domingo, 13 de junho de 2021

OS MILITARES E O FANTOCHE QUE LHES PUXA OS CORDÉIS, POR FERNANDO BRITO

Em lúcida entrevista a BBC, o coronel da reserva Marcelo Pimentel Jorge de Souza diz algo que anda na contramão da maioria dos analistas de mídia: não é que Jair Bolsonaro tenha usado e esteja usando o Exército como instrumento de poder; foi o Exército que o usa como forma de levar ao poder um “partido militar”.

E dá como exemplo, e bom exemplo, o vídeo em que, ainda em 2014, a Arma lhe franqueia uma formatura de cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras, sua principal escola de formação de oficiais, para que o então deputado faça um comício de lançamento da candidatura presidencial.

Um ato político de deixar o comício de Eduardo Pazuello parecendo coisa de criança, porque dentro de uma organização militar, mas, sete anos depois, uma prova inequívoca de que se construiu, em Jair Bolsonaro um “Cavalo de Tróia” para conduzi-los, outra vez, ao poder.

Se o cavalo era xucro (o que sua história só comprova) e se, muitas vezes, era quem dirigia os que pensavam controlá-lo são outros quinhentos, embora sejam poucos os que demonstrem reconhecer o erro quanto da escolha da montaria e menos ainda os que se arrependem do caminho temerário que a instituição escolheu.

Bolsonaro é tão abjeto que conseguiu romper a aliança que permitiu o golpe político que permitiu aos militares avançarem sobre o governo, reocupando o Ministério da Defesa já no governo Temer e o próprio Planalto com o “Mito”.

Não tem mais o que tinham: um arco de apoio, em nome do combate ao esquerdismo, formado por mídia, empresariado, judiciário e políticos, uma espécie de voz única. Mas a condição disso era a manutenção de uma democracia formal, tutelando o processo político-eleitoral com uma espécie de voz única em favor de reformas que cumprissem o duplo papel de varrer a função social e econômica do Estado brasileiro e alienando, em nome da incapacidade a que este era reduzido, o patrimônio nacional.

A aventura está, evidentemente, esgotada, reduzida a uma UDN psicopata e a um Exército que tem de se camuflar no silêncio, porque a instituição militar, sempre respeitada, já começa a ser vista como um colégio de aproveitadores em busca de vantagens remuneratórias e corporativas. E que assiste, sem reação, a chave do controle interno armado transferir-se para as polícias e as milícias.

O fantoche dos militares ganhou vida própria e, cada vez mais frequentemente, é ele quem volta e meia lhe puxa os cordéis e os arrasta para onde quer.

A ideia de que, já na terceira década do século 21, grandes países possam ter um governo militar é insustentável e, mesmo com um personagem a fazer a boca de cena, como pretenderam fazer com Bolsonaro, estendê-la além da tolerância da nação, pelo voto, vai se afigurando inviável.

Pretender isso, assumindo o veto ao desejo eleitoral do país, seja lá por que pretexto for, será trocar uma retirada com perdas por uma derrota vergonhosa e acachapante que pode demorar mais, mas será devastadora.

Tijolaço.

O QUE DIZER DA POLÊMICA BRIZOLA/LULA X BRIZOLA/CIRO. POR FERNANDO BRITO

 

Não pretendia entrar neste assunto, justamente por prezar tanto os meus mais de 20 anos de convívio diário próximo com Leonel Brizola e porque o respeito pessoal e político a alguém com que, para mim, não é uma ferramenta política.

Os leitores deste blog sabem que não crio argumentos do tipo “Brizola faria isso” ou “Brizola faria aquilo” em detalhes que, mais que impossíveis de prever, são uma apropriação indébita de seu legado.

Faço-o, porém, porque aprendi com ele que a política não permite tratar só do que é agradável e devo deixar um pouco de lado a pauta relevante para tratar de algo que interessa a muitos dos leitores brizolistas do Tijolaço.

Conheço os três netos de Leonel Brizola que se lançaram à política – Leonel, Carlos e Juliana – e tenho carinho pessoal por todos eles e por sua dedicação a manterem as lutas do avô, que pertencem não a eles, mas ao povo brasileiro.

Ontem, Leonel Brizola Neto, ex-vereador pelo Psol, encontrou-se com Lula e este publicou uma foto na qual seguravam uma foto de ambos, Brizola e Lula, que havia se encontrado com Leonel, (o ex-deputado federal) Vivaldo Barbosa e outros brizolistas preocupados em preservar a memória desse grande brasileiro com a criação um acervo.

Nenhuma fala eleitoral, portanto, e a justa preocupação com a guarda de milhares de documentos, fotos, vídeos e outros registros de quase 60 anos de vida pública de alguém que marcou toda a segunda metade do século 20.

Se isso caminhar para uma confluência eleitoral, é assunto de Leonel que, como os demais, tem todo o direito a ter opiniões próprias.

Ocorre que a irmã de Leonel, a deputada estadual Juliana Brizola, que permanece no PDT, num gesto que não lhe faz justiça, fez e publicou uma montagem da foto do irmão com Lula segurando, em lugar daquela foto, uma foto de Brizola e Ciro, na campanha de 2002, quado este teve o seu apoio.

Ora, apoio eleitoral vale para uma eleição, não é compromisso para sempre.

Não é assim, também, válido eternamente o apoio de Brizola a Lula e 1989, o fato de ser vice dele em 1998 ou seu apoio ao petista no segundo turno 2002 bastariam para fazer a mesma coisa numa foto de quem ficou no PDT e está com Ciro. Que, aliás, só entrou no PDT 13 anos após aquela eleição e 11 depois da morte de Leonel Brizola.

Não é preciso dizer que a relação entre eles teve aproximações e rusgas, apoios e discórdias, nenhuma delas deixando de representar impeditivos em horas cruciais. Como dizem os gaúchos, e o próprio Brizola, “lenha boa é a que sai faísca”.

Não se trata, nem se poderia tratar, de saber quem é “mais brizolista”. Nem é “mais brizolista” quem ficou ou saiu de um PDT sem Brizola, porque siglas, infelizmente, já não são ideias na política brasileira.

