É
um quadro mais assustador do que o da pós-ditadura. A conta maior não será do
Congresso, mas do Supremo. Os principais personagens dessa trama macabra não
serão poupados pela História.
Há
uma ameaça latente ao futuro do país como Nação. O sistema político foi
destruído. Há um avanço sistemática das organizações criminosas, controlando
espaços cada vez maiores do território. As disputas não são mais entre poder
formal e organizações, mas guerras entre elas. Sem a estruturação formal dos
partidos, aumenta a influência deletéria de grupos setoriais, como os
neopentecostais, ruralistas, mercado. E, a cada dia que passa, o Estado
construído pós-Constituição vai sendo desmontado, sob a lógica exclusiva do
benefícios a grupos específicos.
Políticas
científico-tecnológicos, universidades federais, sistema de saúde, saúde
mental, educação inclusiva, tudo é soterrado por visões ideológicas que visam
mascarar os grupos de interesse que se apossaram do governo. Na ponta, Supremo
se apropria de funções legislativas, o Congresso se perde sem uma voz de
comando, órgãos de controle assumem cada vez mais funções policialescas. Sem o
papel coordenador de uma liderança, sem o conjunto articulado de ideias de um
partido, cada instituição, cada ator vai abrindo espaço a cotoveladas,
desmontando qualquer ideia de disciplina institucional.
Onde
começou essa loucura auto-destrutiva?
No
final da ditadura, o país passava por desafios similares. O sistema
bipartidário desmoronava, a herança militar legara um país quebrado, com
hiperinflação, moratória; a miséria era avassaladora e visível nos semáforos
das grandes cidades, no campo, no interior quebrado.. Havia um oceano de
turbulências apontando para uma dissolução do país.
É
nesse quadro que emergem algumas lideranças fundamentais. No centro, Tancredo
Neves, Ulisses Guimarães, Mário Covas.
Mas
o ponto essencial foi o aparecimento de uma nova liderança, o metalúrgico Luiz
Ignácio Lula da Silva.
Com
um discurso explosivo, e uma ação conciliadora, Lula conseguiu canalizar todas
as insatisfações dos abandonados para o jogo político formal.
Sem
terras, sem tetos, sem comidas, sem Estado, a imensa multidão dos desassistidos
seria massa de manobra fácil para organizações criminosas, para candidatos a
guerrilha. Ao organizar o Partido dos Trabalhadores, Lula deu consistência
política às demandas, teve grandeza para aguardar o momento de ser eleito,
perdendo eleições sucessivas sem questionar seu resultado e estendendo o papel
civilizatório do partido para todos os rincões.
Ao
mesmo tempo, criou a possibilidade de uma polarização produtiva, com o
aparecimento do PSDB. O partido se estruturou como uma alternativa racional das
classes médias intelectualizadas contra a esquerda não radical representada
pelo PT.
Quando
explodiu a crise internacional, tem 2008, tornou-se mais nítida a grandeza de
Lula. Tornou-se um símbolo internacional da tolerância, da busca da paz, um
pacifista do nível de um Mandela, um Ghandi – conforme reconhecimento
internacional.
Para
manter a coesão nacional, talvez tenha cedido mais do que devia. Manteve uma
política cambial e monetária corrosivas da industrialização, para não afrontar
o mercado. Não avançou na reforma fiscal, para não afrontar os ricos. Não
avançou nas comissões da verdade, para não afrontar os militares. Mas, nas
frestas abertas pelas negociações, conseguiu implementar alguns dos programas
sociais mais relevantes da história. Mudou a face do Nordeste com a
transposição do São Francisco e a política de cisternas. Mudou a face das
universidades com as políticas de cotas. Com o aumento do salário mínimo e o
Bolsa Família abriu um caminho inédito de inclusão social e de redução das
desigualdades.
Seu
sucesso, especialmente a partir da crise de 2008, levou a uma
deterioração do jogo político, e a deterioração da democracia por outros
atores, incapazes de contrapor um discurso eficaz. No mensalão, o Ministério
Público Federal julgou que poderia ser poder autônomo. Com a morte de Mário
Covas e Franco Montoro, o PSDB caiu nas mãos de Fernando Henrique Cardoso,
Aécio Neves e José Serra. Ao mesmo tempo, sem saber como enfrentar a competição
trazida pela Internet, a mídia passava a exercitar cada vez mais o jornalismo
de guerra, o discurso de ódio. E trouxe o PSDB consigo.
Ex-presidentes
são ativos nacionais. São políticos com influência em suas bases para ajudar o
país em momentos de tempestade. Na França, Miterrand foi alvo de acusações, mas
preservado por uma questão de realismo político.
No
auge do mensalão, quando o Ministério Público Federal exercitou pela primeira
vez seus músculos, visando a desestabilização política, vários ex-presidentes
saíram em defesa da normalidade institucional – José Sarney, Fernando Collor e
Itamar Franco. O único que ficou de fora foi Fernando Henrique Cardoso.
Terminadas
as eleições de 2014, sabia-se que era questão de tempo para haver alternância
de poder. Mas, quando Aécio Neves deu a senha para o golpe, deu a largada para
o desmanche institucional do país. Nos meses seguintes, as passeatas contaram
com a participação entusiasmada de Aécio, Serra e FHC.
Dali
em diante, puxado pela Lava Jato, a democracia foi estuprada, com participação
direta do Supremo Tribunal Federal (STF). Submetido a lideranças mais
interessadas no enriquecimento financeiro do que em mudar a República, o PSDB
perdeu substância.
Com
a destruição do papel mediador de Lula, a perseguição implacável a que foi
submetido e a anomia histórica de FHC, criou-se um vácuo político, quebraram-se
as barreiras do sistema de freios e contrapesos e, a partir dali, começou a
desintegração do país. Primeiro, ao se permitir a ascensão da mais suspeita
organização política pós-democratização – o centrão de Michel Temer, Eduardo
Cunha, Eliseu Padilha, Geddel Vieira Lima. Depois, com o grande mercado de
negócios que se abriu com o desmonte, estatais sendo leiloadas, políticas
sociais destruídas, em um estouro da boiada típica de países que destruíram
suas referências políticas, sem colocar nada no lugar.
Hoje
se tem o país com recordes mundiais de morte por Covid, uma política econômica
errática que assusta o mercado, o avanço das organizações criminosas por todos
os poros da República, sem nenhum referencial racional para impedir o
desmanche.
É
um quadro mais assustador do que o da pós-ditadura. E a conta maior não será do
Congresso, mas do Supremo Tribunal Federal. Os principais personagens dessa
trama macabra não serão poupados pela história.
Publicado
originalmente em 28/10/2010
Do DCM.
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