Ney Bello é desembargador do TRF-1 e professor da UNB
O artigo, do
desembargador Ney Bello, do Tribunal Regional Federal da 1a. Região, relaciona
algumas características da ideologia que predomina no Judiciário: o
moralismo, o punitivismo, o conservadorismo, a intolerância e o desejo de
ruptura com regras de igualdade racial, religiosa e sexual, e também alguma
fobia de compreensões econômicas apoiadas na igualdade.
Ney Bello e também professor da Universidade de Brasília (UnB), pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.
Ney Bello e também professor da Universidade de Brasília (UnB), pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.
A seguir, o artigo,
publicado originalmente no Conjur:
O Judiciário brasileiro
atual, que se formou e se consolidou na segunda década do século XXI, tem
características bastante diferenciadas da magistratura atuante no final do
século XX.
De forte colorido
ideológico, o juiz médio da atualidade nega possuir qualquer ideologia e imputa
aos demais, que pensam de forma diferente sobre quaisquer questões, a submissão
a doutrinas e a obediência a direcionamentos partidários. O magistrado médio
define-se como neutro e faz juras de amor eterno à técnica e à isenção.
Por mau uso dos conceitos teóricos, ele desconhece que ideologia é o conjunto
de pressupostos, compreensões e concepções que definem o modo de pensar e de
ser no mundo. Não percebe que é impossível não ter ideologia e que é uma
cegueira egocêntrica se imaginar não ideológico — neutro —, imputando
o epíteto ao outro que lhe é contrário.
Faz parte da ideologia
dominante no Judiciário de hoje o moralismo, o punitivismo, o conservadorismo,
a intolerância e o desejo de ruptura com regras de igualdade racial, religiosa
e sexual, e também alguma fobia de compreensões econômicas apoiadas na
igualdade. Também há fobias de liberalismo comportamental que sempre fora uma
bandeira de compreensões liberais ocidentais, sem qualquer vinculação com o
comunismo e muito menos com o marxismo.
A ideologia dominante
no Judiciário cria o juiz legislador, o juiz ativista, o juiz moralista e o
juiz iluminado. Tais perfis têm ocupado de tal modo espaço na sociedade
brasileira que o equilíbrio entre os Poderes e a sua salutar divisão
encontram-se sensivelmente ameaçados. O juiz de hoje não é mais um árbitro: é
um combatente; é um jogador. Não é correto falar — ainda
— na ditadura da toga ou em golpe de toga, mas é fácil observar
um ameaçador grau de invasão das decisões judiciais na seara dos Poderes
Legislativo e Executivo. Essa hiperbolização do Judiciário vem sempre
acompanhada de argumentos de superioridade moral e qualidade pessoal do
julgador, o que é no todo perigoso, para dizer o mínimo, pois, de fato, é
assustador.
Isso claramente se
demonstra quando observamos os fundamentos das prisões cautelares. Tais
encarceramentos, em sua maioria, são vinculados a conceitos abstratos, à
materialidade do crime, à prova do delito e à sua repercussão midiática. São
prisões que têm por objetos fatos pretéritos, que de forma alguma poderiam
justificar aprisionamento preventivo.
Nesse aspecto, o
Judiciário superinterpreta o Direito Processual Penal e reduz a esfera de
liberdade do cidadão, tudo a partir de um ativismo criacionista repressor,
corroborando teses de legitimação do hiperencarceramento e hipertrofiando a
exclusão social, a partir do Direito Penal.
Por diversos fatores
que talvez possam ser explicados sociologicamente e psicologicamente, os juízes
criminais da segunda década do século XXI são mais afetos a punições e
encarceramentos exagerados do que comprometidos com o respeito aos direitos
fundamentais e às garantias do devido processo legal.
Isso em parte se
explica quando percebemos estas características como integrantes de um
movimento geracional de natureza global, que contempla os desejos de lei e de
ordem. Tais desejos acoplam-se à ideia de que mais prisões trazem mais
segurança e colocam mais ordem na sociedade.
Demais disso, o
crescente gosto pelo ativismo judicial imbrica-se com uma compreensão cada vez
mais heroica do papel do juiz na sociedade. É como se coubesse ao magistrado o
protagonismo e a liderança na luta contra as mazelas do mundo e também a
correção dos males da sociedade. A postura ativista chega às raias do descenso
com a imparcialidade e se imola num autêntico complexo Marvel, onde o juiz
é tomado pelo desejo de super-herói, pela responsabilidade de guia e líder de
todos na busca por melhores dias.
Tudo que um juiz não
deve ser e não poderá jamais ser.
Na última década o
Judiciário vem sendo colonizado por compreensões acerca do mundo que não são
fruto da vivência cotidiana nem possuem origens em quaisquer atividades humanas
que permitam compreensão minimamente empírica da vida. A era da virtualidade se
impôs, e a compreensão PlayStation do universo — onde tudo é um
jogo de videogame — tomou de assalto o Judiciário.
A alegoria do bacharel
em Direito que passa as noites e os dias alternando o foco entre resumos
pré-fabricados e o joystick do videogame — sempre com jogos de
tiro em primeira pessoa — e ao passar no concurso — com ajuda de
um coach — se vê como macho alfa é mais presente do que nunca.
A Justiça criminal se
vê repleta de punitivistas com pendores salvacionistas que se utilizam do
ativismo judicial para punir mais, condenar mais, desconhecendo o Direito
Positivo Penal e Processual Penal e os direitos e garantias fundamentais.
Em parte, o que pode
ser caracterizado como uma onda é também fruto de
um status de impunidade, que transformou em fetiche a ampla defesa,
ao encobrir atos de total inaplicação ou aplicação seletiva do Direito Penal
sob o manto das garantias. A impunidade chegou às raias do absurdo e contribuiu
para esta viragem de 180 graus.
Punia-se mal,
absolvia-se muito e punia-se seletivamente. Continuamos a punir mal e seguimos
sendo seletivos. Os polos se inverteram, mas continuamos a aplicar mal o
Direito Positivo.
Por essas razões, o
senso comum dos juízes exige e trabalha pela punição, além do que a mídia dispersa,
a mídia concentrada e as redes sociais passaram a não somente valorizar o juiz
condenatório como também a desvalorizar e perseguir o magistrado não
punitivista. É corrente o estigma negativo de garantista, mesmo que Luigi
Ferrajoli nada tenha a ver com as decisões absolutórias por falta de provas ou
com o desfazimento de cautelares absurdas. Menos ainda quando o caso é de
pura aplicação direta de texto legal.
O frágil juiz passou a
seguir as exigências midiáticas e o senso comum, segue encorpando a onda por
mais punição e menos absolvição, mesmo que isso signifique prisão sem justa
causa e condenação sem provas. A onda gera uma autêntica covardia institucional
mesclada com negação do Direito Positivo.
O caminho a ser seguido
parece claro: a) desacoplar o pensamento do juiz criminal do senso comum das
redes sociais; b) aplicar o Direito Positivo Penal e Processual Penal
independente do desejo da maioria; c) reduzir o ativismo judicial penal aos
limites da Constituição; d) reduzir o protagonismo político do juiz e o
consequente desequilíbrio entre os Poderes.
A compreensão segundo a
qual a atividade judicante precisa se recolher aos limites que a Constituição e
o jogo democrático lhe impõem é fundamental para o equilíbrio da sociedade.
Em palavras muito
claras, nunca foi tão necessário reverenciar Kelsen.
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