Ninguém tem o direito de se pretender “o candidato do Brizola”, embora seja natural que todo candidato progressista buscar e defender o legado do líder trabalhista.

Não é correto apelar a truques, montagens, artifícios para obter “apoio eleitoral” de alguém que, morto, não é cabo eleitoral de ninguém.

Se é propriedade de alguém, é das lutas sociais do povo brasileiro.

Portanto, trazer Brizola para “tretas” e baixarias eleitorais, francamente, é algo que não se pode deixar de criticar e pedir, em nome dos brizolistas, que não se faça, nem em família.

Tijolaço.

sábado, 12 de junho de 2021

A QUANTAS ANDAM, O AVIÃO, AS MOTOS E O JEGUE DO BRASIL OFICIAL, POR FERNANDO BRITO

Jair Bolsonaro, “nem aí” para governar, está como se estivesse em reta final de campanha eleitoral.

Aproveita enquanto pode usar, e usa, a máquina pública para promover seu turismo eleitoral, provocativo e agressivo.

Confia em que haverá, além das falanges fascistóides e orgulhosas de sua ignorância, uma maioria que adira, outra vez, por manipulação e preconceito, ao “candidato do jegue”, como se referiu ontem a Lula, ao invadir um avião em Vitória para produzir alvoroço e, pelo que se viu nos vídeos, até uma briga dentro da aeronave (artigo 261 do Código Penal: “expor a perigo embarcação ou aeronave, própria ou alheia, ou praticar qualquer ato tendente a impedir ou dificultar navegação marítima, fluvial ou aérea”).

O ‘teste de popularidade’, claro, não funcionou bem, ao contrário do desfile de motos que ele protagoniza agora, em São Paulo, com um público mais adequado, o de “selvagens das motocicletas”, o jegue dos ricos, que usam para afirmar sua masculinidade decadente, que vive de exibições, como é própria nas gangues.

Animado pelo sucesso de sua motociata e apertado pelas revelações da CPI, mostrando inequívoca desídia (pelo menos) na compra de vacinas, gastos na desinformação da população com o tal “tratamento precoce” e o temor que as quebras de sigilo bancário, fiscal e telemático de ex-ministros e dirigentes do governo, Bolsonaro deve subir mais alguns pontos a sua já temerária escala de agressividade.

Conta com a intimidação geral com suas ameaças de golpe, o medo da pandemia e com o acanalhamento geral das instituições para seguir fazendo isso enquanto o país se estiola na doença, no desemprego, na inflação e na fome.

Sim, aquele país dos jegues, dos pobres que pararam de viajar de avião, para rever a família que deixaram para trás nas décadas de migração.

Alguém deveria lembrar ao presidente que o valente animal sobreviveu a secas, a desgraças, ao jejum e ainda é, pelos fundões do Brasil, o melhor amigo dos humildes.

Metáforas, porém, não são o forte do ex-capitão.

Tijolaço.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

CHEGOU A HORA DA CPI APONTAR OS CRIMES DE BOLSONARO, POR FERNANDO BBRITO

Foram interessantes, como divulgação científica, os depoimentos do médico Cláudio Maierovitch e da microbiologista Natalia Pasternak.

Mas a verdade científica, a esta altura, está tão patente que é desnecessário repeti-la.

A questão é o quanto se manipulou a pandemia, com a omissão dos atos devidos de defesa da saúde da população: isolamento social, estímulo ao uso de máscaras e, sobretudo, desídia e procrastinação na compra de vacinas. Ainda, se e quanto representou em ganhos e vantagens, ainda que só sejam políticas, do que duvido e vários indícios apontam.

A CPI é política e só mesmo os negacionistas – e não negam por negar, mas com intenções evidentes – tentam desvirtuá-la em uma “escolinha do professor Raimundo” sobre fármacos.

Esta é a questão: o julgamento político do cumprimento ou descumprimento com os deveres do cargo pelo presidente da República, do ministro da Saúde e dos que, como autoridades sanitárias acumpliciaram a políticas que nos levaram à beira do meio milhão de mortos.

Por isso, o fato mais importante do dia foi a aprovação da formação de um grupo de juristas para cuida da tipificação e enquadramento dos crimes – de responsabilidade e de natureza penal.

Neste sentido, o requerimento do senador Alessandro Vieira (que deixou o Cidadania depois que o partido desistiu da ação no STF contra o chamado “orçamento secreto” do governo federal) é o ato concreto que se precisava tomar, de certa forma antecipando o que serão as conclusões do relatório da Comissão e que o país terá de pressionar a dolente Procuradoria Geral da República de Augusto Aras.

O resto é deixar que a escumalha governista siga brincando de “democracia na ciência”, como se pudéssemos decidir se a terra é redonda ou plana, com uma votação da plateia, como num programa do Chacrinha.

Tijolaço.

UMA VIDA MARCADA PELOS CICLOS DO RIO ARAGUAIA: CONHEÇA OS RETIREIROS, POR RAQUEL SETZ

Com um manejo ecológico, comunidade no Mato Grosso transformou a criação de gado em aliada do meio ambiente.

O gado se alimenta do capim agreste que nasce na várzea do rio Araguaia - Acervo pessoal Lidiane Sales.

“No Brasil, a grande maioria das comunidades tradicionais não têm respaldo para o seu território.”

Os ciclos do rio Araguaia marcam o ritmo da vida dos retireiros, uma comunidade tradicional que se formou no município de Luciara, no Mato Grosso, na década de 1940.

Quando as águas do rio baixam, entre maio e novembro, eles deixam as casas na cidade e descem com o gado para a região de várzea. É lá que ficam os retiros, as residências da época da seca.

E é também onde brota o capim agreste usado como pasto para os animais. A retireira Lidiane Taverny Sales conta como é essa relação intensa com a paisagem e o gado.  

“Por ser uma área de gado solto, na larga, tem que ter um cuidado mais próximo. Então os meninos têm essa lida mais intensa de sair na madrugada para buscar um gado bem longe, porque a área é extensa. Na casa dos retireiros é sempre falado do gado: o gado que sumiu, a vaca que pariu, o boi que tá doente".

