um prédio para a Universidade de Santiago do Chile.
No
início de 2018, um
tribunal de Madri condenou Luis Delso, ex-presidente da Isolux, e José
Gomis, sócio e ex-vice-presidente, a seis meses de prisão por fraude fiscal. No
dia 1o de fevereiro de 2018 a Justiça
brasileira homologou o pano de recuperação judicial da Isolux no
Brasil.
Em
setembro de 2019 vendeu seus ativos para dois fundos especializados em
reestruturação de empresas, constituídos para avançar sobre os destroços das
empresas brasileiras destruídas pela Lava Jato e pela crise de 2016.
A
VENDA DE ATIVOS
A
LMTE foi adquirida pela Starboard Asset, apresentada como subsidiária do
Grupo Starboard Restructuring Partners. A
empresa pertence a Fábio Vassel, um ex-sócio e executivo do Brasil Plural,
passou pela Nomura, , pelo UBS e participou de várias reestruturações, como da
Saraiva, da OGX, Inepar etc. A
Starboard foi constituída em 2015 tendo como outro sócio, Warley
Isaac Noboa Pimentel, ex-presidente da paranaense Inepar que assumiu a
empresa após os problemas enfrentados por ela com a Lava Jato. A Starboard montou
a Gemini, com 20% de participação da Perfin.
Em
março de 2020, a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) rejeitou a
proposta da Isolux de transferir suas operações para outra companhia, o Power
Fundo de Investimentos em Participações Infraestrutura Ltda. As
regras do acordo foram elaborados pela Starboard Partners. Propunha que o novo
dono não herdasse as sanções previstas em contrato, para o caso de atrasos nas
obras. A
ANEEL não aceitou.
O
negócio acabou fechado com a própria Starboard. Em nenhum momento, a ANEEL
(Agência Nacional de Energia Elétrica) se preocupou com as vulnerabilidades
criadas pela crise da Isolux.
AS
VULNERABILIDADES
A
crise expõe vulnerabilidades do setor. Antes, tinha-se um modelo integrado
nacional, sob controle da Eletrobras. Com o modelo de privatização – iniciado
por Fernando Henrique e consolidado por Lula – criou-se um modelo partido que,
teoricamente, deveria estimular a competição.
Por
exemplo, geradores de energia poderiam disputar o fornecimento para
distribuidoras, desde que houvesse uma transmissão integrada e neutra. Ainda
mais depois que ganharam espaço novas formas de energia, a solar, a eólica e a
energia distribuída ganha espaço.
A
competição ocorre no mercado livre. Mas o grande modelo de capitalização se deu
através da chamada energia contratada. Por ela, antes de iniciar investimentos
– especialmente os grandes investimentos – o gerador acertava contratos de
longo prazo com as distribuidoras. E, tendo como garantia os recebíveis,
conseguem captar recursos no mercado.
Em
suma, o antigo modelo integrado, com geração, transmissão e distribuição
concentrados em grandes empresas de energia, pulverizou-se. Além disso, houve
mudanças tecnológicas que geraram novas perspectivas e novas incertezas para o
setor.
Tudo
isso exige uma discussão racional, técnica, despida do terraplanismo do ideologismo
rasteiro, algo que já ocorreu em outros momentos da história e que se perdeu em
algum momento em que a polarização e a radicalização emburreceram drasticamente
o país.
Do GGN