A retireira ressalta que uma das características mais interessantes da comunidade é que "um cuida do gado do outro”.

O manejo do gado feito pelos retireiros tem vantagens do ponto de vista ecológico quando comparado à pecuária tradicional. É o que explica a ecóloga Isabel Figueiredo, que coordena o Programa Cerrado e Caatinga do Instituto Sociedade, População e Natureza, o ISPN.

“Esse é um pasto natural, então não é necessário remover a vegetação nativa e plantar uma variedade de capim que vem lá da África e que precisa de um monte de insumos, de trator que compacta o solo. Então nesse caso é uma criação de gado muito mais integrada com a vegetação natural.

Ainda de acordo com a ecóloga, "o gado pode estar pastando e do lado ter uma ema pastando também. É uma paisagem onde a fauna consegue circular, que o cerrado consegue produzir frutos, consegue seguir com a biodiversidade”.

Mas a vida nos retiros não é só trabalho pesado. Lidiane relata que a época de seca também é um momento de aproveitar o contato com a natureza. 

“A gente vai pra ficar em contato com o lago, pescando. E descansando também desse mundo mais moderno, de tecnologias, em contato com a família e com os amigos. Os lagos são muito lindos, a gente tem um boto, tem um boto aqui que é famoso, que é bonzinho, o pessoal brinca com ele. É um momento muito bom dentro do território”. 

Os bordados são fonte de renda e instrumento de resistência das retireiras / Instagram Retireiras do Araguaia.

Reserva de Desenvolvimento Sustentável

Com o avanço da grilagem e do agronegócio, o modo de vida tradicional dos retireiros está em risco. Por isso, desde 2003, eles tentam criar a Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Mato Verdinho nas margens do rio, uma área que pertence à União.

No começo, o processo fluiu bem. Mas em 2013, quando foi marcada uma consulta popular sobre a criação da reserva, houve um conflito intenso na cidade de Luciara, como lembra Lidiane.

“As forças políticas municipais, juntamente com o agronegócio e os fazendeiros, usaram isso para colocar a população contra a nossa luta, e sitiaram o município., bloqueando a entrada e a saída. Vivemos sete dias de intenso conflito. Tivemos queimas de retiros. E desde então, nossa luta pelo reconhecimento oficial do território tem sido barrada”.

A reportagem entrou em contato com o ICMBio, a prefeitura de Luciara e o governo do estado do Mato Grosso, mas nenhum deles respondeu ao questionamento sobre a criação da reserva.

Isabel Figueiredo explica que faltam instrumentos legais para amparar comunidades como a dos retireiros.

“Além de quilombolas e indígenas, não há outra categoria com respaldo legal para a demarcação de territórios coletivos. Existem algumas legislações estaduais ou regionais. Tem algumas leis municipais que reconhecem as comunidades geraizeiras no norte de Minas".

A ecóloga lembra que a Bahia possui uma legislação que reconhece territórios coletivos de comunidades de fundo e de fecho de pasto, mas com uma série de problemas, como a questão do marco temporal".

Então, no Brasil a grande maioria das comunidades tradicionais não têm respaldo para o seu território”, avalia.

Para fortalecer a identidade retireira, um instrumento importante é o bordado feito pelas mulheres. Além de ser uma fonte de renda, as peças também são um meio de divulgar a luta pela regularização fundiária e a preservação do modo de vida comunitário. 

Seu Benoir, que é pai de Lidiane e foi um dos primeiros retireiros a se estabelecer nas margens do Araguaia, resume bem qual o sonho dele para o território:

“Meu sonho é que fique do mesmo jeito de quando eu era criança, quando era novo”.

Brasil de Fato.

NINGUÉM É GENOCIDA SOZINHO, O BRASIL ESTÁ CHEIO DE GENTE DESTE TIPO, POR FERNANDO BRITO

 

Quem perde a capacidade de se indignar é por que antes perdeu a dignidade.

O Brasil está cheio de gente que, infelizmente, parece estar nesta situação.

“Vamos fazer um estudo”, “abrimos uma apuração rigorosa”, “tomamos as providencias cabíveis”, “vamos criar uma comissão de especialistas”…

Quantas vezes o distinto leitor vê estas platitudes sendo ditas como se fossem reações adequadas diante de monstruosidades, que ceifam a vida de pessoas?

E, com a pandemia, não de “pessoas”, assim, vago. Não, de milhares de pessoas a cada dia, de dezenas de milhares a cada Mês, de centenas de milhares de peaaos em menos da metade de um ano?

Vejo, na televisão, comentaristas dizerem que a decisão de Bolsonaro de forçar o Ministério da Saúde, o do “um tal Queiroga”, é “uma temeridade”, “um perigo”.

Não, não é, é um assassinato em massa.

Será que farão um estudo para saber quantos dos obnubilados pelo fanatismo estarão, amanhã, nas ruas, deixando de usar máscara, porque o energúmeno que nos preside assim recomendou? E quantos, em função disso, contrairão a doença e morrerão?

Ainda que seja um só, é um homicídio, porque assume-se o risco de provocar a morte.

Cada um que permanecer tolerante aos boçais que empalmaram o poder terá que pagar pelo que está fazendo.

Há uma conspiração da morte com finalidades políticas em curso em nosso país e não mais se pode aceitar que se alegue que “eu sou técnico” para isentar-se de responsabilidade, porque estamos diante da aniquilação em massa de brasileiros e de brasileiras.

Estar no Governo é estar no projeto genocida de Bolsonaro, porque ele não governa, faz apenas a sua politica de radicalismo e de extermínio. E se foi, com isso, a legitimidade de sua eleição: não lhe deram um voto para provocar o morticínio de meio milhão de brasileiros.

Por onde se olhe, de Queiroga a Paulo Guedes, dos generais da ativa e da reserva que estão no governo, todos estão apenas para gozar de postos e benesses para si, sem nenhum projeto para o país e, ainda pior, aceitando que ele seja desmantelados, inclusive pelo ceifar de vidas.

Quem tergiversar, não espere que o país, amanhã, não o trate como um traidor da Pátria e um assassino de brasileiros.

Tijolaço.

quinta-feira, 10 de junho de 2021

PERU ELEGE O PRESIDENTE DOS POVOS INVISÍVEIS DE MANUEL SCORZA, POR FERNANDO BRITO

Falou-se muito no papel do escritor Mario Varga Llosa nas eleições peruanas, por ter abraçado o sobrenome de seu ex-rival Alberto Fujimori, na pessoa de sua filha Keiko, para apoiá-la contra o ‘índio’ Pedro Castillo.

Mas, em algum sopro dos ventos do altiplano andino, as partículas do que um dia foi outro grande escritor peruano é que devem estar rebrilhando com a vitória o ‘professor‘, que fez uma campanha a partir do que ninguém via, mas que triunfou, que estão apuradas todas as urnas.

É Manuel Scorza, morto num acidente aéreo em 1983. autor de cinco novelas de uma série que contou a história do nascimento e morte das revoltas camponesas das populações indígenas dos campos e montanhas andinas do centro do país, das quais a primeira, Redoble por Rancas, tomou aqui o horrível título de Bom dia para os defuntos. Depois vieram Garabombo, o Invisível; O Cavaleiro Insone; Cantar de Agapito Robles; A Tumba do Relâmpago e A Dança Imóvel, lançado no ano de sua morte.

A crescente presença política das populações indígenas na face ocidental da América Latina, dos mapuches do Chile, passando pela Bolívia e chegando ao altiplano peruano, torna Scorza atualíssimo e é no seu segundo livro, Garabombo, o Invisível, que se encontra uma metáfora terrivelmente próxima do que se passa no país andino.

Garabombo não é invisível por mágica ou truque, mesmo sendo o romance do realismo fantástico da literatura regional. É porque, tendo ido servir ao Exército peruano em Lima, a capital do saque colonial da América espanhola, mesmo já independente, descobre que os homens do poder e do governo, física ou mentalmente brancos, simplesmente ignoram, como se não os vissem, os que vinham das origens indígenas do país.

Invisível, então, Garabombo serve-se disso para ajudar a organizar a revolta camponesa, porque não o enxergavam. E os comuneros, impedidos de se reunirem pelas autoridades, encontram um meio de se reunirem: são autorizados a construir uma escola, que quando está quase pronta, incendeia-se e os “obriga” a construir de novo, e maior. E de novo, maior e maior.

Imagem tão forte que há quase 50 anos me acompanha, desde que a li, num subúrbio carioca, por simples fome de leitura.

Pois Pedro Castillo, a surpresa das eleições peruanas, a quem não davam um tostão furado de possibilidades de vitória, passou de ilustre desconhecido a presidente eleito do Peru, o que só não se proclama oficialmente ainda porque Keiko Fujimori passou a usar a tática desesperada de impugnar 802 urnas nas quais diz que houve fraude.

Quem o colocou no segundo turno, de onde partiu para a vitória, não foi a classe média, a esquerda “moderna”: foram os ‘invisíveis’. E, dali, ele passou a representar o povão também em outras regiões do país, embora sua vitória definitiva continue a dever-se aos altiplanos, onde teve oitenta por cento ou mais dos votos.

Se conseguirá manter-se no governo é outra história. A correspondente de O Globo para a América Latina, ácida critica da esquerda, diz hoje que Em clima de pânico, elite peruana resiste a reconhecer sua vitória, embora tenha passado décadas ignorando esta força que vem sobrevivendo há um século no Peru desde a Apra – Aliança Peruana Revolucionária da América- criada em 1924 por Haya de La Torre.

Seja como for, nesta América Latina onde um tarado tornou-se líder simulando armas com as mãos, é um soproo de esperança que se eleja um professor humilde, de uma escola do interior, que fez campanha tendo um lápis como símbolo, que ele empunhava por toda parte.

Talvez para lembrar as palavras de Scorza: Li os livros que meus colegas de trabalho me emprestaram. Senti que uma venda caiu dos meus olhos e um grande brilho iluminou meu entendimento. Toda a escuridão se transformou luz do meio-dia até então para mim um livro ou jornal era papel de embalagem. A partir daí comecei a vê-los como depósitos, como silos de amor, onde os homens mais sábios guardaram suas idéias para que nós nos alimentássemos delas, porque as ideias são melhor pão para os famintos”.

Tijolaço.

quarta-feira, 9 de junho de 2021

FERNÁNDEZ, NÃO VIEMOS DA SELVA, ESTAMOS É SOB A SELVAGERIA, POR FERNANDO BRITO

Infeliz, sob todos os aspectos, a frase do presidente argentino Alberto Fernández, numa brincadeira idiota, querendo fazer uma “graça” com a frase “”os mexicanos vieram dos indígenas, os brasileiros, da selva, e nós, chegamos em barcos”.

É uma reedição anacrônica das disputas de ironias que eram comuns entre os hermanos e nós, que tinha como chiste reverso de se dizer que os argentinos “se acreditavam ingleses, mas eram italianos”.

E quando não debochamos do “índio” boliviano Evo, e do mulato mestiço Chávez e de tantos outros que não tinham o tipo físico “adequado” a serem governantes, porque encarnavam até no rosto o “povão”

Infelizmente, muitos não se apercebem do quanto isso representa, há dois séculos, um dos truques dos dominadores para dividir povos que têm, afinal, um continente e um destino em comum e onde a estratégia de dividir-nos sempre foi a maneira de nos conservarmos cativos.

Mas para nós, brasileiros, isso tem sido pior.

Estamos partindo o que o tempo vinha fazendo, ao nos fundir como um país mestiço, ainda que nesta mestiçagem haja muitas tristezas e opressões: os negros que vinham escravizados e eram abusados; os índios que perdiam sua terra e identidade, os europeus pobres, que vinham com alguns farrapos para trabalhar nas lavouras calejando as mãos, os árabes que juntavam moedas até poder mascatear pelas poeiras do interior, os judeus que se enfurnavam nos porões de navio e despencaram-se para cortiços e subúrbios para fazerem a vida.

Sim, o retrocesso tem como método nos dividir.

Tribos são sempre menores e mais fracas que nações e a estratégia de nos tribalizar, embora pareça atraente para alguns acaba por ser vantajosa para os que pensam que podem manter todo o povo se ele se dividir.

Fernández pode até estar certo ao dizer que argentinos vieram de barco, como de barco vieram muitos de nossos pais, avós, bisavós que, sem a passagem de volta – que só está disponível hoje para elites que, na Argentina, no Brasil e em inúmeros países da América Latina enriqueceram – vieram para a América.

Nosso barco agora, senhor presidente, é este continente latinoamericano e não é por outra coisa que a direita sempre quis destruir o Mercosul que nos fortalece politicamente ante a voragem neocolonial.

E é por isso que o senhor acabou por prestar um favor imenso a um governo brasileiro que trabalha por isso, mudando o tempo do verbo da frase infeliz: os brasileiros vieram da selva, da África, da Europa pobre, dos árabes, judeus e dos orientais de vidas miseráveis e avançaram. E que hoje estamos sendo arrastados à barbárie violenta.

Tijolaço.

JOGADORES DA SELEÇÃO BRASILEIRA FAZEM MANIFESTO CONTRA COPA AMÉRICA E NEGAM AÇÃO POLÍTICA

Após dias de especulação, atletas divulgam texto em suas redes sociais. Seleção Brasileira está confirmada para disputar o torneio no Brasil.

Jogadores ficaram decepcionados com a postura do presidente afastado da entidade Rogério Caboclo. (Lucas Figueiredo/CBF).

Os jogadores da seleção brasileira divulgaram manifesto sobre a realização da Copa América no Brasil após a vitória sobre o Paraguai nesta terça-feira. No texto, os jogadores ressaltam que nunca quiseram tornar a discussão política. "Somos contra a organização da Copa América, mas nunca diremos não à seleção brasileira."

No manifesto, os jogadores explicam que não houve tentativa ou sugestão de boicote à Copa América. Assim se limitam a expor o desconforto com as mudanças de sede e dificuldades com a organização. Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro usaram as redes sociais, ao longo dos últimos dias, para criticar a postura da seleção, principalmente do técnico Tite, contrária à celebração do evento no Brasil.

 "É importante frisar que em nenhum momento quisemos tornar essa discussão política. Somos conscientes da importância da nossa posição", escreveram os jogadores.

As informações sobre o descontentamento de integrantes da seleção brasileira surgiram logo após o anúncio de que o Brasil passaria a receber o evento, diante das negativas de Colômbia e Argentina, países que originalmente abrigariam a competição. A insatisfação de jogadores e comissão técnica veio ao encontro da repercussão negativa em celebrar a Copa América no Brasil mesmo em meio à pandemia do novo coronavírus com números que ultrapassam os 450 mil mortos.

 Além da situação da pandemia, outro fator que abalou a relação da seleção com a direção da CBF foi a falta de aviso e consulta aos atletas sobre a vinda do torneio para o país. Jogadores ficaram decepcionados com a postura do presidente afastado da entidade Rogério Caboclo. O dirigente é acusado de assédio moral e sexual por uma funcionária da entidade. O afastamento será pelo prazo de 30 dias, no entanto, articulações na CBF sugerem que em breve haverá novas eleições na entidade.

 Antes do duelo com o Equador, na última sexta-feira, o técnico Tite já havia pedido que seus comandados se concentrassem na missão de levar o País a mais uma Copa do Mundo. Mas deixou clara a insatisfação de sua parte e também dos atletas. Após o jogo, o volante Casemiro não entrou em maiores detalhes e reforçou as informações anteriores repassadas pelo treinador.

 Nesta quarta-feira, Tite fará uma nova convocação para definir os nomes que atuarão na competição sul-americana. A expectativa é que haja mudanças, uma vez que alguns atletas podem ser chamados para atuar pela seleção olímpica. O Brasil defende o ouro em Tóquio, e alguns jogadores já se mostraram interessados em participar novamente dos Jogos.

 A Copa América tem início agendado para 13 de junho. Em Brasília, no estádio Mané Garrincha, às 18h, a seleção brasileira enfrenta a Venezuela, pelo Grupo B. No mesmo dia, às 21h, Colômbia e Equador duelarão na Arena Pantanal, em Cuiabá. Em 14 de junho, será a vez da Argentina começar sua jornada na competição, enfrentando o Chile, no Engenhão, às 18h. Mais tarde, às 21h, Paraguai e Bolívia jogam em Goiânia. A final do torneio está marcada para 10 de julho, no Maracanã.

 Leia o manifesto na íntegra:

"Quando nasce um brasileiro, nasce um torcedor. E para os mais de 200 milhões de torcedores escrevemos essa carta para expor nossa opinião quanto a realização da Copa América.

 Somos um grupo coeso, porém com ideias distintas. Por diversas razões, sejam elas humanitárias ou de cunho profissional, estamos insatisfeitos com a condução da Copa América pela Conmebol, fosse ela sediada tardiamente no Chile ou mesmo no Brasil.

 Todos os fatos recentes nos levam a acreditar em um processo inadequado em sua realização.

 É importante frisar que em nenhum momento quisemos tornar essa discussão política. Somos conscientes da importância da nossa posição, acompanhamos o que é veiculado pela mídia, estamos presentes nas redes sociais. Nos manifestamos, também, para evitar que mais notícias falsas envolvendo nossos nomes circulem à revelia dos fatos verdadeiros.

 Por fim, lembramos que somos trabalhadores, profissionais do futebol. Temos uma missão a cumprir com a histórica camisa verde amarela pentacampeã do mundo. Somos contra a organização da Copa América, mas nunca diremos não à Seleção Brasileira."

R B A.

O NOSSO BRASIL VIROU O PAÍS DOS ESCROQUES, POR FERNANDO BRITO

O episódio da combinação entre o falsário que inseriu, na noite de domingo, um relatório fajuto e combinado com o presidente da República – ou com os filhos presidenciais, o que dá no mesmo – para que este colocasse em dúvida a extensão das mortes pela Covid, é só um retrato do que é a entrega do comando deste país à pior malta de escroques em sua história, e olhe que já tivemos por aqui escroques capazes de superar os maiores do mundo.

O sujeito que emprenhou com documentos faltos o site do TCU é “peixe” de Bolsonaro, que por ele interferiu para ser nomeado para um cargo no BNDES, em telefonema pessoal do presidente da República, ao então presidente do TCU para que este autorizasse sua requisição para o cargo, informa Waldo Cruz, da Globonews.

Já na CNN mostra-se que o advogado que agora representa formalmente Jair Bolsonaro é Frederick Wassef, o mesmo que homiziou Fabrício Queiroz em sua casa/escritório até que este foi descoberto e preso.

Temos uma escumalha no comando da República, como diz, na edição de hoje da Folha o colunista Bruno Boghossian, ao dizer que Bolsonaro levou gangue golpista ao poder, e não apenas no sentido do golpe político, mas no de aplicação de golpes de toda espécie, espalhados numa imensa rede de favorecimentos.

Mas vivemos um tempo em que tudo isso se aceita “em nome” do combate ao que seria “esquerdismo”contrário a um governo que, afinal, está “combatendo a corrupção”.

O governo Bolsonaro, se é que se pode chamá-lo de governo, está se putrefazendo.

Mas, muito mais rapidamente do que se dissolve, dissolve as instituições da República, a vontade nacional e nosso senso de decência púbica.

Ainda faltam 16 meses para as eleições e só quem for muito tolo acreditará que todo este tempo se permitirá que se forme naturalmente a consciência da população.

Não estamos lidando com um adversário político, mas com uma quadrilha.

Tijolaço.

terça-feira, 8 de junho de 2021

FALSÁRIO QUE CRIOU ‘RELATÓRIO DO TCU’ SOBRE MORTES É DA TURMA DOS ‘FILHONAROS’; FERNANDO BRITO

O Tribunal de Contas da União abriu sindicância para apurar as circunstâncias em que o auditor inseriu, na noite de domingo, um “estudo” – falso, feito por ele mesmo, apenas – que serviu para Jair Bolsonaro, segunda de manhã cedo, dizer que o Tribunal de Contas da União concluíra que menos da metade das pessoas mortas por Covid, no ano passado, teriam ido a óbito por outras razões.

Alexandre Figueiredo da Costa Silva Marques é amigo dos filhos de Jair Bolsonaro e foi levado por eles para ser, durante alguns meses, para o BNDES por outro integrante da “turma”, Gustavo Montezano, quando este foi nomeado presidente do Banco pelo presidente, que não se conformava de Joaquim Levy não ter criado a “caixa preta” escandalosa que desejava usar para atingir os governos petistas.

Alexandre acabou sendo barrado pelos ministros do TCU, que não queriam alguém do Tribunal exercendo uma função que seria auditada pelo próprio Tribunal.

Leia a nota do blog do jornalista Vicente Nunes, do Correio Braziliense:

Foi o auditor Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques o responsável por elaborar o “estudo paralelo” apontando que metade das mortes pela covid-19 no país não ocorreram. Segundo ele, os governadores inflaram o total de óbitos para obterem mais verbas do governo federal.

Procurado pelo Blog, Alexandre disse que só falaria com autorização da assessoria de imprensa do TCU, que já foi demandada. O auditor é amigo dos filhos do presidente Jair Bolsonaro e do presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Gustavo Montezano.

O “estudo paralelo” foi citado por Bolsonaro na segunda-feira (07/06) para desqualificar a pandemia do novo coronavírus, que já matou quase 500 mil brasileiros. Nesta terça (08/06), o presidente assumiu que o “estudo” não pertence oficialmente ao Tribunal de Contas da União.

Alexandre está lotado na secretaria do TCU que lida com inteligência e combate à corrupção. Quando começou a pandemia do novo coronavírus, ele pediu para acompanhar as compras com dinheiro público de equipamentos para o combate à covid.

A partir dali, o auditor começou a elaborar o “estudo paralelo”. Quando apresentou os resultados de sua tese aos colegas de trabalho, foi veemente repreendido, pois ficou claro que ele queria desqualificar os governadores e favorecer o discurso de Bolsonaro. Nenhum outro auditor do TCU endossou o “estudo” por considerá-lo uma farsa.

Assustados com a insistência de Alexandre, os colegas de trabalho comunicaram os ministros da Corte de Contas o que estava acontecendo. Mas o auditor entregou a sua tese aos filhos de Bolsonaro, que a tornou pública. O TCU abriu investigação para apurar a conduta de Alexandre.

Quem acompanha as redes sociais de Alexandre pode verificar que ele costuma compartilhar fake news, como os benefícios do uso de ivermectina no combate à covid, e incitar ataques a governadores, justamente a quem ele quer prejudicar com seu “estudo paralelo”.

Tijolaço.

segunda-feira, 7 de junho de 2021

EM RESULTADO INCERTO, CASTILLO TOMA A FRENTE NO PERU, POR FERNANDO BRITO

Num final de apuração de tirar o fôlego, o candidato da esquerda peruana, Pedro Castillo, acaba de passar à frente da direitista Keiko Fujimori, com pouco mais de 44 mil votos de vantagem, o que representa perto de 0,3% de diferença.

Keiko ganha em Lima e Castillo, com larga margem, entre população indígena da região andina e do litoral sul do país, numa divisão que se reproduz quase que eternamente na política peruana.

Falta boa parte da apuração dos votos no exterior (onde onde Keiko leva vantagem, mas também muitos das regiões de Cuzco, Puno, Junín, Ayacucho e outros de maioria indígena, com vantagem ainda maior, em geral de 4 para um.

Mas os votos do exterior são muitos e, com um quarto apenas apurados entre os quase 93% de urnas da contagem atual, devem deixar o resultado final em suspenso até o final da noite de hoje, ou até a madrugada.

Tijolaço.

domingo, 6 de junho de 2021

XADREZ DO MOMENTO MAIS DECISIVO DA HISTÓRIA BRASILEIRA, POR LUIS NASSIF

Não há mais tempo para se perseguir terceiras vias ou esperar que a crise ou as manifestações de rua resolvam. O país está no momento mais decisivo da sua história e com a pior geração de homens públicos e privados.

Há uma enorme discrepância entre o que a mídia passa sobre o pensamento militar, através de inúmeras declarações em off, e os atos concretos do Exército. Nas declarações, apoio integral à disciplina e à visão das Forças Armadas como poder de Estado. Na prática, endosso tácito às arbitrariedades de Jair Bolsonaro.

As explicações devem ser buscadas em um fenômeno manjado do mercado de opinião: a diferença entre as opiniões individuais e as opiniões coletivas. Individualmente todos somos a favor do bem, da verdade, dos bons propósitos. No coletivo, tudo é possível, pois submetido ao monstro, a onda instável criada no grupo, que pode ir da generosidade mais sensível à ferocidade mais inexplicável. Isso porque entra, no comportamento, o componente dos interesses corporativos e pessoais e o efeito-manada.

Nenhuma categoria está imune ao efeito manada. O discurso de ódio dos últimos anos transformou jornalistas experientes em bestas feras sedentas de sangue e exigindo autocrítica das vítimas. O refluxo os devolveu à civilização, com um discurso humanista emocionado – e sem autocrítica. Nos órgãos de controle, transformou burocratas pacatos em justiceiros do velho oeste, daqueles que arrombam a porta da delegacia para enforcar suspeitos. No Ministério Público, infundiu um sentimento de onipotência que se espalhou por toda a corporação, calando as vozes de bom senso.

O primeiro passo, então, é separar dois tipos de opiniões pessoais. Um, a das chamadas pessoas-bússola, que mantêm suas convicções independentemente das ondas. Outra, a das birutas-de-aeroporto, que seguem as ondas. Tudo isso em um país sem nenhum caráter institucional, com uma história secular de oportunismo. Por isso, jornalistas, ministros, juízes, procuradores, políticos, militares, cronistas de variedades, seguem as ondas de opinião com a mesma facilidade com que adolescentes seguem a última moda.

Nesse quadro, em qualquer dessas organizações há pouco espaço para as figuras-bússola. Assim, o caráter dessas corporações-instituições acaba refletindo o oportunismo e a tibieza da cúpula que, por sua vez, foi filtrada justamente por sua postura acomodatícia.

No caso do Exército, há uma dificuldade extra para decifrar os movimentos coletivos. As declarações têm que ser sempre em off. Como toda reportagem é em off, elas são vulneráveis ao efeito “elefante e os 7 cegos”, cada qual dando ao elefante o formato de acordo com o pedaço do corpo que apalpa. Ou então, valendo-se da cegueira generalizada para incluir jabutis nas declarações em off. Afinal, como tudo é off, um pouquinho de subjetividade não fará mal a ninguém.

É o caso de Merval Pereira, sustentando que a decisão do Exército foi para não fragilizar Bolsonaro perante Lula. Nenhum dos colunistas supostamente com fontes militares reportou tal preocupação. Donde se conclui que Merval apalpou apenas a tromba do elefante e transformou a preocupação lateral imediata de uma fonte em objetivo geral. Ou então quis reeditar o efeito Villas Boas, trazendo de volta o fantasma da intervenção militar contra Lula para estimular a chegada de algum dom Sebastião, descendo dos céus para salvar o país do lulismo e transformar em algo sólido o ectoplasma da terceira via.

Mas acertou a questão maior. Quando houve a invasão da administração pública por militares, eles se acostumaram com o poder com suas diversas benesses: melhoria da renda, aumento da influência sobre setores da economia e celebrização. E, cimentando esses interesses menores, a afinidade com várias das teses defendidas por Bolsonaro no plano moral, ambiental e no antipetismo exacerbado. 

Assim como em 1964, a ocupação militar se dá, inicialmente, preservando alguns formalismos democráticos. Em 1964 não faltou o endosso de uma eleição indireta de Castello Branco – depois do Congresso devidamente expurgado por cassações. E a promessa – jamais cumprida – de devolver o poder aos civis, depois do país ser limpado dos indesejáveis.

O mesmo ocorre agora. O Supremo ordena que o Exército vá atender as populações indígenas atacadas pelo Covid. Não há questionamento, mas não se cumpre a ordem. A ordem é jogada de um lado para o outro, de um escaninho burocrático para outro e nada se faz.

Repete-se com as milícias oficiais ligadas à violência. Tome-se o massacre de Jacarezinho. O STF só autorizou operações policiais em casos graves. Aí, o Secretário da Policia Civil dá como motivo quadrilhas aliciando menores – um dado rotineiro na vida carioca. Mas é suficiente para montar uma operação bélica que resulta no maior massacre da história do Rio de Janeiro. Mas, como dizem os idiotas da objetividade, as instituições continuam funcionando.

A estratégia de Bolsonaro tem sido óbvia. Vai comendo a democracia pelas bordas. Vez por outra tenta o embate frontal, encontra resistências e muda de assunto. E continua comendo pelas bordas, enquanto o país civilizado alimenta o sonho de que irá tirá-lo do poder nas eleições de 2022.

PONTO 1 – PREPARAÇÃO DO GOLPE

O processo de golpe em marcha consiste dos seguintes pontos:

1. Entrada descontrolada de armamentos beneficiando dois setores formais e um setor criminoso ligados a Bolsonaro: ruralistas e clubes de tiro e caça, e asmilícias propriamente ditas. No primeiro caso, assinou vários decretos não só liberando a importação e compra indiscriminada de armas como aboliu até os procedimentos para identificação de origem das munições. No segundo caso, afastou um superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro e fiscais da Receita do porto de Itaguaí – porta de entrada do contrabando de armas no país – que combatiam diretamente a atividade criminosa do contrabando de armas.

2. Cooptação das bases das polícias militares. A última iniciativa, do Ministério da Justiça – dirigido por um ministro bolsonarista – é conseguir o e-mail de todos os policiais militares do país para um suposto levantamento das suas condições sócio-econômicas. É evidente que a ideia será inseri-los no circuito dos algoritmos que sustentam a base bolsonarista.

3. As benesses aos militares, escancarando os cargos na administração civil para militares da ativa e da reserva, ampliando suas verbas e benefícios funcionais. Ao aceitar os decretos de armas de Bolsonaro, o Exército abriu mão do seu maior poder, o do monopólio da força. É uma instituição sem espinha dorsal.

4. Fortalecimento das bases evangélicas, com a atuação pertinaz da Ministra Damares destruindo políticas de saúde e de inclusão para transferir poder a asilos e escolas especiais dominadas pelo neopentecostalismo.

5. Manutenção dos laços de parceria com a ultradireita mundial através do Itamarati. Tirou-se um Ministro das Relações Exteriores trapalhão, mas não se alterou a orientação do Itamarati.

6. Queima irresponsável de ativos públicos essenciais – em operações conduzidas por quadros militares, como o Ministro das Minas e Energia Bento Albuquerque – para comprar o apoio do mercado.

7. O maior projeto de suborno da história do país, entregando todo o orçamento para controle absoluto dos parlamentares, visando fortalecer

Parafraseando Noel Rosa – por aqui tudo se compra -, Bolsonaro logrou cooptar três instituições essenciais:

Congresso – com o suborno das emendas.

Exército – com empregos e tornando-o co-gestor do país.

Mercado – com o suborno das privatizações.

PONTO 2 – AS FORÇAS DO CONTRAGOLPE

Em todo esse imbróglio, há apenas uma força impedindo o golpe: a indignação de parte da população com a necropolítica de Bolsonaro e a permanência da crise econômica. É esse alarido que impõe limites à própria ampliação do poder militar, confere autoridade aos Supremo Tribunal Federal e à própria CPI do Covid. Esse desgaste é medido nas pesquisas de opinião e nas manifestações de rua.

Atualmente, há há dois processos promovendo a mobilização. O primeira, os desastres da política de saúde de Bolsonaro no combate à pandemia. O segunda, a crise econômica e a notável inoperância do Ministério da Economia.

E se esses fatores se diluirem?

Do lado da saúde, a vacinação – ainda que tardia – afastará o fantasma do Covid, deixando para trás a lembrança das centenas de milhares de famílias órfãs. Afastado o risco da pandemia, o foco maior será a economia.

Do lado da economia, com o controle da pandemia haverá uma melhoria óbvia. E haverá também o efeito externo, do novo ciclo de alta  dos commodities permitindo alguma recuperação econômica. E, obviamente, fortalecendo o discurso de Bolsonaro de que seu combate ao isolamento social garantiu a recuperação. 

Coloque-se nesse caldeirão a reativação dos programas de transferência de renda e se terá um candidato competitivo.

Há outras sombras no horizonte, como a provável crise hídrica, uma possível terceira onda do Covid.

Repare, portanto, que todo o blábláblá dos idiotas da objetividade sobre a força das instituições, fica na dependência exclusiva de fatores fora do controle das instituições. Se a economia se recuperar, o resultado político será um; se piorar, será outro.

PONTO 3 – O QUE SERIA UM SEGUNDO GOVERNO BOLSONARO

Caso prevaleçam os fatores pró-Bolsonaro na economia e na saúde, há o risco concreto de uma consolidação da barbárie, mas ampliada com outros atores. Afinal, trata-se definitivamente de um país sem caráter institucional. 

Para impedir um governo social-democrata que coloque um fim a esse banquete de bárbaros, poderá ocorrer o seguinte movimento.

1. Bolsonaro repaginado

Fortalecido, Bolsonaro não terá necessidade de continuar apelando às suas bases radicais, moderando a retórica – não a prática – para ampliar sua base de apoio.

Hoje em dia, por exemplo, o desmonte final do Estado é contido pela resistência de quadros do Estado ligados ao bolsonarismo – especialmente as forças policiais. Conseguindo diversificar sua base de apoio,  poderá se aventurar a encarar a pá de cal no Estado brasileiro, a reforma administrativa. Preservando, obviamente, a polícia e o Judiciário.

2. Exército co-gestor do desastre

Sem o alarido das ruas, o Exército poderá se curvar cada vez mais a Bolsonaro. Afinal, tornou-se uma corporação sem nenhum verniz intelectual, sem projeto algum de país, sem uma liderança de fôlego sequer, meramente administrando alianças com outros setores e benesses para a corporação. Juarez Távora, Estilac Leal, os Cardoso, Golbery, personalidades à esquerda e à direita serão apenas um quadro na parede das Forças Armadas, substituídos por DAS armados.

Assista a entrevista do historiador Manuel Domingos sobre os militares, hoje. Vídeo abaixo:

3. Mercado comprado

Se der certo o projeto Bolsonaro repaginado, haverá uma aceleração do desmonte do Estado, com a destruição final do sistema público de serviço. Com o endosso do mercado, bastarão alguns acenos de Bolsonaro para a mídia corporativa cair de novo em seus braços consumando a privatização total da educação, com a destruição do sistema público de ensino, e a ampliação da privatização da saúde.

4. Diques de contenção

Sem o endosso das ruas, um cabo e um sargento bastarão pra retrair o Supremo, a CPI do Covid e outras tentativas de conter Bolsonaro.

PONTO 4 – OS PONTOS DE RESISTÊNCIA

Menciono o cenário acima como um argumento “ad terrorem”. Mas é uma possibilidade concreta. Não é por outro motivo, que a própria OCDE e o Fórum Econômico Mundial conferem ao Brasil o status de ameaça – tanto climática quanto à democracia -, em pé de igualdade com a Turquia.

Veja, a propósito, entrevista com o jornalista Jamil Chade, sobre o pensamento dos organismos multilaterais e das principais associações do capitalismo.  Vídeo abaixo:

Não há mais tempo para se perseguir terceiras vias ou seja lá isso o que for, ou procrastinar em relação aos abusos de Bolsonaro, esperando que a crise ou as manifestações de rua resolvam a questão.

O país está no momento mais decisivo da sua história e com a pior geração de homens públicos e privados da história. Resta apenas uma personalidade com dimensão – Lula, por sua história e por seu papel de ex-presidente. Resta ver se conseguirá superar o pensamento miúdo e imediatista de um país que perdeu todas as referências.

As recentes manifestações conjuntas de Lula e FHC acendem uma luz, ainda que tênue, de esperança.

GGN.